Finanças Sustentáveis

CONTEXTO AMBIENTAL, IMPACTOS SOCIAIS, AÇÕES DE GOVERNANÇA: DISCUTINDO O PÓS-PANDEMIA & A INTEGRAÇÃO ASG

Ao discutir o nosso modelo econômico e o uso indiscriminado dos recursos naturais, poderíamos imaginar que estes impactos acabariam por prejudicar os seus próprios causadores. Em um momento tão sensível como o que estamos vivendo, somos chamados a revisitar nossas relações com o mercado, a sociedade e o planeta em que vivemos.

Nas últimas décadas, vemos um aumento exponencial na preocupação da sociedade civil, do setor privado e das políticas públicas com as questões ambientais e, mais recentemente, a emergência da pauta social nesse debate. O motivo, no entanto, não é tão altruísta. Dependemos dos recursos naturais e sociais para sustentar nosso sistema produtivo e, em grande parte, ainda ignoramos os impactos potenciais que o mal uso destes recursos pode causar sobre a nossa sociedade e economia.

Meio ambiente e saúde
No momento delicado que estamos vivendo, podemos estabelecer ligações importantes entre epidemias e o meio ambiente. O aumento da poluição, a mudança do clima e a perda da biodiversidade são exemplos de fatores que podem gerar a disseminação descontrolada de vírus, bactérias e outros vetores de doenças. Outros efeitos apontados envolvem, por exemplo, os impactos sobre o abastecimento de água, alimentos, assim como o aumento de doenças ligadas à poluição e às próprias variações de temperatura e desnutrição.

Vários estudos tratam das relações das questões ambientais com a saúde humana e apontam que os maiores impactos incidem sobre as populações mais vulneráveis. É o que acontece com frequência em países pobres e em desenvolvimento, como o Brasil.

A agenda social no setor privado
Os impactos da pandemia direcionam nosso olhar sobre as questões do dia-a-dia do setor público e privado. Fica evidente que os maiores impactos da pandemia são sociais. Além da perda de vidas, as crises dos sistemas de saúde, o acesso universal a exames e tratamentos pautam as políticas públicas em todos os países. No setor privado observamos muitas empresas com preocupações além do fluxo de caixa e vemos grandes lideranças buscando a preservação de empregos e atuando de forma protagonista na agenda social.

O Prof. Dr. José Claudio Securato, economista e presidente da Saint Paul Escola de Negócios, trouxe uma fala no começo da pandemia que chamou a atenção. Em uma videoconferência com 70 CFOs, ele analisa que a postura dos executivos vai além das questões meramente financeiras e demonstra preocupação com o capital humano e social das organizações. A mudança sinaliza que os gestores começam a enxergar as questões ASG de forma integrada, de que depende própria resiliência e sobrevivência das organizações... Tomara!

No mercado de investimentos, gestores que integram as questões ASG representam uma parte crescente do volume de recursos do mercado de capitais global. Entre os clientes, movimentos nas redes sociais reforçam positivamente as empresas que estão à frente do combate a crise, assim como destaques negativos de alto impacto direcionados àquelas que apresentam visões e opiniões controversas sobre a situação atual. Mais do que preservar o caixa no longo prazo, é momento de pensar nas receitas e na reputação quando esta crise acabar.

A economia do pequeno
O Brasil tem um cenário particular em relação aos efeitos econômicos da pandemia junto às pequenas e médias empresas. Além do setor informal, que em 2019 empregava 41,3% da população ocupada no Brasil, o cenário é desafiador para os pequenos empreendedores formais. De acordo com os dados do SEBRAE, das mais de 16 milhões de micro e pequenas empresas no Brasil, pouco mais da metade são microempresários individuais (MEI) e mais de 70% deles não possuem outra fonte de renda.

Boa parte destes empreendedores está nas cadeias de grandes empresas do setor de varejo, alimentos, transporte, entre outros. O momento é de estabelecer parcerias, desenvolver programas de educação financeiras para as cadeias de suprimentos, pensar além das fronteiras das empresas para que se fortaleça um sistema que, em última instância, se reverterá na ampliação do poder de compra e do mercado consumidor. Um bom exemplo desta prática pode vir do setor de varejo, que vem ampliando a abrangência de suas plataformas de marketplace e têm potencial para gerar um forte impacto positivo entre micro e pequenas empresas.

O Papel dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
A agenda global de sustentabilidade ajuda a explicar tanto as causas potenciais como as saídas possíveis para a crise atual. Os 17 ODS consolidam um debate que deveria ser a o cenário base da nossa sociedade. Ao analisar o contexto da crise, a vulnerabilidade das populações de baixa renda (ODS 1, 2, 8 e 10), a falta de investimentos e acesso à saúde e educação (ODS 3 e 4), os fatores ambientais ligados à disseminação desta e outras epidemias (ODS 6, 13, 14 e 15) trazem à tona a necessidade de uma mudança não apenas do discurso, mas das práticas e modelos de gestão. Endereçar essas questões, mais do que nunca, é uma questão de gestão de riscos e continuidade de negócios que deve ser analisada de forma transversal às empresas e ao setor público.

Na outra ponta, os investimentos e oportunidades para a retomada sustentada e de longo prazo da economia devem passar também por estes objetivos. Adequações, mudanças, adaptações serão requeridas de todos os agentes econômicos e, sem dúvida, elas passarão por um olhar diferenciado sobre as questões ASG. Novos padrões de consumo (ODS 9 e 12), novas relações profissionais (ODS 5, 8 e 10), novas formas de ocupar os espaços e nos locomover a trabalho ou por lazer (ODS 11). As mudanças podem e devem trazer um ambiente de justiça social aliado ao crescimento econômico (ODS 16), desde que haja a participação de todos (ODS 17). Podemos aproveitar o que já existe!

Financiando a saída sustentável
A articulação para a minimização dos impactos sociais e a retomada da economia é um papel do setor público, das empresas e, sem dúvida, conta com uma participação ativa do setor financeiro. Reguladores, bancos, investidores institucionais, seguradoras, fintechs e outros agentes do Sistema Financeiro Nacional têm um papel fundamental neste momento, embasados nos pilares e premissas das finanças sustentáveis, presentes nos debates que já vêm acontecendo no Brasil e no mundo.

É imprescindível que todos estejam sentados à mesa. Discussões como as que ocorrem no Laboratório de Inovação Financeira (LAB), iniciativa coordenada pela Associação Brasileira de Bancos de Desenvolvimento (ABDE), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e agência de cooperação do governo alemão (GIZ) têm o potencial de gerar conhecimento para viabilizar soluções importantes para o momento atual. Alguns produtos e serviços, existentes ou ainda inovadores, podem se destacar neste cenário, como:

  • Carteiras de microcrédito de bancos e cooperativas de crédito, orientadas para o pequeno empreendedor ou até mesmo para o empresário informal. A ampliação desta modalidade de crédito pode apoiar a retomada das micro e pequenas empresas, gerando renda e emprego entre as camadas mais vulneráveis da população.
  • Títulos temáticos, como os conhecidos green bonds, social bonds ou sustainable bonds, ou os recém lançados covid bonds, transition bonds ou blue bonds, entre outros, podem ser usados por empresas a partir de médio porte para financiar projetos que aprimorem métricas sociais ou ambientais, apoiando investimentos e financiando, por exemplo, programas e parcerias com suas cadeias de suprimento.
  • Estamos acostumados à oferta de fundos de ações que consideram as questões ASG como estratégia de investimentos, mas outras classes de ativos como debêntures e outros títulos de renda fixa, direitos creditórios ou até mesmo fundos de participação podem incorporar e suas estratégias um olhar para os riscos e oportunidades derivados de temas ASG. Estas questões não precisam ser vistas apenas como um filtro da gestão de riscos, mas podem guardar boas oportunidades para o engajamento com as empresas investidas e, assim, o aprimoramento de suas práticas.
  • Instrumentos de investimentos de impacto, que crescem de forma acelerada em diversos países, também podem servir para promover empresas e projetos que atendam a este momento sensível que vivemos. É importante trazer novos investidores e um volume maior de recursos para este mercado, para que seja possível desenvolver projetos replicáveis, escaláveis e com resultados positivos comprovados tanto do ponto de vista econômico como de questões socioambientais.

O imprescindível envolvimento das lideranças
Em várias conversas, antigamente nos happy hours e atualmente nos grupos de whatsApp, costumamos dizer que a sustentabilidade precisa migrar das áreas técnicas para os CFOs, RIs, CEOs e Conselheiros de Administração. O tema, não deve ser deixado à margem neste momento de crise e as iniciativas existentes devem ser priorizadas e ampliadas.

Muito se fala em integrar os riscos ASG aos debates nas salas de board, mas, pensando pragmaticamente, todos os riscos da empresa se enquadram, de alguma forma, em aspectos ambientais, sociais e de governança que impactam sua estratégia e resultados. ASG não deve permear somente o risco, mas deve ser incorporado ao modelo de gestão.

As mudanças provocadas pela paralização, a sensibilização e reconhecimento das pessoas das consequências sociais e econômicas da pandemia vão impactar a forma como nos posicionamos nos nossos relacionamentos pessoais, profissionais e nas nossas decisões de consumo. Este é o momento para repensar tendências, avaliar caminhos e, mais do que nunca, abrir espaço para a inovação.

Temos o hábito de pensar a inovação ligada à tecnologia, mas podemos expandir esse pensamento para incorporar o novo de formas distintas. Vivemos um momento que exige o novo para enfrentar os grandes desafios que temos agora e os que virão nos próximos meses, mesmo considerando as expectativas mais otimistas. O papel da governança neste momento é revisar e traçar rotas para que não executemos brilhantemente uma estratégia errada.

Para que exerçam seu dever de forma adequada, é importante ampliar a visão dos agentes de governança sobre as questões ASG, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a integração do tema com a agenda de riscos corporativos, de inovação e outras tendências globais. Passamos décadas, talvez séculos, olhando balanços e estatísticas que nos trouxeram ao momento e aos desafios atuais. Boa parte das pesquisas sobre liderança aponta a necessidade de se considerarem os aspectos humanos na elaboração da estratégia e na gestão das companhias, questão que passa essencialmente por um olhar para questões não-financeiras ou, talvez possamos chamar, pré-financeiras.

Ao longo de 15 anos trabalhando com a agenda da sustentabilidade, já vimos, especialmente em momentos de crise, o tema ser deixado de lado em nome da necessidade de aumentar o crescimento ou recuperar a economia. Hoje temos uma oportunidade de, enfim, aliar as duas coisas e tornar as questões ASG parte do mainstream das decisões estratégicas e financeiras.

A experiência nos mostra que, quando necessário, podemos mover os capitais necessários para atacar grandes desafios em nível global. Na maior crise de saúde dos últimos cem anos, vimos que nossos desafios vão além do vírus e que as soluções passam pela coordenação de todos os agentes na busca de um objetivo comum. É neste sentido que as questões ASG podem atuar como o pano de fundo para este novo olhar para o futuro. Como diz um provérbio africano, muito utilizado pelo professor Celso Lemme, da Coppead-UFRJ em suas apresentações, “se você quer ir rápido vá sozinho, mas se você quer ir longe vá junto”.

Maria Eugênia Buosi
é sócia da Resultante Consultoria e coordenadora do GT pelo LAB - Laboratório de Inovação Financeira.
eugenia.buosi@resultante.com.br


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