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Após um ano de terremotos corporativos que levaram o termo "Compliance" a ganhar relevância inédita no Brasil, 2017 vê a entrada em cena de novas práticas – várias das quais inusitadas pelos atuais padrões – contra a "desgovernança empresarial" em que ainda vive uma parcela das companhias nacionais. A opinião é do advogado escocês Barry Wolfe, que há duas décadas mora e mantém em São Paulo uma boutique de compliance preventivo, avaliação de riscos, gestão de crises e investigação de fraudes corporativas - a Wolfe Associates.
Com pós-graduações em Direito Econômico e Internacional por Yale e Cambridge, Barry Wolfe diz que a raiz das fraudes corporativas no Brasil é a mesma de onde floresceu a "Lei de Gerson" - aquela de "levar vantagem em tudo" - da qual frutificaram os escândalos que abateram a imagem de "bom mocismo" das maiores empresas nacionais.
"A cultura de resultados a qualquer preço gerou monstros corporativos que hoje se atolam em escândalos, prejuízos bilionários e em uma crise sem precedentes no meio empresarial do País", afirma ele. "Novas modalidades de compliance vão varrer isso do cenário – e terraplanar as companhias que continuarem tendo normas éticas apenas para inglês ver". Acompanhe a entrevista.
RI: O senhor vem há tempos falando em 'desgovernança' como traço negativo da cultura empresarial brasileira. Onde isso se observa na prática?
Barry Wolfe: É mais uma figura de metáfora para mostrar que uma parcela das empresas não dá a mínima para as políticas de Compliance que elas mesmas inventam. Seus manuais de boas práticas mostram uma aura de bom mocismo que, no entanto, não resistiu à força dos fatos. Para os brasileiros de bem, na vida particular, pública ou empresarial, isso é uma boa notícia.
RI: Como assim?
Barry Wolfe: Quer dizer que caiu a máscara de quem já se intuía não ser ético. Para um empresário ético, e ainda bem que esses formam a maioria no Brasil, é péssimo negócio disputar mercado com alguém que joga sujo. Isso limita muito a área de atuação de uma empresa ética. Imagine fazer frente a uma companhia que leva deputados, governadores e desembargadores no bolso. Em alguns segmentos de mercado simplesmente não dá.
RI: Mas parece que isso vem mudando...
Barry Wolfe: Vem, mas ainda há muito o que fazer. A corrupção se tornou pandêmica. Limpar o organismo desse vírus é trabalho para anos. Felizmente algumas coisas andam até mais rapidamente do que daria para imaginar há coisa de um ano. Uma delas é a percepção de empreendedores de que sem compliance real não há solução sustentável para o crescimento de seus negócios. Uma tendência forte que venho acompanhando é a de empresas que nunca pensaram em governança agora fazendo romarias atrás de soluções na área. Interessante é que isso se observa não só em grandes firmas. Vale em especial para as de médio porte. Empreendedores mais antenados já perceberam que precisam de compliance para disputar os contratos públicos e privados disponíveis com a retração de grandes fornecedores enfraquecidos por escândalos.
RI: O "Compliance real"?
Barry Wolfe: Sim, sem faz de conta. Veja, a noção de Governança, ou Compliance, vem de um verbo do inglês, to comply. Significa seguir e acatar a alguma coisa – no caso das empresas, a regras éticas pré-definidas e claras que norteiem sua atuação como um todo – nos mercados e até internamente, em relação a funcionários e acionistas. Acontece que é fácil criar normas lindas com uma mão e as burlar com outra. O departamento de operações estruturadas da Odebrecht é bom exemplo. Ele é a mão do vale tudo, da "Lei de Gerson". Mas se você olha os manuais de boas condutas da Odebrecht, feitos pela mão do bem, verá uma companhia de princípios éticos. Ela tinha uma área de compliance – mas irreal.
RI: Qual das duas representa a empresa?
Barry Wolfe: Ambas, e isso vale também para Petrobras, OAS e outras que foram pegas em ilícitos. Não são empresas que nasceram para roubar – elas simplesmente se deixaram levar pela facilidade do 'todo mundo faz'. E todas elas têm um preço incalculável a pagar, além dos prejuízos em si. É o da imagem corroída frente à opinião pública. Por isso outra tendência de 2017 em Governança Corporativa é que ela se consolide como diferencial de comunicação e marketing. Mostrar que há princípios éticos por trás de uma marca passa a ser mais frequente em campanhas publicitárias. Ainda que isso entre em cena por vezes de maneira brincalhona, a mensagem é clara: a marca ética diz ao consumidor que é solidária a seus desejos de honestidade e confiabilidade.
RI: Mas por vezes uma empresa não tem como controlar aspectos de seus negócios influenciados por parceiros comerciais.
Barry Wolfe: É verdade. Já se vê uma preocupação nesse sentido em algumas áreas. Há distribuidores e representantes de produtos estrangeiros, por exemplo, passando a se interessar pelas leis anticorrupção não só do Brasil como de outros países. Eles estão percebendo que seus negócios podem ser gravemente afetados por desvios éticos nas cadeias de produção e fornecimento – em qualquer parte do mundo. Saber as regras do jogo é uma maneira de se antecipar a falhas estruturais. Como decorrência, os códigos de conduta corporativos ganham novo status e passam a ser mais inflexíveis quanto a condutas impróprias. No entanto, no mesmo movimento, se tornam mais flexíveis para se adaptar a características de cada local onde a companhia atua. Mas há outras mudanças bem mais dramáticas se aproximando.
RI: Quais?
Barry Wolfe: A transparência aumentará atingindo processos que hoje seriam vistos como inauditos. Um exemplo é o de formação de custo e de tabelas de preços. Dizer como é que você cria o preço de um produto ao cliente, e no limite ao mercado, pode soar improvável, mas de alguma maneira é inevitável. É uma medida defensiva. Ela evita que o uso de preços diferentes para um mesmo produto, quando destinado a diferentes clientes, seja considerado prática de suborno ou coisa assim.
RI: Não parece ser de simples execução.
Barry Wolfe: E não é. Mas há coisas grandes em jogo. A cultura de resultados a qualquer preço gerou monstros corporativos que hoje se atolam em escândalos, prejuízos bilionários e em uma crise sem precedentes no meio empresarial do País. Só um maluco quer isso para seu negócio. Talvez a 'Lei de Gerson' tenha finalmente seus dias contados. Essa malfadada 'lei' brasileira me deixa tão atônito quanto o costume de chamar a nós, advogados, de doutor. (risos) A raiz dos dois fenômenos parece ser a mesma: a vontade de tirar vantagem de qualquer coisa.
RI: Há outras tendências polêmicas?
Barry Wolfe: Tem uma derivação desta que apontei. As novas políticas de governança vão afetar muito as áreas comerciais. Companhias que não querem ser flagradas em ilícitos passarão a diminuir a pressão sobre "vendas a qualquer custo". Elas vão incluir a ética na estrutura de recompensas aos funcionários. Como o farão está em aberto, mas farão. Os empreendedores sabem que vender sem critério ético vem destruindo patrimônios bilionários. Novas modalidades de compliance vão varrer isso do cenário e terraplanar as companhias que continuarem tendo normas éticas apenas para inglês ver.
RI: Os executivos vão aceitar essa limitação em seu leque de ações?
Barry Wolfe: Pode haver ranger de dentes, mas hoje já não se tem a certeza de impunidade que levava algumas pessoas a fechar os olhos a ilícitos se o lucro compensasse. E não falo apenas em executivos. Falo em políticos, líderes sindicais, funcionários públicos e até consultores contratados para não ver. Na verdade, o crescimento da importância do compliance terá impacto direto sobre outro aspecto sensível nas empresas, o da privacidade. Ela tende a diminuir tanto para as empresas quanto para os funcionários, de alto a baixo. Com receio de desvios, as companhias vão contratar mais serviços externos independentes de due diligence contínuo. Due diligence é uma espécie de auditoria, de investigação, para comprovar que algo dito por uma empresa é verdadeiro. Bom, aqui teremos uma mudança e tanto. A investigação passa a ser mais detalhista e a incluir clientes, fornecedores, parceiros e até funcionários e suas relações pessoais.
RI: Por que também as relações pessoais?
Barry Wolfe: Você se arriscaria a perder contratos por não saber que seu diretor tem um cunhado envolvido em falcatruas justo na empresa com a qual está negociando? Pode não haver relação entre eles, mas é importante saber antes e se prevenir.
RI: Isso parece ir bem além das fronteiras das atuais políticas de governança.
Barry Wolfe: Sim, até porque os limites da governança estão se alargando. Estão surgindo conceitos novos como "compliance de direitos humanos", com foco em dar atenção a situações de trabalho desumano ou escravo, e "compliance verde", de cuidados ambientais. Não são apenas rótulos. São passos à frente importantes para empresas que incluem ou querem incluir a ética em seu DNA. As que chegarem antes vão, como sempre, colher vantagens. As pessoas estão cansadas de desonestos. Elas vão agradecer a empresa que leva a ética ao limite da forma como sempre fazem: comprando seus produtos, se aliando a sua marca ou investindo em suas ações.
RI: Uma pesquisa da Kroll recém divulgada aponta que a incidência de fraudes identificadas pelas grandes empresas brasileiras diminuiu em 2016 e ficou abaixo da média global. A Kroll analisa que, o que ocorre no Brasil, justamente em um contexto de operações policiais e investigações pelas autoridades de casos de corrupção, são falhas na detecção. Quais as principais dificuldades das empresas na detecção desses problemas?
Barry Wolfe: Um dos pontos, e sei que isso é polêmico, é que as empresas de auditoria muitas vezes não enxergam os problemas. Há que se considerar, ainda, que os canais de denúncia não funcionam bem no Brasil. Mas, e aí me parece o principal, as companhias não querem admitir que têm problemas. Isso ocorre especialmente porque fraudes, no Brasil, costumam envolver pagamento de propinas e outras formas de corrupção - seja envolvendo entidades públicas, indivíduos ou outras empresas privadas. Em outras palavras, as companhias não querem mostrar que são vulneráveis e, com isso, demonstrar que não têm Compliance adequada. Admitir problemas pode afetar a reputação ou gerar investigações das autoridades. No final, preferem ignorar ou lavar a roupa suja em casa.
RI: Nesse mesmo levantamento, o canal de denúncias por parte de funcionários ou terceiros é apontada por apenas 17% dos respondentes como ferramenta para detectar fraude, ao passo que esse mecanismo é o mais mencionado na média global, com índice de 30%. Como implementar um canal de denúncias que funcione? No Brasil há barreiras culturais em relação ao canal como o medo que os funcionários tem de sofrerem retaliações no trabalho ou serem demitidos. Como superar essas barreiras?
Barry Wolfe: Venho trabalhando há anos na criação de canais reais de denúncias, e um detalhe que não tem mudado muito é a desconfiança dos funcionários. As pessoas não confiam que sua identidade será preservada, não obstante a promessa de sigilo. Muitas vezes elas têm certeza de que, cedo ou tarde, sofrerão represálias caso abram a boca. E represálias não só na empresa - elas acham que o denunciante será "queimado" no mercado. Características da cultura brasileira, como a "Lei de Gerson" e o mote "manda quem pode, obedece quem tem juízo", somadas ao histórico da impunidade, não incentivam as denúncias. É comum que funcionários honestos e crentes na meritocracia se frustrem ao ver que desonestos "espertos" são promovidos enquanto os corretos ficam marginalizados. Para superar isto, a empresa tem de demonstrar de diversas maneiras, e todas com muita força, que sua alta direção acredita em ética e, principalmente, que ela pratica a ética. Como isso vai contra a cultura dominante em certos mercados, é importante que cada funcionário tenha certeza de que vive em uma empresa diferente da média, e se orgulhe disso. É preciso criar um mundo diferente dentro da empresa.
RI: Quais outras ferramentas de detecção de fraudes em uma companhia?
Barry Wolfe: Auditoria interna e controles internos são importantes. Mais ainda, ter canais para que se denunciem e se estudem formas de agir nos casos de fornecedores, concorrentes e clientes que pedem ou dão propina, que geram condições desonestas de atividades. É preciso também ter estratégias para se confrontar, e saber como agir, em situações nas quais a empresa perde negócios por se recusar a pagar propina. Tudo isso deve se somar, naturalmente, a um bom programa de Compliance, seguido efetivamente por todos na companhia.
RI: As fraudes mais comuns no Brasil são roubo de ativos físicos, roubo, perda ou ataques à informação e a fraude de vendedores, fornecedores e compradores. Esses são também os três tipos de fraude mais comuns globalmente. Porém a média global em relação a detecção de fraudes mais complexas como fraude financeira interna, desvios de verbas da empresa, lavagem de dinheiro e conluio no mercado e corrupção e suborno são maiores do que os indicadores do Brasil... O senhor poderia comentar?
Barry Wolfe: Com exceção de ataques cibernéticos, todos os outros tipos de fraudes têm um ponto em comum - sempre envolvem corrupção, com suborno e propina, ou para alguém dentro da empresa ou para alguém fora dela. Ou seja, necessariamente envolvem pessoas corruptas que recebem dinheiro para participar de esquemas, para fazer vista grossa, aprovar algo ilícito ou simplesmente ficar em silêncio. Mesmo quando o crime é lavagem de dinheiro, sempre há corrupção envolvida. Se queremos evitar fraudes, temos de ter isso em mente - e agir a partir desta premissa.
RI: Como fazer com que a política de Compliance seja realmente seguida pelos funcionários de uma empresa? Que medidas preventivas podem ser adotadas?
Barry Wolfe: O básico é ter uma boa política de Compliance seguida pela empresa como um todo. Para que ela funcione, e essa é outra medida, é que o tom seja dado pelo topo - a alta direção deve estar compromissada de fato, não só na palavra. A cultura na empresa deve incentivar transparência, respeito, ética e honestidade - e deve incentivar pessoas a falar e também a ouvir e agir. Bons controles internos e um sistema de planejamento de crises e de incidentes são igualmente fundamentais, bem como políticas de avaliação contínua de riscos. Um ponto que muitas vezes as companhias não enxergam é que elas hoje em dia precisam ter um programa de incentivas de remuneração que não apregoe vender a qualquer custo. Tenho defendido muito isso em empresas que atendo, assim como a criação de processos de due diligence e monitoramento de terceiros e parceiros. Outra questão que as companhias não observam se relaciona ao RH. Essa área precisa ter o papel de recrutar e promover talentos com base em ética e competência. Uma sem outra não dá mais. Se é preciso demitir, é preciso a coragem de fazê-lo com aquele funcionário competente mas que não é ético.
RI: As empresas se tornam cada vez mais dependentes de tecnologias e os riscos cibernéticos se ampliam. Como a área de compliance deve mapear os riscos cibernéticos e agir na prevenção de ataques aos sistemas e vazamentos de dados?
Barry Wolfe: Ao mapear os riscos, é preciso entender nos detalhes o business da empresa. Isso vai mostrar onde agir e onde implantar os sistemas de TI mais robustos para detectar invasores. Importante também é ter bem definidos mecanismos e procedimentos para reagir com extrema rapidez, respondendo a ataques com bom planejamento de crises e, inclusive, com um Crisis Management Team com poder para agir instantaneamente.