Em 20 anos de experiência como analista e gestor, pude acompanhar a evolução das ‘relações com investidores’ – outrora chamadas de ‘relações com o mercado’ no Brasil. E evolução foi uma constante neste período. Do lado das empresas observamos a montagem de estruturas e a profissionalização da atividade – com graus diversos de inserção no processo estratégico da companhia. E do lado dos profissionais o movimento talvez tenha sido ainda maior – também no sentido do profissionalismo. O resultado foi a construção de uma nova profissão.
Primeiramente, acredito que a visão do RI como mero disseminador de informações ao mercado já se encontre defasada. Embora na letra fria da lei esta seja a função primordial do profissional de RI, trata-se de um understatement de sua função para a organização. Isso porque o RI é aquele que interage corriqueiramente com um público externo altamente qualificado, interessado no sucesso da companhia, e que tem muito a oferecer a ela. Suas opiniões, portanto, são mais do que repercussões das atitudes da administração, ou expressões das visões ‘consensuais’ de mercado. Revestem-se, na verdade, de verdadeira “consultoria gratuita” oferecida àquelas companhias que decidiram abrir seu capital. Este serviço – muitas vezes ignorado – é um dos grandes benefícios da abertura de capital. Quiçá até mesmo superior ao acesso ao capital (dado que a maior parte das empresas raramente emite novas ações).
Para aproveitar esse benefício, a companhia precisa que sua área de RI esteja imbuída de uma visão bidirecional de comunicação. Transmite, sim, as informações da companhia aos investidores. Mas também transmite à administração as visões do mercado. E o trabalho para que esta segunda parte de sua missão seja efetiva é tão complexo quanto à primeira.
O desafio começa na sensibilização das áreas operacionais – veja bem, não me refiro somente à financeira – de que a opinião do mercado tem valor. Não é um desafio simples. Os estereótipos relativos à “visão de mercado” são tão negativos quanto mais se embrenha na estrutura operacional da companhia. Ora são vistos como ‘especuladores’... ora como ‘membros de uma manada’... ou ainda simplesmente como ignorantes daquilo que a empresa precisa. Muitas vezes isso é verdade. Mas nem sempre. E é aí que se cria valor.
O profissional de RI tem capacidade de filtrar dentre todos aqueles que acompanham a companhia, quais são os stakeholders capazes de compreender bem o negócio, investir tempo e recursos no processamento das informações recebidas sobre a companhia, articular uma opinião informada e independente sobre o negócio e a gestão, e estar disposto a compartilhar esta visão com a companhia. A visão deste tipo de investidor é portanto um ‘diamante bruto’, que pode e deve ser lapidado pelo profissional de RI para que se configure na tal consultoria gratuita que tanto pode beneficiar a companhia.
A bidirecionalidade da atuação do RI depende, portanto, de duas capacidades do profissional: (1) sensibilizar as estruturas internas da companhia para receber as informações; e (2) segregar as informações úteis do ‘ruído’. Atendidas estas premissas, fica aberto o caminho para o diálogo – e não monólogo – entre a empresa e seus investidores.
Mas essa bidirecionalidade não é o ponto principal deste artigo. Até porque muitas empresas já a praticam, e não há muitas dúvidas sobre seus benefícios. O assunto é trazido na verdade como premissa para o passo seguinte... o que queremos apontar como o verdadeiro desafio do século XXI para o profissional de RI.
Partamos do nome da profissão: Relações com INVESTIDORES. E quem são os investidores? A resposta tradicional é ‘os detentores de títulos e valores mobiliários emitidos pela companhia’. Pessoas, empresas ou fundos que adquirem títulos para ter determinada rentabilidade.
Esta definição está certa... mas é insuficiente. Podemos definir o investidor com uma só palavra, ao mesmo tempo mais clara e mais abrangente que a definição acima. Investidor é o DONO.
Sim, a tradição brasileira de segregar entre acionistas controladores (donos) e minoritários (investidores) é equivocada – e até mesmo ilegal. Sejam eles controladores ou minoritários, todos os detentores de ações – e também de outros títulos emitidos pela companhia – são os verdadeiros donos das empresas, e devem ser tratados como tais.
E quais são as necessidades destes donos?
Obviamente necessitam de todas as informações formais – financeiras ou não – que populam o dia a dia do profissional de RI. Balanços, press releases, comunicados, apresentações... tudo isso é importante para que o DONO tenha conhecimento do que se passa na empresa que financia.
Mas o DONO tem duas faces. Por um lado ele tem direito aos resultados financeiros decorrentes do seu investimento. Do outro lado, ele detém direitos políticos de influenciar a vida da companhia. Estamos falando primordialmente – mas não apenas – do direito de participar e votar nas assembleias da companhia. E curiosamente, este aspecto da propriedade está hoje alijado da estrutura de RI na maior parte de nossas companhias.
Pode-se argumentar que a maior parte das companhias brasileiras ainda é passiva no que tange à relação com seus DONOS para o exercício de direitos políticos. Mas esta atitude está mudando, tanto voluntariamente como pela via regulatória. Considerando os passos tímidos das companhias até agora, a CVM tem aumentado significativamente as regras relativas à prestação de informações às assembleias de acionistas. Mas este é só um pequeno aspecto das necessidades do DONO para exercício de seus direitos políticos. Pior... na maior parte dos casos, essa atividade é concentrada no departamento jurídico, não no RI.
A verdade é que existe uma série de necessidades do DONO que não pode ser atendida adequadamente por um departamento jurídico. O profissional mais qualificado e melhor posicionado para cumprir esse papel é exatamente o RI. Senão vejamos...
Vamos discutir a seguir algumas atividades relativas ao exercício de direitos políticos dos DONOS, e o papel do RI em cada uma delas.
1. O Mapeamento da Base Acionária
Até aqui, não estamos falando grandes novidades. A maior parte das áreas de RI faz algum acompanhamento da evolução da base acionária da companhia. A pergunta que se faz é... com que objetivo?
Os objetivos tradicionais são normalmente voltados ao municiamento da administração com informações sobre seus acionistas – o que sem sombra de dúvida ajuda a compreender e programar as relações com investidores.
Mas o mapeamento da base acionária deve ser feito também para que a empresa conheça seus DONOS, e as suas necessidades no que tange ao exercício de direitos políticos.
Imaginemos uma assembleia importante. Ainda que a empresa produza um Manual de primeira qualidade (mais sobre isso mais à frente), a efetiva capacidade de tornar o evento relevante muda drasticamente se a base acionária é pulverizada ou concentrada, fortemente local ou internacional, institucional ou formada por indivíduo.
Como estamos falando de uma ferramenta já existente, o desafio aqui é utilizá-la em benefício dos DONOS, e não somente da administração.
2. A Construção da Base Acionária
Muitas empresas possuem no seu planejamento de RI ideias sobre a ‘composição ideal’ da base acionária. Algumas colocam objetivos simplistas, tais como ‘aumentar a participação de estrangeiros’, achando que esta categoria de investidores irá magicamente trazer benefícios, seja através de maior liquidez, seja através de um preço mais elevado para as ações.
O objetivo mais saudável, normalmente, é a busca de uma base diversificada de acionistas. Isso porque a diversificação traz investidores com processos mentais diferentes. Eles reagem à mesma informação de maneira distinta, evitando assim efeitos manada e propiciando maior liquidez (pela diferença de opiniões).
Mas há um ‘terceiro nível’ de construção de base acionária que deve ser contemplado, e raramente o é: a busca por investidores que, em seu papel de DONOS, irão contribuir positivamente com a companhia.
Aqui coloca-se a necessidade de atrair investidores ativistas, que considerem o exercício de seus direitos políticos algo intrínseco aos ativos sob sua gestão. Ao mesmo tempo, deve-se buscar acionistas que, além de enquadrarem-se na definição acima de investidores ‘informados’ estejam dispostos contribuir para a construção dos processos de governança corporativa da companhia.
A preocupação com a construção da base de acionistas é obviamente mais urgente nas empresas sem acionistas controladores. Estas são sujeitas a tomadas hostis de controle, e a atividades mais agressivas de ativismo. No mundo, várias companhias acordaram um belo dia compreendendo que tinham novos donos. No Brasil, apesar de nossa jovem democracia corporativa, DASA e GVT foram exemplos de disputa por controle que entraram em ebulição através de aquisições estratégicas de posições acionárias.
Mas empresas com controle definido também tem razões para monitorar o movimento de seus donos. O exemplo mais evidente (e recente) é o de Usiminas. Ainda que a venda de controle tenha sido resolvida entre quatro paredes, a movimentação estratégica de acionistas até hoje rende processos na justiça.
É claro que a disputa por controle é um caso extremo. A necessidade de ‘trabalhar’ a base de acionistas é uma atividade estratégica para quaisquer empresas. Principalmente num país como o Brasil, onde a lei inclui ferramentas que tornam efetiva a opinião das minorias, por exemplo através do voto em separado. Assim, opiniões, acordos e desavenças na base de acionistas respingam no conselho de administração, e consequentemente na direção estratégica da companhia.
Nenhum profissional da empresa de capital aberto está mais apto a colaborar com a administração desta importante função que o profissional de RI.
3. O Monitoramento das Expectativas dos Investidores
Mesmo as bases de acionistas mais estáveis e previsíveis possuem uma dinâmica importante que deve ser monitorada pelas companhias: as expectativas dos DONOS.
Trata-se de uma realidade que é compreendida em parte pelas administrações – mas raramente em sua completude.
Tomemos como exemplo a política de dividendos. A despeito da controvérsia acadêmica sobre a política “ideal” de distribuição de resultados, acadêmicos e profissionais concordam que os investidores têm opiniões – e preferências – sobre o que deve ser feito. Isso gera o chamado “efeito clientela”: investidores que gostam de renda – por motivos psicológicos, tributários, ou quaisquer outros – irão adquirir empresas com elevado payout e dividend yield. Estas empresas verão portanto uma concentração deste tipo de investidor em sua base acionária. Isso não é bom nem ruim – é apenas um fato que deve ser considerado. Uma decisão de reduzir drasticamente os dividendos frustrará as expectativas desses acionistas, que possivelmente venderão ou reduzirão suas posições. Na melhor das hipóteses esse fato gerará alta volatilidade para as ações, e na pior das hipóteses uma redução na avaliação do mercado, tendo em vista a frustração de expectativas. O raciocínio é válido ainda que a razão dos dividendos inferiores seja positiva, tais como uma melhoria na estrutura de capital ou novas oportunidades significativas de investimentos.
Mas, como falamos, este é apenas um aspecto das expectativas dos investidores. Além do fluxo de dividendos, elas podem envolver inúmeras dimensões, tais como estratégia, potencial de crescimento, alinhamento da administração, políticas de transparência, questões relativas a sustentabilidade e tratamento dos acionistas minoritários. A lista continua, e pode ser enorme.
É claro que o investidor que não esteja satisfeito com alguma dessas dimensões pode sempre vender as ações. Mas isso não é bom para a companhia. No cenário ideal, acionistas e administração possuem visões compatíveis de futuro para a empresa, propiciando uma parceria de longo prazo que leva a ganhos para ambos os lados.
Mas poucas vezes essas expectativas são adequadamente compreendidas ou mesmo identificadas. Capturá-las é parte da comunicação bidirecional da área de RI que mencionamos no início do artigo. E um adequado monitoramento dessas expectativas propicia a identificação de riscos que podem levar a embates ou mesmo a descontinuidade para a companhia.
Mais uma vez temos o profissional de RI como o melhor posicionado para implementar essa importante função.
4. A Alimentação do Processo Estratégico do Conselho
Como resultado do monitoramento das expectativas dos acionistas, o profissional de RI credencia-se para aquela que talvez seja sua função mais importante na companhia: permitir que o conselho saiba o que deve fazer.
Para entender esta afirmação, vamos trazer a definição de Conselho de Administração que consta do Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC: “O Conselho de Administração, órgão colegiado encarregado do processo de decisão de uma organização em relação ao seu direcionamento estratégico, é o principal componente do sistema de governança. Seu papel é ser o elo entre a propriedade e a gestão para orientar e supervisionar a relação desta última com as demais partes interessadas. O Conselho recebe poderes dos sócios e presta conta a eles.”
Vamos ler esta definição em conjunto com outra importante, desta vez o Artigo 154, Parágrafo 1º da Lei das Sociedades Anônimas, que trata dos deveres e responsabilidades dos administradores: “O administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres.”
E por último, mais um dispositivo legal: o Artigo 116, Parágrafo Único, da mesma lei, agora sobre o acionista controlador: “O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
A leitura conjunta desses três trechos desafia uma interpretação tão comum quanto errônea do papel do conselho. Nas empresas ‘tradicionais’, isto é, que possuem controlador, o conselho é visto como uma longa manus do acionista controlador. Não haveria distinção entre a vontade deste e daquele. Neste cenário, parece absurdo falar do papel do conselho no processo de planejamento estratégico e na formação de sua missão, sobretudo no que se refere a decisões de longo prazo da companhia.
Esta é uma visão que contraria as melhores práticas e a lei.
O conselho de administração é uma estrutura autônoma. Ainda que eleito pelo acionista controlador, quando este existe, ele tem deveres fiduciários com a totalidade dos investidores, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Assim, a formação da opinião do conselho de administração deve obrigatoriamente considerar as expectativas e os interesses dos demais investidores.
E como vimos, a única forma dessas expectativas serem adequadamente mapeadas e capturadas é através de um trabalho proativo da área de RI.
O primeiro passo, portanto, para a construção de um conselho de administração ‘antenado’ com as expectativas dos investidores é a existência de uma prática de identificação, consolidação e debate sobre estas expectativas. Mas isso não é o suficiente.
O conselho que pretende efetivamente incorporar todos os seus DONOS em seu processo estratégico deve ir além, e investir na comunicação DIRETA com esses donos. O processo não é simples nem consensual. Mas revela-se hoje como a principal fronteira de governança corporativa no mundo.
Na Conferência Anual do ICGN (International Corporate Governance Network, entidade que reúne investidores institucionais responsáveis pela gestão de USD 18 trilhões em investimentos) de 2013, em Nova York, o debate mais importante ficou por conta da relação entre conselhos e investidores. Liderado pelo ‘guru’ de governança Ira Millstein, um painel formado por investidores exortou as companhias a buscarem um contato com seus donos não apenas através das áreas de RI, mas diretamente via conselho de administração.
Uma das críticas importantes dos investidores é que muitos conselhos só buscam o diálogo com os investidores em momentos de crise. Aí, normalmente, é tarde demais. As empresas que conseguirem construir um diálogo produtivo com seus investidores – sobretudo os de longo prazo – se beneficiarão de uma conversa embasada e alinhada com os interesses da companhia. Mais do que isso, poderão entender diretamente as expectativas dos investidores, e usar essa informação em seu processo estratégico.
Em recente pesquisa, a Spencer Stuart – empresa especializada em recrutamento para conselhos de administração – revelou pesquisa mostrando que os conselheiros ainda tem muito pouco contato com os investidores e – pior – muitos deles preferem o conforto das salas fechadas do que o debate com aqueles de quem recebem poderes e a quem devem prestar contas, como diz o Código do IBGC.
O IBGC recomenda que: “...o presidente do conselho deve estabelecer um canal próprio de contato com os sócios, não restrito às situações de assembleia ou de reunião de sócios.”
Note-se que as boas práticas determinam a existência de um diálogo entre conselho e acionistas, mas não necessariamente que todas as opiniões devam ser acatadas. Aliás, isso seria caótico e impossível. Mas quando esse diálogo existe – observadas regras rígidas para evitar vazamento de informações sensíveis ou quebras de equidades entre os investidores – todos tem a ganhar.
Mais uma vez, o RI coloca-se em posição única para permitir o sucesso desse diálogo. Ninguém melhor do que ele (ou ela) conhece os investidores. Tem ainda o RI conhecimento das ‘regras de engajamento’, que permitem o desenho de uma política de diálogo conselho-investidor que preze as normas e as boas práticas. E terá ainda o profissional um papel fundamental na “tradução” da linguagem de mercado para a linguagem dos conselheiros – o que muitas vezes é outro enorme desafio.
5. A Construção da Pauta da Assembléia
Uma vez compreendido que o investidor é o dono da companhia, a relação com investidores toma um escopo muito mais amplo que o tradicional. Mencionamos acima algumas necessidades dos investidores enquanto donos no dia a dia da companhia, de modo que seus interesses e visões sejam considerados pelos administradores. Mas há um momento onde o papel de dono concretiza-se de maneira muito clara: a assembleia de acionistas.
O evento que deveria ser o ponto alto da relação entre a companhia e seus donos reveste-se, normalmente em nosso país de uma mera formalidade jurídica. Apesar dos ocasionais momentos mais animados, boa parte das assembleias segue um script previamente combinado, muitas vezes com a ata escrita antecipadamente. Uma pena.
Existe hoje na prática um monopólio daquilo que é colocado para deliberação dos sócios em assembleia – um monopólio do conselho de administração e, por consequência, do acionista controlador (quando existe). Dessa maneira, são poucas as oportunidades de se colocar à prova visões distintas para o futuro da companhia. Se essas oportunidades não forem facilitadas, a tendência é o engessamento da organização numa visão única, não contestada, que muitas vezes pode divergir do que entende a maioria dos donos.
Mais uma vez estamos falando de um processo que é muito mais claro nas empresas sem controlador, mas que pode e deve ser estendido para as demais organizações. Ainda que o controlador divirja de determinada proposta de um grupo relevante de investidores, levá-la ao conclave dos acionistas é fundamental para que as posições fiquem claras. Ademais, dada a obrigação dos acionistas em votar no interesse da companhia, muitas propostas meritórias poderiam ser aprovadas a despeito de um ceticismo do controlador – desde que cheguem a ser avaliadas.
Nossa legislação possui um mecanismo segundo o qual acionistas com pelo menos 5% do capital social podem convocar uma assembleia para deliberar sobre assunto do interesse da companhia (Artigo 123 da Lei 6.404/76). Sem querermos nos alongar das dificuldades práticas deste dispositivo, ele sugere a possibilidade de acionistas não controladores colocarem propostas aos demais sócios. Deixado ao léu, o dispositivo só pode ser usado em caso de conflito. As empresas que pretendem evitar chegar neste ponto e, mais importante, aquelas que prezam os interesses de seus investidores, deveriam analisar meios alternativos para que investidores possam colaborar para a construção da pauta da assembleia.
Nada impede que uma companhia faculte aos seus acionistas o envio de propostas a serem debatidas em assembleia. Na prática, poucas o fazem.
No exterior, a ferramenta do shareholder resolution é cada vez mais utilizada. Mesmo no verdadeiro semi-árido de governança que representa o direito societário norte-americano, investidores possuem mecanismos claros para submeter suas propostas à assembleia. É verdade que muitas vezes as administrações possuem o poder de criar obstáculos às propostas. E as que chegam às assembleias frequentemente possuem a característica de ser non binding, ou seja, de implementação facultativa.
Já no Reino Unido, a temporada de assembleias de 2012 ficou conhecida como shareholder spring, tendo em vista o número de propostas de acionistas que foram levadas às assembleias, e em muitos casos aprovadas. Elas diziam respeito a várias questões, incluindo o papel do Presidente Executivo e a remuneração dos administradores.
Num futuro não muito distante, as empresas brasileiras chegarão à conclusão de que facilitar o encaminhamento de propostas dos acionistas é em seu próprio interesse. Claro que correm também o risco de esta possibilidade chegar por alterações regulatórias. Mas já observamos companhias que, através de um diálogo construtivo com seus investidores de longo prazo, possibilitam na prática a inclusão de propostas de interesse destes na pauta da assembleia.
Esta é portanto mais uma atividade que desafiará o profissional de RI do século XXI. A partir da existência de um diálogo bidirecional, em adição às interações entre investidores e conselhos, as companhias deverão ter a capacidade de identificar e encaminhar, através de processos transparentes, as propostas que os acionistas desejam ver debatidas em assembleia.
Uma consequência importante desse fato é que os chamados manuais de participação na assembleia, de uso crescente pela nossas empresas, e fortemente estimulado pela CVM devem estar sob responsabilidade da área de RI. Este documento normalmente é preparado quase que exclusivamente pelo departamento jurídico para atender às formalidades legais. Mas a partir do momento em que a companhia se preocupe em ouvir os investidores, a confecção do manual passa a depender não apenas das necessidades legais, mas sim da melhor maneira de atender às expectativas dos acionistas. E mais uma vez a área da companhia melhor equipada para dar esta abordagem ao documento é a área de RI.
6. O Processo Eleitoral
Obviamente não existe proposta de acionistas mais corriqueira do que o encaminhamento de candidaturas para compor o Conselho de Administração da companhia. Como dito acima, a legislação brasileira é profícua em mecanismos para permitir a eleição de administradores pelas minorias, notadamente através do voto em separado ou do voto múltiplo.
O processo que acontece hoje é absolutamente anacrônico. Minoritários se reúnem, tentando atingir os parâmetros legais ou estatutários para eleger os profissionais que consideram adequados. Raramente existe uma interação entre o conselho incumbente e esses investidores – nem entre controladores e minoritários de uma maneira geral.
As candidaturas são portanto lançadas na própria assembleia, seguindo-se um processo democrático mas caótico de apuração de resultados (nem sempre seguindo as formalidades devidas).
Nos conclaves mais aguerridos, votos são impugnados por conta de carimbos faltantes na documentação (o caráter burocrático do processo permite todo tipo de pegadinha). Mas o pior é nos casos das grandes companhias. Nestas, a elevada presença de investidores institucionais e notadamente estrangeiros significa que as candidaturas lançadas na própria reunião raramente conseguirão o apoio necessário para se eleger. É importante que os nomes sejam divulgados oficialmente com antecedência, para que os sistemas automatizados e as procurações possam ser direcionadas aos candidatos oferecidos.
O processo parece construído para não funcionar
Mas o pior é que mesmo quando funciona – e quando há boa vontade por parte da administração incumbente – nada garante que o resultado final será o melhor conselho de administração possível para a companhia. Na verdade, dificilmente será. Ele será o resultado da soma simples das vontades de cada grupo de donos, sem que haja uma preocupação com o resultado final da obra.
Viola-se portanto, outra recomendação fundamental do Código do IBGC: “Em qualquer caso, deve-se buscar diversidade de experiências, qualificações e estilos de comportamento para que o órgão reúna as competências necessárias ao exercício de suas atribuições.”
O corolário desta recomendação é que a construção de um conselho de administração deve ser um projeto integrado, onde a colaboração de cada administrador deve ser medido não pela sua capacidade individual, mas pela combinação de seus atributos com os futuros colegas. Em outras palavras, todos os interessados em influenciar o processo de eleição devem ter a capacidade de conversar previamente no sentido de identificar as melhores pessoas para compor o órgão. Um excelente conselheiro em um caso pode ser extremamente inadequado para outro caso, dependendo da realidade da companhia e dos seus pares.
Esse diálogo já ocorre em muitas empresas sem acionistas controladores. Ainda que o processo de construção do conselho seja dominado pela administração incumbente, com base em processo de avaliação dos conselheiros existentes, as opiniões dos investidores são levadas em conta na seleção das candidaturas. Constrói-se assim um colegiado que tenha de fato capacidade de agregar valor para a companhia.
Por óbvio, a interação entre os donos para a construção desse conselho ideal não prescinde da existência da comunicação bilateral e da abertura da administração para interações com os investidores. E mais uma vez o profissional de RI coloca-se como ativo estratégico para viabilizar esta atividade que, em sua essência, determina o futuro da organização.
7. A Assembleia
E o que não dizer da própria assembleia ? Quem normalmente é o responsável pela sua organização e conclusão ? O departamento jurídico, é claro. Desde a elaboração do Manual da Assembleia, do Edital e do material de apoio até a publicação da ata, o processo hoje é praticamente dominado em sua integridade pelos advogados.
A consequência dessa realidade é que as assembleias são verdadeiros pesadelos para os investidores. Aquela que deveria ser a oportunidade maior de interação entre a alta administração e os seus fornecedores de capital acaba sendo um teatro jurídico, onde a maior preocupação é com o tráfego de papéis carimbados, e não com as eventuais opiniões que serão trocadas. Isso tem que mudar.
A transferência da responsabilidade pela assembleia do jurídico para o RI pode ser a chave dessa mudança. Ao colocar o conclave sob a responsabilidade de profissionais experientes na compreensão das expectativas dos investidores, e preocupados com a satisfação desses enquanto donos da companhia, permitiria um foco na resolução dos problemas e dos obstáculos que esses eventos representam. Um exemplo é a adoção do princípio de boa fé na conferência dos documentos de representação, que já é realidade nos estatutos de algumas empresas. Ao abrir mão, ainda que milimetricamente, das formalidades legais prevista para o evento, a maior parte dos advogados arrepia-se. Mas essa flexibilização é a única forma de permitir que a assembleia torne-se um evento relevante. Por mais que dê trabalho, a empresa só tem a ganhar com isso.
É óbvio que os departamentos jurídicos seguirão tendo um papel fundamental nas assembleias – afinal, elas são eventos eminentemente jurídicos. Mas a transferência da responsabilidade para o RI pode determinar uma verdadeira revolução em nossas assembleias. As empresas que começarem mais cedo este processo colherão os frutos do seu pioneirismo. E aos poucos entenderão que esta é de fato a melhor maneira de se relacionar com os seus DONOS.
8. Conclusões
Além dos aspectos comumente lembrados a respeito do potencial estratégico da atividade de RI, este autor modestamente acredita que ainda estamos arranhando a superfície desse potencial.
Quando empresas e profissionais de RI compreenderem que estão se relacionando com os DONOS da companhia, e que esses donos possuem necessidades que hoje não são atendidos, abriremos o caminho para empresas melhores em nosso país – e para desafios cada vez maiores para o profissional de relações com os investidores – ou, devemos dizer, de relações com os proprietários.
Mauro Rodrigues da Cunha
é economista formado pela PUC-RJ, com MBA na Universidade de Chicago, e presidente da AMEC – Associação de Investidores no Mercado de Capitais.
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