Recentemente, por meio de uma emenda à Medida Provisória 675, procurou-se, mais uma vez, extinguir o equivocadamente denominado “incentivo fiscal” da dedução dos juros sobre o capital próprio - JCP na apuração dos tributos sobre o lucro. O argumento para sua extinção é falso e decorre, quero crer, da falta de conhecimento daqueles que lhe são contrários, a começar pelo simples fato de que a dedução dos JCP não é um “incentivo fiscal”.
Trata-se, em verdade, de um instrumento de equilíbrio quer das finanças empresariais quer da relação dos sócios da empresa com os demais agentes do mercado, como se tentará esclarecer neste texto.
A dedução limitada da remuneração dos juros sobre o capital próprio – JCP surgiu em meados da década de 1990, momento em que o Brasil se livrava da inércia inflacionária, sendo extinta a correção monetária de balanço, até como contribuição ao controle monetário do País. Essa dedução foi prevista na legislação tributária para, de alguma forma, ainda que incompleta, garantir a apuração dos tributos sobre o lucro (Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL) mais equilibrada, tendo em vista a inflação que ainda persiste – conquanto em patamares significativamente menores do que no início da mencionada década. A dedução dos JCP, então, longe de ser um “benefício fiscal”, é um mecanismo de correção do patrimônio líquido da empresa e, por decorrência, dos créditos que os sócios têm perante a sociedade.
Com a correção monetária de balanço, as finanças das empresas absorviam o impacto inflacionário por meio da atualização do seu ativo fixo (permanente) e do patrimônio líquido (passivo fixo). Essa foi a sistemática adotada para refletir a exposição de ativos e passivos à corrosão inflacionária. Extinta a correção monetária de balanço, como parte dos ajustes realizados no âmbito do Plano Real, o valor do ativo fixo poderia continuar a ser atualizado, por meio da reserva de reavaliação (atualmente suspensa pela legislação contábil), porém, era preciso garantir a atualização do passivo fixo (patrimônio líquido): a solução foi prever a dedutibilidade, ainda que dentro de limites legais, da remuneração dos juros sobre o capital próprio – JCP.
Os limites estabelecidos em lei para a dedução dos JCP são bastante razoáveis, quais sejam: (i) utilização da Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP como índice de correção do patrimônio líquido e (ii) necessidade de apuração de lucro ou de existência de lucros acumulados em montante referente ao dobro dos JCP pagos. Uma simulação dos efeitos inflacionários sobre as finanças empresariais, expressas na contabilidade, do período pós IFRS (padrão internacional de contabilidade, em vigor no Brasil desde 2008), aponta para a razoabilidade desse mecanismo de equilíbrio: de 2009 a 2014, o IPCA acumulado foi de aproximadamente 40%; já a variação da TJLP do mesmo período chegou aos 39%. A exigência de que a empresa tenha apurado lucro, no período ou em períodos anteriores, de maneira acumulada, assegura a continuidade da sua atividade econômica, porque se trata de pagamento aos sócios.
Considerando esta relação societária, a remuneração dos JCP também busca o equilíbrio entre o investimento dos sócios (capital próprio) e de terceiros credores (bancos e outros titulares de dívida). Esse objetivo é atingido pela incidência de Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF à alíquota de 15% sobre o montante pago a título de JCP. O investimento de capital dos sócios, assim, sofre a tributação equiparada aos títulos de renda fixa de longo prazo (acima de 2 anos).
Ao combinar a possibilidade de a empresa remunerar seus sócios com JCP e a sua tributação equiparada aos investimentos de renda fixa, concomitantemente aos equilíbrios das finanças empresariais e da sua relação societária, a legislação blindou os demais credores empresa. Isso acontece porque desestimula o sócio de emprestar recursos financeiros aos sócios, incentivando a aplicação de capital social. Assim, inibindo as operações de subcapitalização, a previsão de pagamento de JCP mantém a garantia dos credores de dívida da empresa.
A repercussão jurídica da remuneração dos JCP é ainda pontuada pelo tratamento dado pela legislação. Ainda de acordo com a lei que previu a sua dedução, o valor pago a título de JCP pode ser imputado à parcela de dividendo mínimo garantido pela lei societária. Confirmam-se, assim, os efeitos societários dos JCP.
É importante reconhecer que aqueles que combatem a remuneração dos JCP contam com um poderoso aliado: a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Esse organismo internacional preparou o Plano de ação para o combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros (conhecido pela sua sigla em inglês para “Base Erosion and Profit Shifting” – BEPS) com medidas de combate a incentivos fiscais e planejamento tributário agressivo (ou abusivo). Dentre as medidas elencadas no BEPS a serem combatidas está a remuneração dos JCP no Brasil.
Mais uma vez, a falta de conhecimento justifica a inclusão dos JCP na lista negra da OCDE. Os dois motivos de equilíbrio acima apresentados servem para questionar também essa ingerência internacional na legislação tributária brasileira, a saber:
A maioria dos países que fazem parte da OCDE não sabe o que significa inflação e efeitos da correção monetária nas finanças das empresas, simplesmente porque não tem tido índices inflacionários relevantes num passado recente. Os elaboradores do BEPS, que, diga-se, são indicados pelos ministros da fazenda dos países membros da OCDE, têm uma visão parcial da remuneração dos JCP no Brasil: eles vêem somente a dedução dos tributos sobre o lucro. Eles não percebem, por falta de conhecimento talvez, os efeitos perversos da inflação e por isso não enxergam o equilíbrio garantido pelos JCP.
Por outro lado, os membros da OCDE praticam uma taxa de juros suportável e mantêm um mercado de capitais, tanto de ações quanto de dívida, maduro. O investimento de capital próprio nesses países não concorre com as maiores taxas de juros do Planeta e não estão inseridas no contexto de um mercado de capitais em formação. Dessa forma, os elaboradores do BEPS não conseguem perceber o equilíbrio que os JCP garantem na relação societária das empresas e no mercado de capitais.
Procurando manter a dedutibilidade da remuneração dos JCP, o Governo Federal, como medida do pacote de ajuste fiscal, anunciou que os JCP não seriam extintos, mas estariam limitados à taxa de juros de 5% e sujeitos à alíquota de 18% de IRRF. Dos pontos de vista econômico e contábil, essas alterações na dedutibilidade dos JCP são prejudiciais aos equilíbrios perseguidos pela legislação tributária quando passou a prever essa dedução. Já do ponto de vista jurídico, as medidas com relação aos JCP podem ser consideradas inconstitucionais.
Por um lado, a fixação do teto de 5% para a taxa de juros indica a transferência da tributação sobre a renda para a tributação sobre o patrimônio. Caso não seja assegurada alguma forma eficaz de equilíbrio das finanças das empresas frente ao processo inflacionário, os tributos sobre o lucro (IRPJ/CSLL) extrapolaram sua base de cálculo, atingindo não o acréscimo patrimonial, mas o patrimônio em si. Além dos malefícios gerados pela própria inflação, as empresas não conseguiriam recompor seu patrimônio para efeito de incidência de IRPJ/CSLL.
De outro lado, a majoração da alíquota do IRRF para 18% fere a isonomia entre os investidores de renda fixa de longo prazo. Some-se a isso o efeito indutor deletério desse aumento que provocará a redução de investimento de capital próprio, isto é, de investimento produtivo, incentivando o investimento em dívida ou no mercado financeiro (investimento especulativo). Também esse aumento de imposto não encontra respaldo jurídico e legal para se manter.
O debate sobre a remuneração dos JCP está enviesado e carente de conhecimento técnico mais aprofundado. Em momento de crise econômica, medidas de estímulo a produção deveriam ser incentivadas e não extintas ou reduzidas. O setor produtivo brasileiro deve estar atento para essas tentativas de alterar as regras de dedutibilidade dos JCP.
Edison Carlos Fernandes
sócio do FF LAW, professor do Núcleo de Direito Tributário e Finanças Públicas do Centro de Extensão Universitária – CEU Escola de Direito e da FGV Direito SP (GVlaw).
edison.fernandes@fflaw.com.br