Enfoque

LUZ AMARELA: SUSTENTABILIDADE CORPORATIVA DE LONGO PRAZO

O primeiro trimestre de 2023 foi marcado por uma sequência de eventos que acendeu a luz amarela sobre as grandes corporações e sua sustentabilidade de longo prazo.

No Brasil, a disparada dos pedidos de recuperação judicial, superando 196 casos, envolveu empresas como Grupo Petrópolis, Rede Amaro, Raiola, Lojas Americanas, Oi e Nexpe - as três últimas de capital aberto, com ações negociadas na B3 - pode ser somada ao que se viveu no sistema financeiro internacional em março.

Nos Estados Unidos vivenciamos bancos regionais e de nicho como Zions, Western Alliance, PacWest sendo questionados por seus acionistas, que assistiram impotentes o valor de mercado dessas operações perderem entre 40% e 63% de seu valor nos primeiros 10 dias de março.

Enquanto isso, SVB-Silicon Valley Bank e Signature assustaram o mundo com a necessária intervenção em suas operações, correto mecanismo de defesa da economia norte-americana, e o First Republic tendo 90% de seu valor destruído. Não bastasse, um dos mais tradicionais conglomerados financeiros globais, o CS-Credit Suisse, se viu forçado a ser incorporado pelo UBS, ao mesmo tempo em que outras instituições europeias passavam por rumores e incertezas quanto à sua solvência.

Esses casos nos permitem análises por diferentes perspectivas, todas elas contidas dentro de arcabouços de moral hazard, stakeholder capitalism e stewardship; especialmente os casos envolvendo as instituições financeiras, por serem companhias com elevado grau de governança instalada e expostas a elevadas exigências e supervisão de órgãos de autorregulação, assim como de regulamentação governamental.

Nenhum desses eventos ocorreu de modo tempestivo, portanto, todos poderiam ser evitados, seja em sua origem (moral hazard), como por meio da detecção e ajuste das fragilidades (stakeholder capitalism) e até mesmo com um número inferior de investidores afetados (stewardship). Os mesmos erros de origem, ou falta de diligência, estão ocorrendo desde a Crise dos Tigres Asiáticos (1997) e Enron (2001) – sempre envolvendo os mesmos pilares. Dentro dos exemplos disponíveis, convido para uma reflexão sobre o SVB-Silicon Valley Bank, que saiu da 16º posição de maior banco dos Estados Unidos, fundado em 1983 na Califórnia por experientes executivos do setor financeiro e, cujo propósito corporativo era ser o parceiro de negócios da economia de inovação, ao auxiliar investidores e empresas inovadoras a atingirem seus mais ambiciosos objetivos.

Lembrando que os anos que antecederam a Pandemia COVID-19 foram de elevada liquidez e o ciclo mais intenso da pandemia proporcionou uma expansão monetária, com consequente perda de atratividade nos instrumentos de renda fixa e maior propensão para a tomada de risco, tanto em investimentos financeiros como em novos empreendimentos.

O SVB conquistou um crescimento muito forte em sua geração de negócios e lucros, a partir do ano de 2020, ao optar por uma estratégia agressiva de atração de recursos, o que o deixou com uma parcela desproporcionalmente baixa de pessoas físicas e empresas com menos de USD 250 mil (limite protegido pelo FDIC nos Estados Unidos, semelhante ao FGC no Brasil). Ao final de 2022, segundo apontou S&P Global Market Intelligence em dado compartilhado pela Statista, somente para efeito de comparação, apenas 2,7% dos depósitos no SVB eram inferiores a USD 250 mil, enquanto o Citigroup apresentava 15,0%, JP Morgan Chase, 32,0% e Wells Fargo, 41,6% para o mesmo indicador. Tal concentração indicava vetores de risco sobre sua gestão de liquidez, que apresentava pouco espaço de acomodação frente a eventuais comportamentos atípicos, mas totalmente previsíveis e até mesmo óbvios, seja a concentração de depositantes solicitando resgate dos recursos, ou mudanças no ambiente macroeconômico, ou ainda na performance abaixo do esperado dos investimentos proprietários do banco – todos os riscos que tinham potencial impacto nos stakeholders e externalidades, além do risco sistêmico.

A combinação de um propósito no qual “atingir seus mais ambiciosos objetivos” com o ambiente de elevada liquidez fez emergir um problema de moral hazard, no qual era crescente o volume de capital emprestado ou investido (acima do recomendado para posições proprietárias) em startups do Vale do Silício, que apresentavam grande potencial de crescimento, mas que não contavam com modelos de negócios testados.

Naturalmente, os ativos do SVB passaram a ter prazos de realização cada vez mais longos e de retorno, mais incerto, sendo expostos a um esperado período de elevação de taxa de juros – Fed Funds, que gradualmente passaram de 0,00% - 0,25% ao ano em 16 de março de 2020 para 4,75% - 5,00% ao ano em 2 de março de 2023 – e na correção para menos do valor de mercado das empresas nas quais investia. Como a estrutura de remuneração dos executivos do SVB recompensava “os mais ambiciosos objetivos”, os modelos de gestão de risco do banco foram negligenciados e, segundo ex-funcionários da instituição e documentos da SEC, suas premissas alteradas de modo a não contemplar a alertada – e precificada pelo mercado de renda fixa – elevação de taxa de juros (inclusive posições de hedge foram encerradas prematuramente em função disso) e a perda de eficiência dos investimentos em startups; com essa atitude direcionada ao curto prazo, diversos executivos mantiveram elevados níveis de remuneração, dado que os lucros eram artificialmente crescentes, enquanto o futuro da instituição se via corroído.

Aqui vemos uma triste verdade que pode ser aplicada para muitas outras companhias: os executivos atuaram de modo aderente ao propósito da companhia, mas tal propósito não era alinhado com a perenidade da operação e a estrutura de governança interna e também dos órgãos de supervisão não foi capaz de conter essa corrosão. Todo esse contexto expôs as fragilidades do SVB, o que alimentou as incertezas dos stakeholders – inclusive com o pedido de demissão da experiente Chief Risk Officer (CRO) Laura Izurieta em maio de 2022, deixando a posição sem titular, por 8 meses, até janeiro deste ano, quando Kim Olson assumiu o posto – e acelerou a demanda, concentrada, de depositantes, solicitando resgate dos recursos além do que seria gerenciável devido, em grande parte, à redução de confiança. Tal ciclo se tornou mais e mais intenso, obrigando o SVB a vender ativos, tanto de renda fixa, arcando com perdas da elevação de Fed Funds, como startups valendo menos do que o esperado, com prejuízo e alimentar ainda mais a queda de confiança até atingir o ponto de colapso e insolvência em 11 de março.

Nitidamente as decisões voltadas aos acionistas e ao curto prazo foram condutoras das perdas, mas não foram só acionistas que perderam. Todo o modelo de negócios do SVB e de uma parte do ecossistema de inovação foi afetado, inclusive no Brasil. Segundo reportagem da Bloomberg, algumas startups brasileiras tinham mais de USD 10 milhões depositados no SVB. Além do impacto nos clientes do SVB, com dificuldade em movimentar seus recursos por um período de tempo, sofreram seus colaboradores, governo (custo estimado em USD 20 bi para o FDIC nos Estados Unidos), as próprias instituições que assumiram suas operações, nos Estados Unidos First Citizens Bancshares Inc e no Reino Unido, HSBC, terão que lidar com os custos dessas incorporações e toda a economia, com a redução da disponibilidade de recursos para investimento e financiamento não somente no ecossistema da inovação, dado o aumento do risco sistêmico expresso pelo comportamento do índice do medo (VIX), no período entre os dias 07 (19 pontos) e 27 de março último (21 pontos, depois de atingir 27 pontos no dia 13), saltando de moderado para alto e retornando para médio, segundo classificação da S&P Dow Jones Index.

Desta forma, se a visão do conselho do SVB fosse abrangente, as falhas e suas externalidades poderiam ser evitadas. Seguindo pontos de atenção típicos do stakeholder capitalism, aspectos como o pacote de incentivos dos executivos sem alinhamento com a sustentabilidade de longo prazo, mudanças que levavam a divergências em relação a conjuntura nos parâmetros de gestão de risco, descasamento entre prazos de realização de ativos e exigibilidade de passivos, negligenciando sustentabilidade da operação, ausência de proteção para eventos de taxa de juros, e concentração desproporcional de depósitos poderiam ser identificadas como ofensores à perenidade – por serem elementos básicos da gestão diligente e prudencial de instituições financeiras – e corrigidas de modo preventivo, até mesmo com a troca de executivos como CEO e membros de sua equipe, assim como a revisão de ajuste de propósito e modelo de remuneração, entre outros.

Muito provavelmente, o colapso da companhia seria evitado. Tal afirmação parte da constatação prática de que, ao se ter uma abordagem de 2º Nível – na qual é tratado o desdobramento do impacto de uma decisão tomada – acabamos por incorporar uma visão mais críticas, abrangente e de longo prazo nas análises e nos indicadores do negócio.

Muitos investidores em ativos emitidos pelo SVB e profissionais de investimentos, que os assessoravam, também falharam. Ao analisar com diligência os indicadores de performance e as práticas de gestão, muitas delas já relacionadas, era possível identificar que a instituição contava com baixa alocação em depósitos de investidores individuais, sendo inundada com depósitos de empresas de venture capital e outras formas de smart money.

Em um momento de taxas de juros historicamente baixas pode ter sido mais uma maldição do que uma bênção, pois isso gera um potencial déficit de capital em caso de aumento das taxas de juros, saídas de depósitos e vendas forçadas de ativos. Outro sinal antecedente de risco potencial foi a taxa de remuneração dos depósitos oferecida pelo SVB, tendo saltado de 0,04 pontos percentuais acima de seus concorrentes em 2021, para 0,60 pontos percentuais, ao final de 2022.

Somado a isso, temos a alteração das premissas dos modelos de gestão de risco do banco, que não contemplou a elevação da taxa de juros e consequente encerramento de posições de hedge prematuramente, também identificáveis por meio de indicadores de capital, entre outros. Uma vez que todas essas informações são públicas, seria natural que as ações do SVB, negociadas próximas a USD 700,00/ação ao final de novembro de 2021, não recebessem recomendações de compra. Contudo ocorreu o inverso – inclusive com recomendação de overweight como consenso de mercado e dominância de recomendações de compra (45% das recomendações) e manutenção (45% também) quando esse ativo era negociado ao redor de USD 220,00/ação, ao final de novembro de 2022. Muitos fatos apontavam para fragilidades.

Caso os profissionais de investimentos tivessem observado aspectos básicos dos princípios de stewardship, como ser ativo e diligente no direito a voto, conduzir engajamento coletivo e monitorar os emissores de valores mobiliários investidos, as falhas de governança e os problemas gerados por moral hazard poderiam ser tratados e os ajustes com alicerce no stakeholder capitalism implementados gradualmente, buscando a sustentabilidade e consistência de resultados de longo prazo, o que teria gerado valor para os investidores – ou mesmo terem recomendado a venda (ou não compra) dos ativos emitidos pelo SVB.

Com a exposição resumida do caso SVB-Silicon Valley Bank, podemos extrapolar a reflexão e concluir que, independentemente do segmento de atuação da companhia, há um conjunto de deficiências potenciais, assim como mecanismos de freios-contrapesos, que se aplicam a toda e qualquer empresa (segmento, estágio de desenvolvimento, ou estrutura de capital). Não devemos perder de perspectiva que a necessidade de superar os desafios de curto prazo, políticas de remuneração não aderentes ao objetivo de perpetuar a operação e propósitos corporativos muito agressivos podem gerar atitudes dos administradores e demais colaboradores, que tenham mais compromissos com os seus interesses pessoais do que com os empresariais e dos stakeholders – sendo os próprios administradores e colaboradores parte desse grupo. Esse tipo de ofensor, nitidamente moral hazard, deveria ser tratado pelo conselho da companhia, que pode falhar ou mesmo ser abarcado no moral hazard, mas que tem como segunda linha de defesa os próprios investidores atuando segundo os princípios de stewardship e protegendo a si e todos os stakeholders.

A exemplo do que se deu com outras companhias, que superaram importantes crises de gestão e reputação ao longo deste século, a abordagem proposta pelo stakeholder capitalism e sua busca pelo máximo equilíbrio e justiça nas relações entre todos os agentes econômicos – acionistas e investidores, colaboradores, clientes e governo, por exemplo – acabam por ser o conjunto de princípios que devem nortear a correção de disfunções geradas pelo moral hazard ou mesmo a criação de novos empreendimentos.  

Roberto “Bob” Carline
é sócio-diretor da AFS Capital, investidor ativista em venture capital, membro da Comissão Temática de Empresas Familiares e Sucessão da Board Academy, e conselheiro consultivo. Ocupou posições de liderança no mercado de capitais em operações como Bradesco, Citigroup e HSBC. Profissional certificado CGA (ANBIMA) e embaixador do Capitalismo Consciente.
roberto.bob.carline@afscapital.com.br


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