Com satisfação, registramos a positiva repercussão das 14 entrevistas/depoimentos publicados na seção “Em Pauta” da Revista RI - Fev.2023 (no.268), relacionadas ao caso Americanas. Nossos entrevistados - em sua maioria indicados por Heloisa Belotti Bedicks, a quem agradecemos o primeiro contato - levantaram diversos pontos relevantes sobre o assunto. Algumas dessas reflexões são trazidas a esta matéria, dedicada a entender possíveis causas da ocorrência e da não antecipação de tsunamis corporativos.
A Americanas S/A que, com mais de nove décadas de existência, parecia sustentável, subitamente, mostrou uma face corporativa inesperada para muitos. O que pode ter ocorrido, à luz do que se espera de um bom modelo de gestão organizacional? Da atuação de alguns agentes, internos e externos? Do ambiente institucional? Do macroambiente econômico mais amplo? Após a estupefação com o Fato Relevante de 11 de janeiro de 2023, decidimo-nos por explorar mais o ocorrido.
Tendo em vista que o caso Americanas ainda se encontra sob apuração da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e das demais autoridades competentes, e que gostaríamos de aqui explorar o nosso livre pensar, optamos por discorrer, nesta matéria, sobre uma empresa “hipotética”, a “Companhia A”: uma sociedade anônima com ações na B3, a bolsa de valores brasileira, que anuncia ao mercado, subitamente, sérios problemas com as suas demonstrações contábeis. Não nos preocupam aqui os mecanismos de contabilidade criativa específicos empregados, mas o que pode causar um tsunami dessa natureza, ou então, prejudicar a percepção de que este ocorreria.
Consideremos as seguintes informações hipotéticas sobre a empresa também hipotética do nosso livre pensar:
O CASO “COMPANHIA A”, QUE PARECIA SUSTENTÁVEL
1) A Companhia tem longo histórico de existência e atuação no mercado acionário - Em 2023, a empresa completa muitas décadas de existência e algumas décadas de negociações no mercado. Além dos impactos socioeconômicos e da perda de patrimônio dos acionistas, é provável que as notícias tenham entristecido muitos brasileiros, pois a empresa pode ser considerada uma espécie de patrimônio da cultura brasileira. Muitos cidadãos e cidadãs do nosso País, desde a infância, tiveram experiências agradáveis relacionadas aos seus produtos e serviços.
2) A Companhia tem muita importância para um grande conjunto de stakeholders - As decisões dos líderes da Companhia A impactam vários universos de agentes, quais sejam: milhares de empregados, que dependem da empresa para sua subsistência; milhares de acionistas não controladores (minoritários), muitos deles com poder econômico muito inferior ao de seus maiores acionistas. Poucos sócios de referência integram a sociedade empresária; milhares de investidores pessoas físicas em fundos de pensão, que sofreram perdas em suas aposentadorias. Ainda que tais perdas fiquem diluídas nos portfólios de investimentos desses fundos, eles perderam significativo valor econômico, correspondente ao valor perdido pela Companhia A, proporcionalizado à fatia de ações adquirida em cada caso. Aposentadorias ficaram prejudicadas; milhares de fornecedores de produtos, com tamanhos diversos, que necessitam ser pagos para poderem honrar seus compromissos. Esses fornecedores, por sua vez, têm empregados, sócios, fornecedores e outros stakeholders próprios para contemplar; e, um grupo menor, mas relevante, de emprestadores de recursos financeiros, entre bancos privados e estatais. O caso vai além da seara privada, já que a Companhia A tem recursos emprestados do BNDES e do Banco do Brasil. Esta não é uma daquelas situações em que algo sério acontece na esfera privada e a esfera pública não é afetada. Conforme o desdobramento dos fatos, o caso Companhia A afetará uma ampla cadeia de valor, um amplo ecossistema socioeconômico com muitos stakeholders.
3) A Companhia está listada no Novo Mercado da B3 e afirmava adotar práticas ESG - O Novo Mercado é considerado a elite da governança corporativa das empresas listadas em bolsa no Brasil. É o segmento de mercado que mais protege os acionistas não controladores (minoritários), em níveis superiores àquele estabelecido na Lei das Sociedades Anônimas (6.404, 15/12/1976). Não se esperaria que uma empresa com ações listadas no Novo Mercado fizesse qualquer tipo de anúncio estupefaciente ao mercado. A Companhia A fez, apontando falhas contábeis da ordem de bilhões de reais, que inflaram os lucros e dividendos. Ademais, a empresa dizia adotar práticas ESG – Environmental, Social and Governance, o que torna o ocorrido mais surpreendente.
4) Os sócios de referência se manifestaram - Os sócios de referência da Companhia alegaram, em comunicado ao mercado, que nada sabiam. E apontaram que a Companhia era auditada por empresa de prestígio. Esta, por seu turno, tem se mantido em silêncio, esperando-se que apresente sua argumentação junto à CVM e aos demais órgãos investigativos. Adicionalmente, os sócios de referência não dão mostras de que poderão investir significativamente na sociedade. O que isso sinalizaria? Baixo nível de confiança no negócio, desinteresse ou ambos?
5) O que pode ter acontecido com a Companhia A? - Se houve um tempo ao longo do qual a empresa e seus negócios se mostraram sustentáveis, algo, ou mudou subitamente, ou então, foi mudando ao longo do tempo. As evidências parecem indicar que, ao longo da trajetória corporativa, a realidade da empresa foi se modificando, até chegar ao pedido de recuperação judicial. Por que isso pode ter acontecido? E por que não foi percebido em algum momento antes do aviso ao mercado?
A seguir, apresentamos um conjunto de reflexões, em busca de possíveis porquês, distribuídas entre quatro blocos de livre pensar: 1) modelo de gestão da Companhia; 2) atuação de agentes específicos, internos e externos; 3) contexto institucional e das regras do jogo; e, 4) macroambiente e riscos sistêmicos. Cada bloco de possíveis causas traz, ao final, uma ou mais sugestões de precauções.
SOBRE O MODELO DE GESTÃO: QUAIS PODEM TER SIDO AS VIOLAÇÕES A FUNDAMENTOS BÁSICOS?
Stakeholders esperam que empresas adotem modelos de gestão sustentáveis, isto é, com segurança de atendimento às suas expectativas. Dito isso, apresentamos, em seguida, breves comentários sobre sete fundamentos que consideramos muitos relevantes para uma gestão sustentável, que podem ter sido violados, em parte ou no todo, no caso Companhia A por seus líderes, com ajuda de outros profissionais. Aqui e ali, contribuições de entrevistados da edição anterior nos ajudam em nosso livre pensar.
Fundamento 1: Ética - No capitalismo de stakeholders, espera-se que as empresas e demais organizações da economia operem com base em princípios éticos e esta é uma premissa sobre a qual poucas pessoas ousariam discordar; ao menos, publicamente. Muito bem, teria faltado a ética no caso da Companhia A? Em quais agentes? A percepção é que sim, que pode ter faltado ética em algumas pessoas que deveriam zelar pelo futuro da organização. Ocorre que a ética é base de algo muito caro aos negócios: confiança. Se a ética faltar e não houver restauração considerada séria, não restará confiança.
A questão da ética é uma das mais críticas nas organizações, pois, muitas vezes, não é possível detectar, a tempo de intervir, problemas de cunho ético em seres humanos, sejam estes sócios, administradores (por vezes, a mesma pessoa tem esses dois papeis!) ou demais empregados de uma organização, mesmo que se tomem todos os cuidados possíveis. Não é por outra razão que se criam códigos de conduta, bem como comitês de ética, visando ao tratamento das eventuais violações a normas éticas.
Lembramos, ainda, que os quatro princípios da governança corporativa – transparência, prestação de contas, equidade e responsabilidade corporativa – são de cunho ético. Ao lado de outros princípios fundamentais, de base, para que as empresas atuem em sintonia com o que delas se espera, os quatro princípios clássicos de governança, que pairam acima da própria lógica de governança (vista no fundamento 3), teriam sido violados na Companhia A, em linha com a entrevista de Anna Maria Guimarães na edição passada desta Revista RI.
Fundamento 2: Propósito - O propósito é uma razão de ser mais elevada de uma organização empresarial, vinculada a objetivos planetários mais amplos; preferencialmente, aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
Conforme bem observa o professor Alexandre Di Miceli, um dos entrevistados da edição anterior, a criação de valor para os stakeholders, incluindo-se os acionistas, depende da presença de um propósito maior, “além do resultado financeiro internalizado por todos [...]”.
Se a Companhia A teve um propósito estabelecido nos termos explicitados pelo entrevistado, isto é, prevendo ir além do resultado financeiro e com grande atenção aos interesses de todos os stakeholders, o alcance desse propósito parece não ter sido priorizado, o que pode causar sérios distúrbios em seu amplo ecossistema socioeconômico. A Companhia simplesmente teria deixado de se encaixar em uma das premissas mais caras do capitalismo de stakeholders: ter e, sobretudo, respeitar o seu propósito.
Fundamento 3: Governança e sustentabilidade - As boas práticas de governança e sustentabilidade residem no âmago de uma administração responsável; preferencialmente, práticas ESG – Environmental, Social and Governance. Nesta Revista RI, muito temos publicado sobre as três letras da sigla EGS, abrangendo a governança (base) e as questões socioambientais.
A Companhia A, após tantos anos de existência e atuação, deu mostras de não ter adotado boas práticas. E ao lado da demonstração de governança sofrível – o anúncio estarrecedor feito ao mercado fala per se –, a Companhia entrou em crise criando imensas incertezas para um vasto ecossistema socioeconômico, povoado por muitos stakeholders, muitos dos quais retiram da empresa seu sustento e o de suas famílias.
Destaca-se que a empresa dizia adotar práticas ESG; diante do anúncio ao mercado, entretanto, pode-se supor que a implementação, provavelmente, visava à criação de uma certa narrativa para os stakeholders, destoante da realidade. ESG com outra lógica e boa implementação poderia ter feito diferença? Esta é a visão de Ana Luci Grizzi, entrevistada da edição anterior.
Fundamento 4: Alinhamento de interesses de todos os sócios - O alinhamento entre os interesses de todos os sócios independe do peso do capital, já que não faz sentido proporcionalizar a variável respeito, conforme as respectivas participações societárias. O respeito deve ser integral para todos os integrantes de uma sociedade. Teria existido tal alinhamento no caso da Companhia A?
Em sociedades empresárias, é comum que sócios com maior participação de capital influam mais diretamente na administração. Havendo evidências, no caso em questão, de que houve influência administrativa relevante de um ou mais sócios de referência, restará indagar: o alinhamento entre os interesses de todos os sócios terá existido?
Pode-se argumentar que todos os sócios da Companhia A ora sofrem com a crise, com as perdas de valor econômico e os desafios de uma empresa com muitas frentes de problemas para resolver e, no limite, sob o risco de deixar de existir. Todavia, permanece a indagação quanto à efetiva influência dos sócios de referência na administração.
Fundamento 5: Administração de riscos empresariais - Administração de riscos empresariais tem a ver com uma extensa gama de riscos, a serem mapeados, quantificados, tanto quanto possível, e tratados. Genericamente, riscos podem ser evitados, transferidos ou assumidos, com ou sem mitigação.
Na hipotética Companhia A, existe a percepção de que os riscos empresariais, especialmente aqueles associados a uma contabilidade criativa que, em algum momento, viria à luz, se nenhuma providência fosse tomada, no mínimo, não teriam sido devidamente tratados. O anúncio surpreendente (no pior sentido) da empresa ao mercado, novamente, fala per se.
Fundamento 6: Compliance com obrigações formais - Compliance com obrigações formais significa assegurar a fidelidade entre as informações disponibilizadas a públicos externos e aquelas reais.
Práticas de compliance incompatíveis com o que se espera de uma empresa listada do Novo Mercado da B3 foram empregadas pela Companhia A. O que significa que não houve compliance. Novamente – e pedindo desculpas aos leitores pela repetitividade: o anúncio estupefaciente de uma contabilidade fantasiosa fala per se.
Fundamento 7: Inteligência da arquitetura empresarial - Apresentamos, nos quadros a seguir, comentários sobre os cinco vértices da arquitetura de uma empresa, elementos técnicos de seu projeto, com base na teoria das organizações. E procuramos mostrar como esses elementos podem ter falhado na Companhia A.
1. Modelo de negócio e estratégia
O modelo de cada negócio é a lógica por meio da qual se pretende criar e entregar valor para os clientes; se isso não ocorrer, outros fornecedores tomarão clientes e mercado da empresa. Por seu turno, a estratégia – o caminho de sucesso da empresa para sair do presente e chegar ao futuro pretendido – deve ser bem desenhada e implementada, o que significa que o planejamento estratégico deve ter qualidade e ser bem executado.
Vários instrumentos podem ser usados na gestão de estratégias, nas fases de planejamento e execução, sendo exemplos: o modelo de análise das forças competitivas (Michael E. Porter), de análise de forças / fraquezas / oportunidades / riscos (SWOT – strengths, weaknesses, opportunities, threats), Balanced Scorecard – BSC (Robert S. Kaplan e David P. Norton), relacionado tanto ao planejamento quanto à execução, e muitos outros. Aos objetivos estratégicos, associam-se indicadores e metas a serem alcançadas na fase de execução. A execução da estratégia costuma ser mais crítica do que o planejamento: a maior parte de fracassos estratégicos decorre não do planejamento, mas da execução.
A apresentação de resultados irreais permite supor que os líderes da Companhia A deixaram de perceber defeitos críticos em seu modelo de negócio, estratégia, ou em ambos, não mudando tal realidade ao longo do tempo. Considerando comentário da entrevistada da edição anterior Andiara Petterle, talvez a Companhia A não tenha sido “capaz de fazer a transformação dos seus negócios”, sendo que “a conta ficou escondida do mercado”.
2. Estrutura
As estruturas organizacionais devem ser adequadas às necessidades de governança e gestão e não é por outra razão que se criam os conselhos de administração e seus comitês, os conselhos fiscais, as diretorias executivas, a auditoria interna e as áreas de contabilidade e de relações com investidores entre outras.
Sem perder de vista as necessidades citadas, já que as estruturas (áreas) criadas precisam funcionar a contento, deve-se buscar a otimização dessas estruturas, de maneira a favorecer a fluidez de processos e a evitar superposições de funções e gastos desnecessários. Muitas empresas organizam suas estruturas por processo, ampliando o alinhamento entre a estrutura e os processos, comentados mais abaixo.
No caso da Companhia A, há fortes questionamentos sobre o desempenho de estruturas como os conselhos de administração e seus comitês, o conselho fiscal e a auditoria interna, bem como sobre a diretoria executiva. Isto no plano da governança corporativa, pois, no ambiente de gestão das operações, há que considerar o desempenho das áreas de planejamento financeiro, contabilidade e outras.
3. Processos e tecnologia
Os processos, fluxos de trabalho estruturados que organizam atividades cotidianas e repetitivas de qualquer empresa, devem assegurar que as estratégias se materializem conforme planejado ou com os ajustes porventura necessários ao longo do tempo. O mapeamento de processos é muito importante para identificar inputs, outputs, tarefas, responsabilidades e indicadores críticos. Adicionalmente, é desejável que os processos estejam alinhados entre si, além de com as estruturas organizacionais.
Aparentemente, o processo de governança corporativa da Companhia A apresentou falhas em controles. Em linha com as considerações do professor Antônio Benedito Silva Oliveira, em sua entrevista da edição anterior, uma contabilidade inadequada entrega ao mercado informações financeiras que não refletem a realidade.
Ao mesmo tempo, as evidências sinalizam que podem ter falhado outros processos, tais como gestão da estratégia, planejamento financeiro e contabilidade entre outros, correspondentes às suas respectivas estruturas. O professor Carlos Roberto Kassai (Caio), também entrevistado na última edição, lembra que o planejamento financeiro e a contabilidade precisam ocorrer de forma integrada. Teria isso ocorrido na Companhia A?
Note-se que é quase sempre na dimensão dos processos e de projetos, vértice abordado a seguir, que melhorias necessárias nos demais fundamentos de um modelo de gestão sustentável são implementadas. Quando se discutem e se estabelecem/modificam modelos de negócio, estratégias, estruturas e outros vértices da arquitetura empresarial, é no plano dos processos e projetos que as mudanças acontecerão.
4. Projetos
Toda empresa que deseja prosperar requer projetos que assegurem a implantação de objetivos estratégicos, com especial destaque para a inovação estratégica. Tipicamente, projetos devem ser acompanhados em sua implantação, pois podem se desviar do planejamento original, especialmente na seara dos riscos e gastos envolvidos.
Confundir processos e projetos pode conduzir a grandes problemas: as dinâmicas são distintas. Processos são repetitivos e não têm prazo de validade. Já projetos são intervenções que, ou modificam processos, ou criam novos processos, tendo começo, meio e fim. Conforme o projeto, é importante, inclusive, separar a equipe para sua implementação, de maneira que este não seja negativamente afetado pelo dia a dia dos processos.
Em que medida os reais resultados da Companhia A não mostrados ao mercado não são devidos à insuficiência de bons projetos organizacionais, especialmente de natureza estratégica?
5. Pessoas, reconhecimento e cultura
Estudos organizacionais têm demonstrado, amplamente, que as pessoas necessitam ser atendidas em necessidades básicas e também naquelas mais elevadas. Além disso, o reconhecimento do esforço é imprescindível, por meio da criação de indicadores e metas – e espera-se que ligados, de alguma forma, à gestão da estratégia. E por fim, é desejável que a cultura favoreça a lógica de uma gestão sustentável.
Em suas respectivas entrevistas na edição anterior desta Revista RI, Eliane Aleixo Lustosa e Alexandre Di Miceli comentam, entre outras, questões relacionadas a pessoas, remuneração e cultura organizacional. No caso da Companhia A, algumas perguntas essenciais podem ser feitas. As lideranças estimulavam as contribuições dos profissionais no aperfeiçoamento de atividades e nas correções de erros? Práticas de remuneração de dirigentes podem ter induzido comportamentos arrojados e aumentado riscos? Essas práticas teriam criado, com o passar do tempo, uma cultura que chamaríamos aqui de não saudável, ou melhor dizendo, não sustentável?
Eduardo Borba, durante aula de Finanças para Conselhos do PFCC - Programa de Formação e Certificação de Conselheiros da Board Academy, reforçou: “Compensation drives behavior! Se os executivos são remunerados apenas pelo curto prazo, não haverá olhar para o futuro”.
Em suma: As considerações anteriores corroboram a metáfora do avião, apresentada pelo entrevistado Paulo Pinese em sua entrevista na edição anterior: um tsunami como o da Companhia A tem várias causas, correspondentes, até este ponto, à possível violação de alguns (ou de todos) os sete fundamentos de um modelo de gestão sustentável apresentados. E adiante, tratamos de outras causas possíveis. Qual seria a principal medida de prevenção a ser considerada em relação aos sete fundamentos talvez violados, parcialmente ou em sua totalidade, pela Companhia A? A nosso ver, líderes de empresas podem construir e operacionalizar um modelo de gestão sustentável. Dito isso, sigamos adiante com o nosso livre pensar.
SOBRE A ATUAÇÃO DE ALGUNS AGENTES: O QUE PODE TER OCORRIDO?
A seguir, trazemos reflexões relacionadas à atuação de alguns agentes específicos, internos e externos, considerando o caso da Companhia A. Estes breves comentários, mesmo não sendo estanques com relação aos vistos para o modelo de gestão, podem ser tratados à parte, haja vista suas especificidades. Outro ponto importante é que, por questão de espaço, não trataremos de todos os agentes que podem ter contribuído para os problemas da nossa empresa hipotética, ou então que tenham deixado de antecipar o ocorrido, mas eles existem.
1 - Conselheiros de administração e fiscais
A reflexão que neste ponto apresentamos diz respeito aos conselheiros de administração e fiscais. É absolutamente correto dizer que esses profissionais têm um dever fiduciário, podendo e devendo, simplesmente, recusar-se a atuar em contextos específicos. Retornando à Companhia A das nossas reflexões, talvez alguns conselheiros administrativos e fiscais não tenham cumprido seus respectivos deveres, afinal.
Todavia, gostaríamos de aprofundar o raciocínio e de nos deter aqui sobre o empoderamento de conselheiros. Primeiramente esclarecendo, de pronto, que a palavra empoderamento não está aqui relacionada à falta de poder, mas à agregação de mais poder em determinadas circunstâncias. A nós parece que mesmo os melhores e os mais responsáveis conselheiros podem se deparar, na prática, com dificuldades, ao tentarem aprofundar suas análises. Notadamente no início de seus trabalhos e nas empresas com lideranças fortes, carismáticas e não muito dispostas a realmente ouvir. Pode levar algum tempo para um conselheiro se sentir confortável com as informações que recebe e apresentar suas contribuições, que dependem de dados para existirem. No caso da Companhia A, teria sido necessário e faltado empoderamento de pelo menos alguns conselheiros de administração e/ou fiscais?
Para conselheiros administrativos que representam investidores institucionais, o empoderamento pode advir do apoio desses investidores aos seus representantes. Sem perder de vista as regras legais e as boas práticas de governança, além da responsabilidade e o profissionalismo do próprio conselheiro, indagamos: seria razoável e possível existir mais mecanismos endógenos e/ou exógenos de empoderamento de conselheiros de administração e fiscais quando necessário? Comitês de conselhos administrativos, um dos mais conhecidos instrumentos de melhor atuação desses colegiados, resolveriam a questão?
2 - Profissionais de contabilidade
O estarrecedor anúncio da Companhia A ao mercado remete, como não poderia deixar de ser, à contabilidade da empresa, às suas falhas, da ordem de bilhões de reais, que conduziram a lucros inflados e ao pagamento indevido de dividendos. É inevitável dizer: algo de muito, muito grave ocorreu com a contabilidade empresarial; provavelmente, adentrando na esfera da improbidade. Nem sempre o início de uma fraude é fraudulento. Conforme observa o entrevistado da edição anterior Charles Putz, algo entendido como fraude pode se iniciar por erro contábil não captado por controles internos, o que significa que nem sempre o início de um problema em controles tem a ver com fraude. Todavia, se tais controles não são realmente bons, pode-se estar assumindo riscos inaceitáveis. E se em algum momento da trajetória da empresa o problema é percebido e nada se faz, porque alguns agentes disso se beneficiam, então o erro se torna fraude e os riscos crescem, já que pouco ou nada será feito para mudar a realidade.
3 - Auditores independentes
Quando pensamos em auditorias independentes, relacionadas a grandes escândalos corporativos, o primeiro caso que vêm à mente é o ocorrido com a Arthur Andersen, que atuou no escândalo da Enron, nos EUA, tendo sido por ele foi arrastada. Em um evento de grande magnitude como o anúncio surreal da Companhia A ao mercado, a pergunta “mas como os auditores não perceberam o que houve?” naturalmente emerge. Há que considerar, primeiramente, que os auditores independentes não são investigadores criminais e que o seu trabalho consiste em verificar se as demonstrações financeiras de uma empresa refletem adequadamente os saldos suportados por documentação hábil, em base de teste. O anúncio da hipotética Companhia A demonstra que suas demonstrações financeiras não refletiam a realidade da empresa. O que isso significa, em relação à atuação dos auditores independentes? Suas práticas não seriam adequadas para captar determinadas variações relevantes? Teriam faltado checagens informacionais relevantes? As práticas de auditoria precisam de reformuladas, afinal? Tudo isso necessita ser objeto de reflexão.
4 - Analistas, profissionais de investimento e investidores
Várias podem ser as circunstâncias de perigo corporativo, relacionadas a variáveis como o endividamento preocupante (vis-à-vis do endividamento médio do setor de uma empresa), o pagamento excessivo de dividendos (muito acima do histórico da empresa ou da média do setor), além do uso exacerbado de ferramentas financeiras, como derivativos e outras, que, ao invés de reduzir riscos, os aumentam. Estas e outras variáveis são percebidas por atentos profissionais do mercado, além de investidores tecnicamente mais equipados. Para Roberto Lamb, entrevistado da edição anterior, é importante ater-se à essência dos fundamentos e manter o ceticismo saudável. Todavia, como escândalos corporativos por vezes ocorrem pelos mercados de capitais do Planeta, isso significa que os mecanismos de vigilância ainda não conseguem cercar 100% das ocorrências, mas sempre se busca cobrar mais transparência, a fim de melhorar o entendimento sobre empresas. As cobranças em prol do uso de ESG e o combate a greenwashing são exemplos que ilustram expectativas e comportamentos desses agentes. Nesse contexto, existiriam mais bandeiras amarelas e vermelhas a serem agregadas ao trabalho, de maneira a melhorar a identificação de situações de perigo corporativo?
Ao lado dessas considerações, destacamos a importância da atuação assertiva dos agentes em questão que, nos EUA, chegou ao patamar de ativismo, o qual culminou em um movimento pela governança corporativa, de âmbito global. No Brasil, os níveis de aprofundamento e cobrança, favorecidos pelas tecnologias de comunicações à distância e em linha com o que ocorre no exterior aumentaram, mas pode haver espaço para mais busca de entendimento das empresas, via ferramentas técnicas. Como bem reforçou Edgard Cornacchione, um dos entrevistados da edição anterior, “Analistas e profissionais de investimento podem ajudar a compreender o ocorrido e analisar as medidas cabíveis”.
Em suma: Sem deixar de reconhecer que condutas indesejáveis são possíveis e que as regras do jogo mais amplas podem ser melhoradas – trataremos delas no próximo bloco –, perguntamos: quais seriam as medidas de prevenção a considerar em relação a esses públicos, de maneira que eles, ou contribuam para evitar desastres corporativos (conselheiros administrativos e fiscais, profissionais de contabilidade e auditores independentes), ou então, melhor os antecipem (analistas, profissionais de investimento e investidores)? Apontamos aqui quatro possibilidades: 1) mais conscientização sobre deveres fiduciários e talvez, mais empoderamento de conselheiros (para reflexão); 2) mais atenção a práticas contábeis que começam de certa forma, como pequenos desajustes, podendo culminar em fraudes; 3) mais bandeiras de aviso associadas ao entendimento da situação de empresas por analistas, profissionais de investimento e investidores; e, 4) repasse minucioso de procedimentos e práticas de trabalho, o que vale para todos esses agentes.
SOBRE O CONTEXTO INSTITUCIONAL: COMO MELHORAR AS REGRAS DO JOGO?
O movimento pela governança corporativa emergiu nos EUA, nos anos oitenta, no bojo de um escândalo, o caso Texaco, que criou um levante de investidores institucionais contra desmandos de dirigentes corporativos. No início do Novo Milênio, novos escândalos ocorridos nos EUA, como os casos Enron e WorldCom, conduziram a uma grande intervenção do Estado no mercado de capitais: a Lei Sarbanes-Oxley (2002). E em 2008, houve a crise subprime, com epicentro nos EUA e várias empresas com sérios problemas. Escândalos corporativos não são exclusivos dos Estados Unidos, variados têm ocorrido em outros países, prejudicando muitos stakeholders.
Em linha com as considerações dos entrevistados Antônio Benedito Silva Oliveira e Carlos Eduardo Lessa Brandão, publicadas na última edição desta Revista RI, eventos como o caso Companhia A são oportunidades de aprendizado e mudanças, imprescindíveis à confiança. Sendo assim, é importante indagar: seria necessário algum nível de intervenção na dinâmica do mercado de capitais doméstico e das empresas que dele participam, visando melhorar as regras do jogo formalmente instituídas e reduzir o risco de potenciais problemas? De que maneira?
Tendo em mente o ambiente institucional e as regras do jogo, com base no tsunami produzido pela hipotética Companhia A, relacionamos abaixo três pontos que nos parecem muito relevantes:
1 - ESG: Considerando o amplo universo de stakeholders impactado por um tsunami corporativo, como o da Companhia A, existe algo a fazer em âmbito institucional sobre ESG, de maneira que este possa ser realmente usado para prevenir administração corporativa sofrível?
2 - Compliance e enforcement: Quais novas normas, políticas e procedimentos teriam que ser criados com respeito ao compliance que, em nossa opinião, seriam frágeis na Companhia A? Ou o problema seria de enforcement nas regras vigentes?
3 - Regras de mercado: Quais mudanças seriam necessárias nas normas da CVM ou do Novo Mercado da B3? Seria preciso tornar mais duras as regras de listagem e as penalizações por seu descumprimento?
Com respeito a possíveis alternativas para melhorar o mercado e as empresas que o integram, emergiram nas entrevistas da edição passada as seguintes visões: “As regras do jogo vigentes bastam, não é preciso inventar mais, sendo importante, contudo, ampliar seu cumprimento ou enforcement” (Heloisa Belotti Bedicks). “Em uma perspectiva liberal, o mercado é capaz de aprender com o acidente e melhorar suas próprias regras” (Paulo Pinese). “Sem entrar no mérito de eventuais mudanças promovidas pela autorregulamentação, o estado pode e deve intervir, como ocorreu na Lei Sarbanes-Oxley dos EUA e no subsequente Restoring Trust” (Alexandre Simões). “A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pode intervir e fortalecer ESG nas empresas” (Ana Luci Gizzi). Qual dessas alternativas seria a mais adequada para fortalecer o mercado de capitais nacional e suas empresas, em decorrência do caso Companhia A? Aliás, existem outras perspectivas?
Em suma: A nosso ver, se há divergências sobre onde intervenções devem ocorrer (se no plano legislativo, ou da regulamentação da CVM, ou da autorregulação de mercado), isso sinaliza que... é preciso pensar. Onde as mudanças precisariam ser feitas? Quais mudanças? A melhoria do ambiente das regras do jogo poderá estar em uma combinação apropriada de medidas que vão da intervenção do Estado a mudanças de regras do próprio mercado? Ao mesmo tempo, em nossa opinião, com o olhar em fatos ocorridos no contexto dos EUA, antes mencionados, a solução per se não é o mais importante, fundamental é que esta melhore o mercado de capitais nacional e suas empresas participantes, tornando-os mais fortes e sustentáveis, em benefício da sociedade e dos investidores. Medidas que sejam efetivas no combate às más práticas corporativas são muito benvindas. O predadorismo corporativo que por vezes emerge em corporações ao redor do mundo nos parece ser, no fundo, inimigo do capitalismo de stakeholders.
POR FIM, SOBRE O MACROAMBIENTE: HÁ RISCOS SISTÊMICOS A CONSIDERAR?
Neste bloco, apresentamos uma breve reflexão de cunho mais amplo, relacionada ao macroambiente e ao capitalismo, à luz de escândalos corporativos que por vezes emergem pelo Planeta. Chama nossa atenção, em especial, a financeirização preocupante de parte das empresas, no sentido do uso exacerbado de instrumentos financeiros, que deveriam ser usados em benefício dos negócios, tornando-os mais seguros, mas que, conforme as circunstâncias, como por exemplo, uma pandemia, podem comprometê-los.
Vivenciamos o capitalismo de stakeholders, expressão que traduz a evolução que tem ocorrido nas economias capitalistas, à luz dos avanços em governança corporativa, sustentabilidade e ESG. Todavia, não podemos deixar de fazer uma reflexão sobre a financeirização preocupante (no sentido aqui considerado), com destaque para aquela relacionada ao endividamento exacerbado que, ao invés de reduzir o custo de capital, amplia riscos, inclusive o de extinção do negócio, tornando o custo do dinheiro mais caro. E esta é uma questão que, a nosso ver, não diz respeito apenas ao Brasil.
Não nos propomos a trazer informações quantitativas que respaldem a percepção do perigo mais amplo que o uso indevido de instrumentos financeiros, especialmente de dívida, tem potencial para criar. Mas indagamos: empresas de todos os tamanhos em situação de crise não poderiam ser visualizadas como barcos que, mesmo quando equipados com bons instrumentos e contando com bons navegadores, em busca de sobrevivência, passaram a navegar em águas perigosas, cujas correntes profundas criam grandes riscos à navegação?
Não, não sugerimos eximir os responsáveis pelo ocorrido na Companhia A, hipotética, de suas responsabilidades (aliás, seu endividamento parece ser parte relevante dos problemas da empresa, conforme se pode perceber no enunciado inicial do caso). Mas entendemos ser importante a reflexão sobre o capitalismo de stakeholders e seus riscos sistêmicos, potencializados, no globo terrestre, pela pandemia Covid e a guerra Rússia-Ucrânia. Nesse sentido, o endividamento e a inflação são grandes desafios de administração das economias.
Concluímos agradecendo aos leitores pela paciência que lhes permitiu chegar até este ponto. Pode-se concordar ou não com o exposto, mas sempre lembrando que este é produto do livre pensar sobre um caso hipotético em aberto. Não pretendemos ter respostas certas, mas levantar algumas bolas que eventualmente contribuam, ainda que modestamente, para os debates que o caso Americanas, origem inicial desta matéria, poderá ensejar. É possível, também que, ao ler a matéria, outras ponderações aflorem na mente dos nossos leitores e aqueles que desejarem conosco compartilhá-las são benvindos.
Cida Hess
é economista e contadora, especialista em estratégia e finanças, mestre em Ciências Contábeis pela PUC SP e doutoranda pela UNIP/SP em Engenharia de Produção, com foco em Sustentabilidade. Tem atuado como executiva, conselheira e professora da Board Academy.
cidahessparanhos@gmail.com
Mônica Brandão
é engenheira eletricista e graduanda em Direito, especialista em finanças e estratégia e mestre em Administração pela PUC Minas. Tem atuado como executiva, conselheira de organizações e professora universitária.
mbran2015@gmail.com