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No filme argentino “Relatos Selvagens” do diretor Damián Szifrón, um bom cidadão, representado pelo ator Ricardo Darín, tem seu carro rebocado no dia do aniversário da filha pequena. Para reaver seu carro deverá pagar taxa e multa, sem direito a recurso. A reação deste homem comum é visceral. Este mesmo instinto, embora contido, é comum, provocando um sincero desejo de viver em um mundo sem nenhuma regulação e aumentando a convicção de que toda regra é “lixo regulatório”. No entanto, regras podem ser benéficas, desde que adequadas à realidade e à necessidade dos envolvidos.
Uma forma utilizada pelos profissionais de mercado de capitais no Brasil em busca desta adequação é a utilização de regras privadas. Tais regras são elaboradas pelos próprios profissionais, que também decidem a abrangência, o conteúdo e, inclusive, a existência de sanções por seu descumprimento. A regulação privada tem como condição necessária -- a permissão estatal tácita ou explícita – e característica possível – o envolvimento ou não com o Estado. As regras privadas podem ser normas internas, recomendações ou autorregulação.
As normas internas são definidas por um participante de mercado para si, com ou sem monitoramento externo. As recomendações, por essência, servem para indicar as melhores práticas de mercado, mas não estão vinculadas a sanções. A autorregulação é elaborada por um ente criado por participantes de mercado, embora hierarquicamente superior e apartado do próprio mercado. Além da elaboração, a entidade de autorregulação pode cumular as tarefas de monitoramento e aplicação dos mecanismos de fazer cumprir as regras.
Na última edição da Revista RI, apresentamos os desafios atuais para a autorregulação no Brasil, tratando das oportunidades para a criação de novos arranjos institucionais. Este artigo apresenta exemplos marcantes de instituições formuladoras de regras privadas que alcançaram solidez, legitimidade ampla e força inconteste. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, o IBGC, é fonte de recomendações. A Associação Brasileira das Entidades dos mercados financeiro e de capitais, a ANBIMA, e a Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais, a APIMEC, são formuladores de autorregulação profissional.
O IBGC nasceu em 1995 apenas para atender as demandas dos conselheiros de administração. Em 1999, já com sua denominação atual e escopo ampliado, o IBGC lançou a 1ª versão do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. A atividade do IBGC promoveu a multiplicação de conhecimento e cultura de forma progressiva, criando patamar mais elevado para os novos profissionais e por conseguinte coerção social para o cumprimento das recomendações. Como exemplo de arranjo institucional entre o Estado e a regulação privada, podemos citar a recomendação da CVM de consulta do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa lançado pelo IBGC, atualmente em sua 5ª edição. É cristalino, portanto, o reconhecimento e apoio estatal à iniciativa da regulação privada, embora sem força coercitiva para fazer cumprir estas recomendações.
A ANBIMA, além das importantes atividades de representação de 280 associados (base 2015), educação financeira e informação técnica, produz autorregulação profissional eficiente incidente sobre 2.500 instituições (base 2015), porque aprimora o ambiente de negócios, por meio de regras criadas pelos próprios participantes, que tendem a aceitá-las.
A formação das regras da ANBIMA é resultado de processo amplo e hierarquizado de discussão entre os participantes de mercado para alcançar alto grau de aderência às necessidades e demandas atuais. Os processos de elaboração, monitoramento e julgamento das regras privadas são realizados com uma divisão equilibrada entre 3 áreas de atuação da ANBIMA, que são, respectivamente, “Representação”, “Supervisão de Mercado” e “Conselhos de Regulação e Melhores Práticas”. As regras da ANBIMA quando lançadas ao público, consolidadas em “Códigos de Regulação e Melhores Práticas”, produzem grande e imediata aceitação.
Antecessora da ANBIMA, a ANBID criou em 1999 o então denominado “Código de Auto-Regulação para Ofertas Públicas de Valores Mobiliários”, um conjunto de regras destinado a intermediadores obrigatórios das ofertas públicas de distribuição, os underwriters. Um dos objetivos deste Código foi implantar, na época, um padrão informacional para as companhias emitentes que pudesse atrair maior número de investidores, especialmente os internacionais. De fato, a autorregulação serve para elevar os padrões de conduta. Todos os grandes players, conscientes da necessidade de tornar o mercado brasileiro mais eficiente decidiram, como condição para a realização dos seus serviços, determinar um padrão muito mais abrangente – e por isso mais custoso – de informações. O custo de observância desta regra privada foi menor do que os benefícios obtidos pelas próprias companhias – maior visibilidade perante potenciais investidores e, por isso, maior sucesso na captação de recursos. Os profissionais deste mercado consideraram tão importante a aplicação do mencionado Código que sua aceitação e cumprimento foram imediatos. A importante regra “um por todos, todos por um” foi executada à risca. Houve uma mudança de cultura. Depois, a autorregulação cumpriu seu papel de anteceder a regulação estatal. O padrão informacional do Código referido acima foi incorporado à regulação estatal, com alguns ajustes, pela Instrução CVM 400. Com isso, a ANBIMA, como entidade autorreguladora, passou pelo virtuoso ciclo de criar novas regras para melhorar o mercado de atuação dos profissionais que também representa.
Este exemplo foi o primeiro de mais de uma dezena de Códigos de Regulação e Melhores Práticas lançados posteriormente pela ANBIMA. Atualmente, os Códigos ANBIMA abrangem grande leque de atividades profissionais. São exemplos de atividades autorreguladas: a intermediação em ofertas públicas, os serviços de agentes fiduciários, os serviços de administração, gestão de carteira, consultoria, distribuição de cotas, tesouraria, controle de ativos, controle de passivos e custódia de ativos, todos referentes a fundos de investimento, custódia e controladoria, private banking, negociação de instrumentos financeiros e gestão de patrimônio financeiro. Há também a obrigatoriedade de certificação continuada para profissionais que desempenham as atividades de comercialização e distribuição de produtos de investimento e dos profissionais que desempenham a atividade de gestão profissional de recursos de terceiros. A ANBIMA, é, por isso, entidade autorreguladora com grande extensão e força pautada pela legitimidade outorgada pelas instituições e profissionais no mercado de capitais.
Também a APIMEC é exemplo de autorregulação bem-sucedida. Tal associação é entidade de autorregulação e certificação dos analistas de valores mobiliários. Diferente da ANBIMA, sua atividade está subordinada ao modelo de atuação definido pela CVM, que também realiza permanente supervisão. Em função deste relacionamento hierárquico com a CVM, a APIMEC promoveu seu credenciamento, como entidade autorreguladora, perante o regulador estatal. Segundo sua página de informações na rede mundial de computadores, a APIMEC atua no monitoramento e fiscalização de 672 analistas de investimento credenciados que se subordinam ao Código de Conduta e ao Código de Processos elaborados pela própria entidade, com a supervisão da CVM.
Os exemplos acima mostram as regras privadas como vetor de desenvolvimento e mecanismo viável e eficiente para trazer adequação, visibilidade e atração de investidores ao mercado de capitais brasileiro.
Vanessa Brenneke
é advogada, mestre em Direito Comercial-USP (2016). Dissertação: Autorregulação no Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Matizes, Métricas e Modelos. Secondment no Takeover Panel Britânico (2015). Curso na Securities Exchange Commission, a SEC (2010). MBA-Insper (2006), LLM-Insper (2000).
vanessacb@cafbrasil.org.br