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Parece, enfim, que o futebol começou a atrair o interesse de agentes do mercado. Apesar de haver mais de um motivo para que a percepção se alterasse, um deles se sobressaiu e justificou (e justifica) o entusiasmo local e internacional: o novo marco legislativo concebido para viabilizar o encontro – e a convergência – entre proprietários de empresa futebolística (os clubes) e financiadores (ou investidores) dessa atividade.
A proposição parece mais óbvia do que o ovo de colombo, mas tardou a se incorporar ao sistema jurídico vigente – e, assim, a trazer perspectivas de segurança e de previsibilidade.
Com efeito, o sistema de prática do futebol, desde sua origem no século retrasado, foi marcado, no Brasil, pelo protagonismo das associações civis, entidades regidas pelo Código Civil, o qual as define como “união de pessoas que se organizam para fins não econômicos”.
Além da incapacidade para atração e captação de recursos para financiar a atividade futebolística – porque não podem distribuir resultados e, ao mesmo tempo, não são reconhecidas por fundos e outros agentes como possíveis destinatárias dos investimentos destes –, as associações, por definição, sujeitam-se a complexos movimentos e atuações de cunho político, comparáveis aos que ditam o acesso a cargos públicos.
Esse estado de coisas viabilizou o surgimento de uma classe cartolarial, que se apropriou dos ativos do futebol, sem contribuir um tostão sequer para sua obtenção. Mal comparando, trata-se de uma espécie de “dominação gerencial”, tão estudada no plano das corporations norte-americanas.
O sistema funcionou por décadas, não apenas por aqui, mas em outras jurisdições, enquanto não se percebia que, para além de uma atividade esportiva, estava-se diante da mais globalizada manifestação de entretenimento no mundo, praticada em número de países que supera o número de integrantes da ONU.
A ordem mundial começou a mudar a partir da construção de sistemas jurídicos internos, nos principais países praticantes do esporte, com o propósito de solucionar as respectivas mazelas e de prover meios de financiar o futebol local.
Atualmente, todos os principais times europeus, com apenas duas exceções – Real Madrid e Barcelona –, são companhias. Sim: o Bayern que se assiste na televisão, assim como o Manchester City ou o Liverpool, para ficar apenas nesses exemplos, não são, há muito tempo, associações civis.
Por estas bandas, esforços ocorreram, é verdade, em 1993 e 1998, com as Leis Zico e Pelé, respectivamente, que continham apenas comandos formais, facultativos ou mandatórios, para que clubes “virassem” empresas. Mas faltavam-lhes, apesar da boa-vontade dos grandes ídolos, elementos que viabilizassem a formação de um sistema caracterizado pela confiança e pela projeção de sustentabilidade.
Essa concepção começou a surgir apenas em 2016, com a apresentação do primeiro projeto da Lei da SAF; e ganhou ares de probabilidade, com a iniciativa do Senador da República, Rodrigo Pacheco, que apresentou ao Senado Federal, em 2019, o Projeto de Lei 5.516, a fim de criar a SAF, instituir normas de governança, controle e transparência, prever meios de financiamento da atividade futebolística e de tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas, e instituir um regime tributário específico.
Logo no início de 2021, ao ascender à Presidência do Senado – e do Congresso Nacional –, o autor do então do projeto reconheceu a grandiosidade econômica, social e esportiva do futebol, sobretudo em um país com as características do Brasil, e anunciou que se tratava de uma de suas prioridades. A promessa se cumpriu e o projeto, após rapidíssimo trâmite perante as duas casas congressuais, transformou-se na Lei 14.193/2021.
Afinal, o que pretende a Lei da SAF?
Criar um subsistema, cujo núcleo é a SAF, dotado de instrumentos que a viabilizarão como instrumento de legitimação e sustentação do novo mercado do futebol.
Os mencionados instrumentos englobam: (i) um modelo de governança próprio e inafastável – inclusive para evitar que práticas clubísticas sejam projetadas ou replicadas no ambiente da SAF; (ii) controle e publicidade de atos da administração; (iii) mecanismos de informação e nomeação do beneficiário final de investidor pessoa jurídica; (iv) introdução de meio de financiamento específico para a atividade, consistente na debênture-fut; (v) um regime tributário próprio que visa estimular a passagem do modelo associativo ao empresarial; (vi) meios ou técnicas de recuperação da atividade em crise; (vii) instrumento de satisfação de obrigações do clube; e (viii) convênios entre a SAF e escolas públicas para fomentar e aprimorar a educação pelo futebol.
A SAF, por sua vez, é uma espécie de sociedade anônima, regida naquilo que lhe for próprio pela Lei da SAF e, no mais, pela Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76). Aproveita-se, assim, a robusta estrutura que se constrói, por via doutrinária e jurisprudencial, há quase 50 anos, desde o advento da mencionada lei societária.
A SAF será, na maioria das vezes, provavelmente, constituída pelo clube, mediante drop down de ativos. O clube poderá, após a constituição da SAF, negociar a venda de ações, a subscrição de novas ações por um investidor ou adotar um modelo híbrido, dentre outras possibilidades. Também poderá, eventualmente, manter todas as ações e financiar a empresa do futebol mediante emissão de debêntures. Na outra extremidade, poderá promover a abertura de capital da SAF, mantendo, ou não, o controle desta.
Enfim, cada clube deverá, a partir da Lei da SAF, tentar construir o seu modelo e criar o ambiente para que o time de futebol trilhe a sua nova história, conforme suas características e sua situação patrimonial e financeira; e, evidentemente, também conforme o interesse de provedores de capital ou de soluções, de modo a convergir com a estrutura pretendida.
O novo mercado do futebol está em formação – até porque a legislação ainda é nova –, mas as notícias envolvendo Cruzeiro, Botafogo, Vasco, Bahia, Atlético Paranaense, Galo e alguns outros indicam que, com o surgimento de uma política pública consistente com a grandeza do esporte, o Brasil deverá se tornar, com o perdão pelo trocadilho, a bola da vez. Mais do que isso, aliás: a bola permanente da vez.
Rodrigo R. Monteiro de Castro
é Advogado, Mestre e Doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, Professor de Direito Comercial do IBMEC/SP e Ex-Professor do Mackenzie e autor dos livros Controle Gerencial, Regime Jurídico das Reorganizações, Futebol, Mercado e Estado e Sociedade Anônima do Futebol. Co-idealizador do anteprojeto de lei que deu origem à Lei da SAF.
rodrigo.castro@mcssa.com.br