A primeira epidemia global ou pandemia aconteceu em 1817, em decorrência do vibrião colérico. O número de mortos é incerto. A cólera já matava os humanos há milênios, mas a evolução dos meios de transporte ajudou a espalhar um surto mundial – e até hoje somos afetados por essa doença. Aprendemos a combatê-la com higiene e saneamento, mas ela ainda nos atormenta.
Um século depois, o mundo voltou a sofrer com uma nova pandemia, a da gripe espanhola. Os óbitos foram tantos que sequer puderam ser contabilizados. As projeções estimam que morreram entre 50 e 100 milhões de pessoas, ou seja, de 2,5% a 5% da população mundial. Tivemos que vencer o inimigo com o atávico recurso desenvolvido e aprimorado pelo Homo sapiens por, no mínimo, 350 mil anos: a imunização de manada. O velho mecanismo felizmente funcionou.
Mais um século, e voltamos a sofrer com uma pandemia, a da Covid-19. Contabilizamos até aqui 1,1 milhão de mortes ou 0,0142% da população mundial. A gripe espanhola foi entre 175 e 350 vezes mais mortal que o Coronavírus. Agora, temos relativo conhecimento do inimigo e estamos muito próximos de criar uma ou várias vacinas em tempo recorde.
Quando uma vítima da gripe espanhola olhava para o mundo que enfrentou a cólera no início do século XIX, poderia contemplar uma grande evolução. Mas quando nós, vítimas da Covid-19, olhamos para o mundo do início do século XX, a diferença é imensa.
Entre 1920 e 2020, um tempo ínfimo em termos da nossa história como espécie, tivemos uma enorme evolução. Um observador atento, no início do século XX, poderia ver que grande parte das invenções que transformaram o mundo já estava ali presente, se ainda não como produto ao menos como uma ideia tecnicamente viável.
Já havia carros rodando. Eram poucos, mas estava evidente que substituiriam as carruagens tocadas a tração animal. Os aviões já voavam, os tratores já aravam os campos, as máquinas a vapor estavam sendo automatizadas, o rádio já era realidade no mundo, a teoria microbiológica da doença já existia, algumas vacinas já haviam sido desenvolvidas, e as pesquisas que deram origem à penicilina e aos antibióticos já estavam em curso.
O telefone já estava em algumas empresas e residências. Cabos submarinos começavam a cruzar o mundo, e uma rede de telex iniciava a história das telecomunicações instantâneas. A televisão estava teoricamente pronta nos laboratórios de Vladimir Zworykin e Philo Farnsworth. Mesmo os computadores só dependeram da união da máquina de Charles Babbage com a teoria da lógica moderna de George Boole. Todas essas invenções colocadas em prática transformaram o mundo.
Agora, olhando para as invenções que hoje estão entre nós em estágio inicial de utilização ou já concebidas teoricamente, podemos estimar o tamanho das mudanças que vêm pela frente.
Redes de celulares cada vez mais velozes conectam o mundo de forma instantânea. O 5G está sendo implantado, enquanto redes muito mais velozes estão nos laboratórios. A internet das coisas já é uma realidade, conectando objetos a objetos, que tomam decisões autônomas com base em algoritmos. A biometria facial vem com possibilidades reais de reconhecer qualquer ser humano na Terra. O blockchain torna dispensáveis os mecanismos de intermediação centralizados como bolsas de valores, cartórios, bancos comerciais e bancos centrais – e a própria moeda como a conhecemos.
Computadores quânticos tornam a inteligência artificial plenamente possível. Telemedicina, cirurgias robóticas assistidas a distância, dispositivos vestíveis ou implantáveis diretamente em órgãos coletando informações vitais das pessoas. Possibilidade de cultivo de tecidos e órgãos. Transportes autônomos e até carros voadores. Manipulação genética de alimentos, animais e pessoas. Concretas possibilidades de exploração espacial.
Todas essas invenções certamente irão impactar nossa vida sobre a Terra. Então vem a pergunta: como será o mundo daqui a um século? Será que nossos descendentes olharão o mundo atual com o mesmo estranhamento com que olhamos o mundo dos nossos antepassados que superaram a gripe espanhola?
Como será o mundo onde grande parte do trabalho será feito por máquinas e sistemas de inteligência artificial? Segundo Yuval Noah Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor da trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 lições para o século XXI”, uma nova classe de pessoas deve surgir até 2050: a dos inúteis. “São pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis”.
Como bem observa Harari, esse grupo poderá acabar sendo alimentado por um sistema de renda básica universal. A grande questão, então, será como manter esses indivíduos satisfeitos e ocupados. “As pessoas devem se envolver em atividades com algum propósito. Caso contrário, irão enlouquecer”. Ou será que as classes dominantes poderão se diferenciar tanto desses “inúteis” que resolvam eliminar esse contingente de pessoas?
E, para nublar ainda mais nosso futuro, como será a sociedade com uma população predominantemente de velhos em um mundo com pouco trabalho?
Será que conseguiremos superar o grande fantasma do aquecimento global que ronda o nosso futuro? A democracia representativa ainda terá futuro? Como será o tabuleiro geopolítico global com a inevitável ascensão da China? Teremos novos e imprevisíveis desafios pela frente como foi a bomba atômica no século XX?
Podemos olhar para o futuro com esperança e otimismo ou com pavor e pessimismo. Pessoalmente, sou um otimista incorrigível. Como não estarei vivo daqui a 100 anos, só me resta imaginar como será.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br