Em Pauta

VALE: A AVALANCHE PERFEITA

Quase 200 mortos, mais de 130 desaparecidos, perda de R$ 70 bilhões de valor de mercado, destruição de uma reputação e aumento do endividamento. A tragédia de Brumadinho, devastada pelo rompimento da barragem de rejeitos da Vale no Córrego do Feijão, custará mais do que isso para a comunidade local e outros stakeholders da empresa, deixando a lição de que é preciso repensar a governança corporativa das companhias brasileiras, principalmente no que se refere à gestão de riscos.

No momento, a empresa se encontra dentro de uma “tempestade perfeita”, conceito que se refere à situação na qual um evento não favorável é drasticamente agravado pela ocorrência de uma rara combinação de circunstâncias, transformando-se em um desastre. Neste caso, entretanto, foi a “avalanche perfeita”.

"A Vale é uma jóia brasileira que não pode ser condenada por um acidente que aconteceu numa de suas barragens, por maior que tenha sido a sua tragédia", disse o diretor-presidente da Vale, Fabio Schvartsman ao participar de audiência pública na Câmara dos Deputados. A declaração, ao invés de acalmar os ânimos, piorou a situação da empresa, que teve sua reputação levada junto com a lama dos resíduos. A tragédia acontece apenas três anos após o rompimento da barragem de Mariana, a qual seguia o mesmo modelo.

O fato de assumir o erro, não minimiza a responsabilidade da empresa, que deveria ter adotado uma postura mais rígida de prevenção. Reportagem do Wall Street Journal, publicada no dia 24 de fevereiro, relatou que funcionários da Vale e auditores da TÜV SÜD, empresa alemã de certificações contratada para conduzir auditorias sobre a segurança da estrutura, sabiam por meses das condições perigosas da barragem. A matéria destaca que as regras de segurança em minas no Brasil são “especialmente frouxas” e que, apesar de os auditores alemães expressarem preocupação com a segurança, os mesmos permaneceram assinando os documentos.

“É preciso entender que custo evitado é lucro. Por isso é tão importante adotar medidas preventivas com análises de risco que vão além das questões econômico-financeiras, mas também ambientais, incluindo nesta avaliação a sociedade. Aquele gestor do século 21 que só trabalha gerenciando risco financeiro e econômico voltado para a lucratividade da empresa, vai ser penalizado sobretudo nos processos produtivos que podem ter grandes interações com o meio ambiente”, afirma Felipe Brasil da Costa, doutor em agronomia pela UFRJ e professor da Universidade Veiga de Almeida.

O caso da Vale ilustra esta postura equivocada. Pouco antes da tragédia em Brumadinho, o banco BTG Pactual emitiu relatório otimista com relação às ações da mineradora, o qual estimava que a empresa poderia alcançar o valor de mercado de US$ 100 bilhões. Naquele momento (em 08/01/2019), a empresa valia US$ 74 bilhões. Poucos dias após Brumadinho, o valor da mineradora encolheu mais de R$ 70 bilhões, a maior perda da história do mercado de ações brasileiro em apenas um dia, segundo dados da Economática.

A empresa suspendeu o pagamento de dividendos e juros sobre o capital próprio (remuneração aos acionistas) e de remuneração variável (bônus), teve recursos bloqueados por ações judiciais e diversas instituições financeiras cortaram suas recomendações de investimentos para os ativos da companhia.

Fundos estrangeiros estão excluindo as ações da Vale de suas carteiras. Sua nota de classificação de risco foi rebaixada pela agência Fitch, e a Moody´s deve seguir o mesmo caminho, pois a empresa enfrentará crescimento dos passivos e aumento das sanções devido ao acidente.

As ações também foram excluídas do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da B3 e a empresa também sofrerá outras sanções que agravam sua reputação e levam à perda do valor da marca. “O vínculo de confiança foi quebrado. Pela junção de vários fatores a empresa está pagando um preço caro por ainda ter a pendência de Mariana. Ao não ter resolvido os problemas anteriores, o valor cobrado é muito maior”, diz Dario Menezes, diretor do GroupCaliber, consultoria europeia especializada em gestão da reputação e professor de Gestão da Marca e Reputação Corporativa da Fundação Getúlio Vargas e da ESPM.

Ele estima que demorará de seis a oito anos para que a Vale se recupere do tombo. “A empresa no momento ainda está recebendo os impactos e precisa criar uma estratégia. A comunicação é um desafio para evitar a perda maior de credibilidade”, alerta. A empresa agora precisa lutar para recuperar seu nome frente a todos os seus stakeholders, desde os próprios funcionários à comunidade investidora.

O erro repetido de Mariana e novas ameaças de rompimento de outras barragens agravam o medo de que o erro irá se repetir novamente. Diante do risco, algumas cidades de Minas Gerais têm sido evacuadas. “Não é o que a empresa faz, mas como ela faz. Se fosse “o que”, todas as empresas de mineração estariam com problemas, mas a questão é “como”. A Vale já tem feridas abertas para serem resolvidas. A visão que fica para o público é que Brumadinho era a crônica de uma morte anunciada: a empresa sabia do problema e do risco e estava postergando uma tomada de decisão”, explica Menezes.

O trabalho é árduo e requer mais que a humildade do presidente da empresa afirmando que errou ou compensação financeira aos afetados pela tragédia. “A Vale tem corpo técnico qualificado e métodos eficientes de gestão e capital, porém os desafios de Brumadinho, somados às pendências de Mariana, irão cobrar um preço elevado o que acabará demandando um prazo longo para a reconstrução da confiança perdida”, complementa Menezes.

Correr riscos faz parte da atividade produtiva, mas sua gestão correta é que faz a diferença entre o sucesso e o fracasso dos negócios. “Uma das questões centrais na gestão de riscos pelas empresas é o entendimento de que eles são intrínsecos à operação do negócio e à atividade, seja ela qual for. Não existe atividade produtiva sem risco”, resume Marina Grossi, economista e presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) desde 2010. Ela lembra que o risco é sempre multidimensional, multifatorial, e muitas vezes, interconectado. “O risco reputacional, por exemplo, está quase sempre associado aos riscos ambientais, especialmente em empresas de mineração, indústria química, petrolífera e aviação”, afirma. 

Reconstruir a confiança requer tempo e muito recurso. Somente de indenizações, foram doados R$ 100 mil para cada uma das famílias dos falecidos ou desaparecidos, um total de 264 pagamentos efetuados. Além disso, a Vale efetuou 56 pagamentos no valor de R$ 50 mil cada, para quem residia na zona de auto salvamento. Fora isso, foram mais R$ 2,6 milhões repassados à Prefeitura de Brumadinho para a compra de equipamentos emergenciais e contratação de profissionais das áreas de saúde e psicossocial, com o objetivo de ampliar a ajuda humanitária do município aos atingidos. Outros R$ 115 milhões foram usados para aquisição de medicamentos, de água, equipamentos e outros custos logísticos.

Tais gastos e retaliações são apenas o começo, mas poderiam ter sido evitados se o conceito mais moderno de gestão de riscos tivesse sido adotado. As empresas, em geral, classificam riscos de duas formas: a probabilidade de algo dar errado e o dano potencial. No entanto, é preciso mais que isso: o risco é igual a perigo vezes vulnerabilidade socioambiental. “A Vale trata estas barragens como dano potencial alto, pois atinge muitas pessoas e o meio ambiente. Mas, vê o risco baixo, ou seja, a potencialidade de a barragem se romper é pequena. Como era uma obra de 1976, teoricamente exibia uma certa estabilidade e, desde 2016, não recebia mais rejeito. Então, exibia estabilidade com perigo baixo”, explica Júlio César da Silva, professor do departamento de Engenharia Sanitária e do Meio Ambiente da UERJ, coordenador de Engenharia Civil da UVA e secretário executivo da ABP-RRD.

O especialista destaca que, na área de risco, a visão deve ser diferente. “Se o perigo é baixo e a potencialidade de dano é alta, o risco não pode ser classificado como baixo. Neste caso, o risco é alto por conta do tamanho do dano”, diz. A própria legislação tem a visão equivocada. “As licenças são dadas de acordo com o risco de rompimento. A gente acredita que a primeira coisa que precisa ser repensada é o conceito de risco que deve ser revisto quando falamos de segurança de barragem”, complementa.

Costa concorda, “os empresários têm empregado um conceito de risco atrasado e completamente fora daquilo que é realmente utilizado em outros países. Se o risco de dano é altíssimo a ponto de você ter que fazer uma evacuação da área em menos de 30 segundos colocando em risco trabalhadores embaixo da barragem, é ter muita confiança de que o relatório que você está entregando e que aquele aval que o órgão ambiental está dando garantem que a barragem não vai ceder”, alerta Costa.

Ele lembra que o rejeito é o “irmão pobre” da atividade fim da Vale: a extração de minério. “Qualquer investimento que eu faça em rejeito, estou jogando o dinheiro fora porque não traz lucratividade. Esta é a concepção de um gestor míope”, critica. Neste sentido, o mais barato é optar pela pior gestão de rejeitos, que é a barragem a montante, em que os diques de contenção se sustentam sobre os rejeitos ou sedimentos previamente depositados. Todavia, a empresa poderia ter optado por um modelo diferente, com o aproveitamento parcial dos rejeitos.

Tarde demais?
A Agência Nacional da Mineração (ANM) determinou a eliminação até 2021 de todas as barragens de alteamento pelo método a montante. Existem, pelo menos, 88 barragens do tipo a montante na lista divulgada pela ANM. Quarenta e três delas são de alto potencial, ou seja, com alto nível de impacto econômico, social e ambiental.

O Brasil conta com 769 barragens, das quais 425 estão inseridas na PNSB (Política de Nacional de Segurança de Barragens), gerenciadas pelo órgão. Destas 290 estão localizadas no Estado de Minas Gerais. “O que vimos em Mariana e em Brumadinho não é diferente do que pode acontecer com estas mais de 700 barragens. Precisamos que estas tragédias realmente levem a transformação de nossa área de produção em algo mais seguro. A falsa ideia de que redução de custos leva à maior lucratividade tem levado as empresas a correrem riscos desnecessários. Não é apenas estar em dia com o regulador ambiental”, diz Costa.

Se a medida fosse tomada anteriormente teria evitado centenas de mortes, assim como danos ambientais e econômicos. “Do ponto de vista de mapeamento de riscos, já existe conhecimento compartilhado e ferramentas suficientemente testadas e adotadas pelo mercado como um todo. A questão nos parece ser de incorporar os riscos nas suas diferentes dimensões ao nível máximo nas decisões de negócio”, observa Marina Grossi. Para a economista, a empresa deve fazer escolhas, arcando com aquilo que, no mundo da sustentabilidade corporativa, são denominados como “custos da mudança”, priorizando algumas ações e tendo uma visão sistêmica do negócio. De acordo com o levantamento do SOS Mata Atlântica, houve uma perda de 112 hectares de florestas nativas e o rio Paraopeba ficou indisponível para qualquer tipo de uso, pois o rejeito contaminou toda a sua extensão.

Cultura de risco
No Brasil falta a chamada cultura de risco. “Há a questão das empresas não treinarem a sociedade e a sociedade não querer ser treinada porque acredita que nunca vai acontecer. Porém, precisamos entender que não existe risco zero”, resume Júlio César da Silva. No caso da Vale era preciso ter simulado o que aconteceria com o rompimento da barragem, mensurando a área atingida e treinando a comunidade ao redor para definir onde deveriam ir e como se portar. “Vimos dois problemas. A sirene de alarme não soou, mas mesmo que tivesse soado, as pessoas não saberiam o que fazer”, comenta.

A sirene de alerta, que deveria soar em caso de algum incidente, foi "engolfada" pela lama por conta da rapidez com que a tragédia aconteceu, segundo o presidente da Vale. “Se aconteceu isso foi um erro de plano. Quando se faz a simulação, buscamos saber onde a lama vai passar. A busca deve ser por minimizar o risco, porém não o ignorar, o que remete para a importância de um programa emergencial de ação, caso ocorra o problema”, diz César da Silva. “Precisamos fazer prevenção, preparação e mitigação de resposta. Mas o que a Defesa Civil faz bem é a resposta após a tragédia, o que é muito ruim. Fazemos pouca prevenção e preparação”, diz.

Dependência
Para as comunidades que vivem próximas às barragens, o paradoxo se faz presente. No momento da tragédia, a empresa é rechaçada. Mas há a dependência econômica da atividade. “A imagem da Vale está muito ruim perante a sociedade como um todo, mas ela é muito pior na sociedade que não tem sua vida vinculada diretamente à empresa. Num primeiro momento existe a revolta, mas também há a questão de sobrevida. Estas pessoas são dependentes, o que é muito ruim, pois as próprias empresas e governantes se aproveitam desta dependência”, complementa César Silva.

A editora da revista Plurale, especializada em sustentabilidade, Sônia Araripe observa que a tragédia de Mariana e Brumadinho deixam expostas a crise de Governança e do modelo econômico. “Não se pode pensar apenas no retorno ao acionista...na rentabilidade. E a sociedade? E as pessoas? Importante destacar que as empresas operam com licenças. Estas tragédias também apontaram para uma aliança "viciada" entre o Estado - nos três níveis: União, Estado e Município - e as empresas. É como se o Estado chancelasse que aquela atividade é a forma mais rápida e eficiente para gerar impostos, renda e empregos na região”, destaca.

A questão é repensar o elo entre o Estado e o setor privado. “Quem está zelando para que o desenvolvimento seja realmente sustentável e seguro? Fala-se que havia laudos, licenças, mas é algo que vai muito além. É preciso que as empresas de uma forma em geral reaprendam a ouvir e a pensar. Não é só seguir a legislação”, questiona.

Impunidade
Há controvérsias quanto ao rigor da legislação brasileira e se são suficientes para evitar tragédias como esta. Mas é consenso que, se a legislação vigente fosse cumprida e os órgãos fiscalizadores funcionassem bem, já seria um importante passo. “Nossa legislação ambiental é muito completa e serviu de referência para outros países, mas na prática a política destrói. Hoje em dia quando falamos de normas ambientais do ponto de vista de grandes tragédias, vemos que as penalidades ainda são brandas. É a garantia expressa de impunidade. Eu prefiro pagar multas e reincidir”, destaca o advogado especialista em direito ambiental, Francisco Carrera.

A penalidade branda aliada com a visão de impunidade e falta de uma fiscalização efetiva por parte do governo, levam à recorrência de tragédias que tornam a imagem brasileira no exterior negativa. “Legislações já existem, o problema é colocar em prática. Precisamos que as leis sejam aplicadas. Se temos leis e empresas de ponta, porque isso ainda acontece no Brasil?”, questiona Menezes.


Continua...