Em um universo formado por milhares de orquestras, haverá sempre destaque para uma ou outra, em decorrência de traços que fogem aos critérios usuais de avaliação desses conjuntos e que, como nos dois casos que vou comentar, cuidam mais de propósito do que de arte.
O primeiro exemplo é a chamada “Orquestra dos Amigos”, que anualmente abrilhanta o Festival de Verão de Lucerna, na Suíça. Criada pelo gênio de Cláudio Abado, um dos maiores regentes do século XX, este não é, como a maioria, um conjunto estável, isto é, formado por um grupo permanente de músicos, porque essa Orquestra incorpora, em cada temporada, os melhores músicos de diferentes orquestras, os quais tocaram sob a regência de Abado. Isso equivale a um conjunto ad hoc especialmente formado para “aquele” festival. Estamos falando de instrumentistas vindos de vários países, de várias orquestras e cujo critério de escolha foi o reconhecimento, pelo fundador, de sua excepcional competência.
O segundo exemplo nos é oferecido pela West-Eastern Divan Orchestra, criada em 1999 por Daniel Barenboim, um dos mais celebrados pianistas e regentes da atualidade, judeu-argentino profundamente motivado pela promoção do diálogo entre jovens judeus e não judeus (particularmente os palestinos) do Oriente Médio. Essa Orquestra tem sede em Sevilha, na Espanha, cidade que, por muito tempo, foi um notável exemplo de convivência amistosa entre cristãos, judeus e muçulmanos. O constante agravamento dos conflitos entre judeus e palestinos, do que temos notícias muito frequentes, não tem impedido que a Orquestra se reúna lá todos os anos, no mês de julho, para ensaiar e preparar-se para as excursões mundiais que faz, sempre com reconhecido sucesso, a partir de agosto.
O que mais me impressiona, na vida desses dois conjuntos tão diferenciados é que na “Orquestra dos Amigos”, temos os melhores instrumentistas de cada naipe, os quais, todavia, durante os concertos, não serão ouvidos individualmente, porque estarão participando de um conjunto cujo maior mérito é o equilíbrio ou, ampliando o conceito, é a harmonia. A mesma receita pode ser aplicada à governança: devemos reunir os melhores profissionais disponíveis, mas nenhum deles deverá ser uma “estrela solitária” no desempenho da missão gerencial. Já no caso da Orquestra do Divã – nome inspirado numa antologia de poemas de Goethe – o que se põe em evidência é que grupos humanos, há séculos tidos como inimigos irreconciliáveis (judeus e palestinos), entregam-se agora, de corpo e alma, a atividades artísticas conjuntas e, dessa forma, afastam a discórdia e contribuem para a solução de conflitos raciais e políticos, buscando a paz.
Em face desses exemplos admiráveis, não poderia ter sido mais feliz a escolha que Cida Hess e Mônica Brandão - queridas amigas - fizeram ao elegerem a orquestra como símbolo de equilíbrio, de harmonia e de convergência de interesses no campo da governança empresarial. De fato, tal como acontece com uma boa orquestra, a capacidade técnica aliada ao espírito de grupo ou, em outras palavras, a competência irmanada com a solidariedade são o mais sólido alicerce dos empreendimentos bem-sucedidos.
Sem dúvida, por seu ineditismo, a ideia de uma “Orquestra Societária” como leitmotiv de uma série de artigos por elas publicados na Revista RI, enriquece bastante a literatura, cada dia mais abundante, sobre gestão empresarial e governança corporativa, porque se apoia em princípios como o propósito compartilhado e o alinhamento – ou desalinhamento – de interesses entre administradores, colaboradores, investidores diretos (sócios) e indiretos (stakeholders) – estes vistos como tomadores de riscos na organização a que se vinculam, como acontece com clientes, fornecedores, empregados, credores, governos e comunidades. A resultante natural da visão espelhada na “Orquestra Societária” é a de parceria, remédio de prescrição obrigatória para a cura dos conflitos de interesses tão próprios da atividade econômica e que, não raro, chegam a inviabilizar projetos que teriam condições muito favoráveis de sucesso.
Defendo com muita convicção que a governança corporativa não nasceu para substituir ou reformar a boa gestão empresarial, da mesma forma pela qual, no domínio da música, a regência não tem por objeto fazer as vezes da execução. Ao contrário, vejo a gestão empresarial como a base indispensável para o desenvolvimento da governança, o que pode ser representado por uma equação muito simples, do tipo a + b = c, ou seja: gestão empresarial no estado da arte mais princípios éticos é igual a governança corporativa. Enquanto a gestão deve promover o mais alto nível de eficiência administrativa e operacional, são os princípios éticos – como respeito, transparência, equidade, prestação de contas, solidariedade, responsabilidade corporativa – que outorgam à empresa seu sentido de propósito, missão, visão e valores, convertendo-a em poderoso instrumento de melhoria da qualidade de vida da população. Revisitando a orquestra, caberia ao conjunto de executantes a função de operação, enquanto a regência completaria o trabalho cuidando do equilíbrio, da sonoridade do conjunto instrumental e da correta interpretação da partitura que é o legado das intenções do compositor.
Dentro da orquestra, podemos pensar em grupos de instrumentos, chamados “naipes” (cordas, madeiras, metais e percussão) e classificados pela maneira como produzem o som (arco ou dedilhado, sopro, percussão). Na governança, devemos lembrar-nos de conselho de administração, diretoria executiva, conselho fiscal, auditorias interna e externa e estrutura de compliance. Cada um desses colegiados deve ter suas funções e sua forma de atuar bem definidas. Mas o que realmente importa é que, acima da diversidade de qualificação, especialização, raça, nacionalidade ou credo político, prevaleça a harmonia quando se trata de profissionais em ação.
Nos onze artigos que Cida e Mônica selecionaram para compor o núcleo deste livro, na questão de alinhamento e desalinhamento entre interesses de sócios entre si, de administradores entre si ou entre os dois grupos, os leitores vão encontrar uma visão tão interessante quanto útil e uma análise bem fundamentada de aspectos, custos e riscos que podem impactar o desalinhamento. Trata-se, ademais, de textos de total atualidade, cuja leitura recomendo com muito prazer.
LIVRO: Orquestra Societária - a Origem
O livro “Orquestra Societária - a Origem”, de autoria de Cida Hess e Mônica Brandão, publicado pela Editora Sucesso (SP), é uma coletânea dos primeiros 11 artigos divulgados na coluna de mesmo nome - Orquestra Societária - da Revista RI, no período de março de 2014 a março de 2015, contemplando adicionalmente a evolução ocorrida no conceito da própria Orquestra Societária, desde a criação da coluna.
Por cerca de duas décadas as autoras implantaram as melhores práticas em Finance Transformation e Corporate Performance Management, e compartilharam informações relevantes, participaram intensamente de debates com profissionais das áreas de finanças, estratégia corporativa e de negócios, com investidores e profissionais de investimento com o objetivo de analisar o ambiente interno de organizações, bem como, procurando melhor entender a percepção desses públicos em relação ao que ocorre no âmbito organizacional. Em uma dessas sessões multidisciplinares de debates foi criada por uma delas a expressão “orquestra societária”.
Essa expressão permaneceu em suas mentes nos dias e semanas seguintes, ao ponto de gastarem horas em longas conversas por telefone, entre Belo Horizonte e São Paulo, onde residem com suas respectivas famílias, pois no momento em que ela emergiu, elas perceberam que ali havia algo interessante a ser desenvolvido, uma possível conexão entre vários temas muito relevantes para uma adequada administração organizacional, em vários níveis. E foi com esse foco que a coluna Orquestra Societária foi criada na Revista RI com o apoio de seu editor Ronnie Nogueira, onde permanece há mais de 5 anos ininterruptos.
Mas afinal o que é uma Orquestra Societária? Leia o livro, aprofunde-se e não deixe de compartilhar suas ideias com as autoras e como sua empresa pode se tornar uma verdadeira Orquestra Societária, gerar uma Sinfonia Corporativa, suportada por um Modelo de Gestão Sustentável. As autoras têm convidado vários executivos para entrevistas interessantes nesta coluna, em decorrência das contribuições aos temas relevantes abordados na mesma.
O livro “Orquestra Societária - a Origem” (Editora Sucesso), de autoria de Cida Hess e Mônica Brandão, está disponível - em formato digital - na livraria: Amazon.com.br.
Lélio Lauretti
é sócio-fundador e professor dos cursos de governança do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC.
lauretti@osite.com.br