Enfoque

IMPACTOS DA CRISE SOBRE O DIREITO A DIVIDENDOS

Passada a temporada de publicação de balanços e realização de assembleias, os resultados das empresas brasileiras, de um modo geral, refletiram os efeitos da crise econômica, afetando sua capacidade ou disposição de distribuir dividendos.

Além da grande quantidade de companhias que registraram prejuízo, outras tanto, vendo seus ganhos minguarem, reviram suas políticas de remuneração aos acionistas ou aprovaram, excepcionalmente, uma retenção de lucros maior do que a habitual. Em meio ao quadro recessivo, agravado pela instabilidade política, buscam preservar o caixa diante da queda de receitas e dos tempos difíceis que ainda se anunciam. O ano de 2016 caminha no mesmo sentido. Uma companhia recentemente propôs a postergação do pagamento de dividendos previamente aprovados.

Nesse cenário, surgem algumas questões jurídicas interessantes, conhecidas de advogados na área societária e departamentos de RI, mas nem sempre bem compreendidas por gestores ou investidores em geral.

Inicialmente, não custa lembrar que toda empresa, seja aberta ou fechada, com controlador público ou privado, ou sem controlador, tem finalidade lucrativa e visa, em última instância, gerar resultados positivos para seus sócios. Fundada nesse princípio e visando coibir abusos contra minoritários, a Lei 6.404/76 (“Lei das S/A”) prevê a figura do dividendo obrigatório e impede, em tese, a retenção injustificada de lucros.

Como a redução do dividendo obrigatório enseja direito de retirada dos acionistas dissidentes, as companhias costumam deixá-lo no padrão de mercado, de 25% do lucro liquido ajustado na forma da lei, e quando desejam distribuir uma quantia complementar, o fazem com base numa política de dividendos, não estatutária, incorporada às suas práticas de governança como forma de tornar suas ações mais atrativas na bolsa. Ao procederem dessa forma, mantêm maior flexibilidade para eventuais ajustes do payout aos acionistas.

O dividendo obrigatório, a seu turno, somente pode ser retido ou postergado em hipóteses excepcionais, dentre elas quando a administração justificadamente considerá-lo incompatível com a situação financeira da companhia. Porém, não basta para tanto invocar o cenário macroeconômico desfavorável, sendo necessário mostrar os impactos concretos na companhia.

De outro lado, a Lei das S/A estabelece que dividendos só podem ser pagos à conta de lucros, sejam atuais ou de anos anteriores. A única exceção, raramente vista, é o pagamento às ações preferenciais (PN) de dividendo prioritário cumulativo (fixo ou mínimo), à conta de reserva de capital, quando assegurado tal direito no estatuto social. Fora dessa hipótese, uma vez apurado prejuízo, ou sendo o resultado positivo do exercício integralmente consumido por prejuízos acumulados, não há que se falar em direito a dividendos. A companhia poderá distribuí-los, mesmo em ano deficitário, na medida das reservas que não tenham sido absorvidas por perdas supervenientes, mas será sempre uma faculdade, a depender de deliberação em cada caso. Foi esta a situação vivida pela Petrobras.

A outrora companhia mais valiosa do Brasil divulgou um prejuízo de R$ 34 bilhões em 2015 e, no ano anterior, de R$ 21 bilhões, dos quais – relembre-se – mais de R$ 6 bilhões decorrentes do reconhecimento de perdas com corrupção relacionada à Lava-Jato. Em função desses resultados, a empresa, que historicamente gerava lucros e pagava dividendos, não fez qualquer distribuição nos últimos dois anos.

Inconformados, alguns investidores foram à CVM, às vésperas da AGO de 2015, para que a companhia – não obstante o elevado prejuízo –, fosse obrigada a pagar o dividendo mínimo das ações PN (correspondente a 3% do patrimônio líquido ou 5% da parte do capital social representada pelas PNs – dos dois, o maior). Isto porque a empresa ostentava, e ainda ostenta, mesmo após mais um ano de perdas bilionárias, vultosas reservas de lucros somando quase R$ 100 bilhões, acumuladas ao longo de sucessivos anos de lucratividade.

A CVM manifestou-se acertadamente no sentido de que, apurado prejuízo no exercício, não há exigibilidade no pagamento de dividendos prioritários com lastro em lucros anteriores, mesmo se retidos com base em orçamento de capital plurianual ainda não completamente executado. Em outras palavras, as ações PN com dividendo fixo ou mínimo têm direito de recebê-lo anualmente, de forma prioritária em relação às demais ações, porém sempre à conta do lucro líquido do exercício, não preservando tal direito nos anos deficitários a custa de reservas de capital ou de lucros, mormente quando inexiste previsão estatutária nesse sentido.

Por outro lado, como o dividendo mínimo das ações PN é uma vantagem atribuída em contrapartida à exclusão do direito de voto, a Lei das S/A prevê que elas adquirem tal direito até que o pagamento ocorra. Dessa maneira, os acionistas preferenciais passam a poder influir nas deliberações sociais e, dependendo da composição acionária e do seu ativismo, podem até assumir provisoriamente o comando da companhia, a fim de fazê-la voltar a dar lucro. Em tese, ao menos. Não foi o que ocorreu na Petrobras.

Por se tratar de sociedade de economia mista, sujeita por lei a controle estatal, e considerando que a União deixaria de ter maioria do capital votante caso as ações PN adquirissem o direito de voto – ocasionando, em tese, uma “desestatização” circunstancial da companhia –, o remédio da lei societária, apesar de reivindicado, não foi aplicado. Embora juridicamente defensável, no caso, a prevalência da legislação especial, o fato é que o investidor ficou sem dividendo mínimo e sem voto, o que reforça a agenda de governança das “estatais” para além das mudanças introduzidas pela recente Lei 13.303/16, que instituiu o estatuto jurídico de tais empresas.

De um modo geral, o ambiente atual de crise econômica, com maior represamento dos dividendos, e o caso da Petrobras, em particular, demonstram a importância de investidores ficarem atentos não só aos aspectos econômico-financeiros e à política de distribuição de cada companhia ao avaliarem a perspectiva de remuneração do capital investido, como também às regras legais pertinentes à matéria e suas eventuais exceções.

 

Henrique Vargas Beloch
é sócio da área de Direito Societário e M&A do BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão.
hvb@bmalaw.com.br


Continua...