ESG: resultante de princípios & valores éticos
Nesta edição, inauguramos a terceira rodada do projeto ESG: uma partitura que está sendo escrita. Trata-se de uma longa jornada, iniciada em 2021, que contempla entrevistas com 12 Conselheiras certificadas pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Até o momento foram publicadas oito entrevistas e alguns artigos resumindo os insights de mulheres com trajetórias incríveis, como executivas, C-Level e Conselheiras, além de educadoras e formadoras de opinião. A seguir, temos a satisfação de compartilhar a densa e inspiradora entrevista com Claudia Pitta - sócia fundadora da Evolure Consultoria e sócia da AdvantiKA Responsible Results, baseada na Suíça - uma profissional que tomou a decisão de se dedicar ao seu propósito, o qual ficará evidente ao longo de sua entrevista.
Claudia Pitta é consultora e professora de Ética Organizacional e ESG no IBGC e na Saint Paul Escola de Negócios, ministrando palestras e conduzindo workshops sobre esses temas para a liderança de empresas, grupos familiares e instituições públicas.
Advogada por formação, atuou por 18 anos em departamentos jurídicos de grandes empresas, inclusive como Diretora Jurídica, bem como em escritórios de advocacia. Graduada e Mestre em Direito pela UFRGS, pós-graduada em Neurociências e Comportamento pela PUCRS, possui pós-MBA Advanced Boardroom Program pela Saint Paul e Curso de Conselheiros de Administração pelo IBGC. Coautora dos livros “Mulheres ESG”; “ESG: O Cisne Verde e o Capitalismo de Stakeholder”; e "Mulheres em Conselho" (no prelo).
Claudia Pitta é Conselheira de Administração do IBGC; diretora do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (IBRADEMP); e membro da fundação Women Corporate Directors (WCD). Lidera projetos de desenvolvimento da cultura ética em organizações, avaliação e aprimoramento da governança corporativa e estratégia ESG, através das empresas Evolure Consultoria e AdvantiKA Responsible Results.
A seguir, acompanhe a entrevista - que ocorreu de forma híbrida entre Belo Horizonte, on-line, e São Paulo, presencialmente, no estúdio da Agência da Cris Moraes PR. Em tempo, nas rodadas de entrevistas anteriores, exploramos substancialmente as dimensões “E” e “G” do ESG (Environmental, Social and Governance, nesta, exploraremos a dimensão “S”, extremamente importante.
RI: Quais práticas, entre diretrizes e ferramentas de gestão sustentável, deverão adotar os sócios e líderes de uma organização, para se diferenciarem em práticas da dimensão “S” do ESG?
Claudia Pitta: Começo pelo meu tema de trabalho, de propósito e de coração: Cultura Ética! Porque quando se trata de práticas ESG, para elas funcionarem, deveriam ser o resultado do desdobramento de princípios e valores éticos que estejam bem disseminados e incorporados na cultura das organizações. Aí, sim, existe um espaço de evolução gigante no Brasil, como sociedade, para as empresas e organizações em geral. Antes de entrar nas práticas, é necessário avaliar que cultura existe na organização: É uma cultura que sustentará maiores diversidade, inclusão, equidade? Será que suportará a prática de contratar pessoas de grupos sub-representados? Existe um ambiente adequado para recebê-las? Quando se pensar no impacto positivo desse ambiente, um dos maiores problemas sociais do Brasil, a desigualdade social, econômica, de oportunidades, será abordada? Existem tantos desassistidos! Quando a empresa pensar nisso, será efetiva em suas ações? O Instituto Ethos lançou o Guia para empresas: como combater as desigualdades no Brasil, em 31 de agosto, orientando as empresas sobre como elas podem ajudar, como podem contribuir para reduzir a desigualdade social no Brasil, mas não adianta trabalhar somente as práticas. Por exemplo, empresas concedem bolsas na área de tecnologia para alunos de escolas públicas, visando a ajudar em seu desenvolvimento e ensinar aqueles jovens a lidarem com a revolução tecnológica, em sua inclusão digital no mercado de trabalho. Como? Alguns sequer têm acesso à internet direito e, por vezes, nem têm um computador ou um celular para poderem acessar esse novo mundo! A solução efetiva é agir com uma consciência mais profunda. E isso tem a ver com cultura, não tem a ver somente com os valores que a gente aprendeu em casa. Tem a ver com como a gente é influenciado por todos os fatores do ambiente profissional e social em que vivemos. Trabalhar a consciência ética no sentido de responsabilidade, de respeito, cuidado com o outro, é isso que o capitalismo de stakeholders nos convida a fazer. Olhar para quem a empresa está impactando torna todas as práticas mais verdadeiras. Então, antes de elaborar uma lista de práticas, é necessário um olhar mais realista, mais pragmático, e, assim, conhecer a cultura, a cabeça dos líderes, desenvolver a consciência e o senso de responsabilidade para lidar com esses desafios. Aí, os programas irão variar, de acordo com a realidade e maturidade de cada empresa; irão, efetivamente, funcionar com as condições financeiras e outras para investir, seja em um programa de trainee, por exemplo, direcionado a um público sub-representado – mulheres, negros ou outros grupos –, seja para trabalhar em níveis mais básicos. Quando se trata de diversidade e inclusão, pouco se fala das pessoas com deficiência (PCDs), que compõem o único grupo com cota obrigatória por força de lei. Empresas não estão cumprindo ainda essa cota obrigatória importantíssima e estão falando de outras medidas? Está certo isso? Isso é ético, se a lei nem está sendo cumprida? Trazer outros temas para a mesa é legítimo? Esta reflexão mais profunda é a provocação que eu deixo. Temos muito espaço para evoluir e as práticas – de novo! – têm que ser pensadas e planejadas para cada empresa, a partir de um olhar social para os seus stakeholders: Como prestar algum tipo de suporte para a comunidade? Como ouvir a comunidade e o que a impacta? Quais são os clientes, colaboradores, fornecedores? Quais são as dores desses stakeholders? Que tipo de programa irá ajudá-los? Aliás, antes mesmo disso, é preciso pensar de verdade: será que somos mesmo genuínos? Temos empatia, respeito, integridade, transparência, accountability, responsabilidade? É fundamental olhar tudo isso, fazendo um diagnóstico da maturidade cultural da empresa e da consciência de seus líderes. Adicionalmente, destaco um ponto importantíssimo: em geral, ESG sofre de um mal que a governança corporativa sofreu por muitos anos e, ainda sofre, que é ser visto como um checklist vazio, superficial, de práticas, políticas, programas, códigos, regras, processos. E com isso, os riscos de ganho indevido, manipulação de informações e outros podem ser significativos. A governança também era vista como um conjunto de estruturas, processos, políticas, enfim um checklist de formalidades. A empresa cumpria o checklist e achava que estava tudo ótimo, alcançando uma “excelente governança”. O mesmo acontece com ESG, que tem programas ambientais, ações na área social, e então, está ótimo, está tudo certo. E nos esquecemos, nós todos como sociedade, que antes de tudo mais, governança é ética. Eu me estendi um pouco porque essa pergunta levou a um tema que é básico e caríssimo para mim, para toda a discussão sobre o “S” do ESG.
RI: Aproveitando sua abordagem processual da governança, o 6º Código do IBGC, publicado recentemente, inovou nesse aspecto?
Claudia Pitta: Sim, o 6º Código do IBGC traz um novo princípio, como primeiro da lista - integridade -, que é promover a cultura ética, ter coerência entre discurso e prática, lealdade à organização, é evitar conflito de interesses. Não adianta ter uma linda política social de inclusão de estagiários negros, enquanto se está praticando fraude contábil, pagando propinas e fraudando licitações para ganhar contratos públicos. Tudo isso é incoerente e antiético! Porque é um discurso que, simplesmente, não se reflete nas ações. Governança é integridade, responsabilidade/accountability, transparência, equidade entre acionistas e todas as partes interessadas e, sim, é Sustentabilidade. Então, Governança é, em primeiro lugar, ter uma cultura organizacional e comportamentos individuais que reflitam esses princípios. Caminhar para um futuro melhor, para um mundo melhor, depende da transformação das pessoas. E ainda se fala muito pouco disso. E dentro da dimensão “pessoas”, que é o centro do “S”, apresento uma iniciativa lançada em 2020, sem fins lucrativos e de código aberto, Inner Development Goals (IDGs), em português,os “Objetivos de Desenvolvimento Individual”, que podem ajudar a acelerar o trabalho em direção aos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) e a responder à pergunta: Quais as competências individuais precisamos desenvolver para levar a Agenda 2030 da ONU para a frente? É disso que precisamos falar, para depois podermos aprofundar as demais questões.
RI: Voltando às práticas citadas, quais são as mais críticas em termos de gestão estratégica de riscos? E quais derivaram ou foram fortemente intensificadas pela pandemia COVID?
Claudia Pitta: O que a pandemia evidenciou não foi uma realidade nova. Ela colocou, de uma forma gritante, para o mundo inteiro, o tamanho da nossa interdependência, o tamanho da dependência das empresas em relação ao ecossistema ambiental, social, não só do país ou da cidade onde estão operando, mas global. E nos alertou para o fato de que gerenciar riscos exige uma profunda compreensão dessa interdependência. O gerenciamento de riscos vai além de itens financeiros, operacionais – da máquina quebrar, faltar luz e ficar um dia inteiro sem conseguir atender os clientes, porque a empresa está “sem sistema”. Esse gerenciamento foi ampliado para agregar riscos geopolíticos, de mudanças climáticas, pandemias. Um exemplo importante, aliás, é a guerra da Rússia com a Ucrânia, que afeta os negócios e as pessoas aqui no Brasil, a cadeia de suprimentos. Isso significa que a complexidade para identificar e gerenciar riscos aumentou. É preciso pensar em riscos políticos, em riscos de grandes comoções sociais, polarização política. Quando se compreende a profundidade da nossa interdependência, isso muda toda a forma de gestão de riscos e o desenho da estratégia também, ou seja, muda tudo! E isso a pandemia não criou, mas evidenciou. Focando o “S”, conheço um case interessantíssimo, de uma empresa muito pequena, um posto de combustíveis, cujo proprietário, por um propósito pessoal, só contratava PCDs para trabalhar, com todas as adaptações necessárias. Algo muito ousado, corajoso. O negócio evoluiu bem até a pandemia chegar - ninguém saía de carro e, entre os vários negócios que foram destruídos, muitos postos também foram. O que aconteceu com esse posto? O proprietário me contou que os clientes começaram a ligar para ele para oferecer ajuda financeira durante a pandemia, espontaneamente, porque tinham uma conexão emocional com o propósito dele, empatia com aquele posto, que tinha uma preocupação social e uma ação social com um grupo vulnerável, muito evidente, autêntica e corajosa. Ele sobreviveu, reabriu após o fim da pandemia, graças a essa fidelidade dos clientes, que se alinharam e valorizaram o propósito dele. Esse cuidado genuíno com as pessoas também separou o joio do trigo durante a pandemia: empresas que logo cortaram os pagamentos de fornecedores, que demitiram empregados -, obviamente antes de a legislação criar os mecanismos de subsídio e restrições -, sucumbiram. Em meio a uma crise grave, a empresa então jogará todo mundo para fora do barco para continuar navegando e chegar do outro lado? Ou terá um olhar solidário, empático, colaborativo, com todos os seus stakeholders, sejam eles fornecedores, colaboradores, comunidade ou outros? Tudo isso a pandemia trouxe muito à tona, dentro da pauta social e, de forma geral, o desempenho comum da iniciativa privada foi bem mediano, para dar uma nota. Em minha opinião, poderia ter sido melhor, tanto durante quanto após a pandemia. Os aprendizados poderiam ter sido mais profundos e duradouros do que é ser um líder, empresário, conselheiro ou executivo realmente empático, que cuida dos seus stakeholders. Eu esperava que um evento tão impactante como foi a pandemia Covid tivesse transformado mais os líderes e os seres humanos do que transformou.
RI: A pandemia trouxe aprendizado que transformou a gestão das empresas em práticas para melhorar a gestão da estratégia e de riscos?
Claudia Pitta: Não percebo aprendizados transformadores na maioria das empresas no Brasil. Algumas mudanças, sim. Questões como home office e saúde mental entraram na pauta, por exemplo. Alguns processos e formas de trabalho podem ter sido aprimorados, mas não vejo movimentos realmente transformacionais e estratégicos acontecendo. É preciso lembrar que existe uma diferença de maturidade enorme entre algumas empresas dos grandes centros, conectadas com esses movimentos globais, e a grande maioria das médias, pequenas e microempresas no Brasil, que estão bem distantes dessa conversa. Mas nem as empresas mais maduras me parecem estar tão mais equipadas para lidar com os desdobramentos de uma crise relacionada a riscos sistêmicos, como os geopolíticos, as comoções sociais, as mudanças climáticas, as pandemias etc. Tudo ainda é muito incipiente.
RI: Fazendo uma conexão com a sua reflexão inicial sobre a conscientização prévia, qual é a nossa cultura? Estamos preparados para colocar em prática o “S” do ESG?
Claudia Pitta: Costumo dizer que a longevidade da empresa e a sua prosperidade, assim como a agenda ESG, estão sustentadas por três pilares: Estratégia, Governança e Cultura. Não adianta a empresa ter uma cultura muito bem-intencionada, com ações ambientas e sociais pontuais, mais próximas da filantropia, não incorporadas à estratégia. Super bacana, mas isso não é ESG, não é isso que fará mexer o ponteiro. É preciso trabalhar esses três alicerces de uma forma integrada, focando os temas que realmente têm materialidade social naquele setor, atividade ou organização específica. Para isso, muitas vezes, é necessário tocar nas feridas, trazer assuntos sensíveis para a mesa de discussão dos conselhos, porque só assim se pode evoluir. E, nesse quesito, acho que ainda temos muito a aprender, seja como líderes empresariais, seja como cidadãos. Meu trabalho, como consultora, palestrante e professora, foi sempre fazer provocações que façam as pessoas refletirem, saírem da zona de conforto, do seu modo tradicional de ver o Brasil e questionarem algumas práticas. Cito como exemplo o painel da OAB Nacional sobre governança corporativa na advocacia, do qual participei. Muito legal falar sobre reduzir o uso de papel, diminuir as viagens corporativas no segmento da advocacia! Sem tocar no assunto de saúde mental nos escritórios? Este é o mais crítico! Então, é preciso falar desse tema difícil, sim, e buscar soluções urgentemente. Nos grandes escritórios de advocacia, há várias iniciativas bacanas de saúde mental, que contribuem para a melhora do ambiente. Mas é preciso buscar as causas mais profundas de ambientes tóxicos, de excessiva pressão. É preciso perguntar, por exemplo, como se administra a demanda que vem do cliente. Eu já fui cliente, fui diretora jurídica, eu mesma pressionava. Já liguei para o escritório de advocacia às 22:00 horas, pedindo a revisão de um contrato de 300 páginas para as 8:00 da manhã do outro dia. Não seria bacana o escritório alertar sobre as consequências desse nível de pressão, iniciar essas conversas difíceis com os clientes, determinar os limites? É difícil? É difícil! Mas tenho certeza que clientes que realmente abraçam a agenda ESG valorizariam demais um escritório que demonstra esse nível de preocupação com a saúde mental de sua equipe. Claro que há situações em que a urgência existe, de fato. E é intransponível. Mas muitas vezes ela não é urgência; é só pressa mesmo. Cito outro episódio, ocorrido em um grande escritório de advocacia há algum tempo, onde houve uma tentativa de suicídio. Eu conheço grandes empresas que imediatamente reuniram todo o departamento jurídico para discutir como estavam contribuindo para esse nível de pressão sobre os prestadores do serviço. Então, precisamos discutir sobre as questões fundamentais e, às vezes, o excesso de otimismo faz com que coloquemos luz só no que é bom, no que já estamos fazendo, o que muitas vezes é bacana, mas não é o suficiente. É bacana, mas não endereça a causa raiz. Esta é a provocação que eu sempre faço. Outro dia, estava falando com uma associação de indústria sobre emissões de carbono. Mas em que momento dessa conversa poderíamos falar sobre as denúncias de cartel? Precisamos tocar nos pontos sensíveis. Dentro do meu propósito de trabalhar a evolução ética nas empresas e na sociedade, tenho buscado isso. Sei que incomoda, sei que muitas vezes isso não é visto como simpático, pode até me prejudicar profissionalmente, mas vejo que é a única maneira de evoluir é parar de dourar a pílula e colocar problemas fundamentais embaixo da mesa. Nossos gaps éticos – como sociedade, como iniciativa privada e como país – são evidentes. Accountability é um termo que sequer tem uma boa tradução em português. Somos muito tolerantes com o desvio. Seja a violação da lei, seja o desvio ético, de simplesmente fazer a coisa errada, mesmo quando não existe a lei. Sobre os grandes escândalos corporativos que acompanhamos nos últimos anos, de vários tipos, com operações que evidenciaram desvios graves: quantas pessoas sabiam e não fizeram nada? Não sabiam, mas deveriam ter investigado para saber? Sabiam e queriam fazer alguma coisa, mas não tiveram coragem! Por quê? Porque existe essa cultura do silêncio moral. É preciso ter coragem. A psicóloga Brené Brown, uma celebridade, fala sobre isso: não existe nenhum ato na vida profissional que nos deixe mais vulneráveis do que cobrar a ética e os valores das outras pessoas. É preciso ter muita coragem para agir, cobrar, cobrar a integridade de verdade – e profundamente.
RI: Mencionando Fernando Alves, então presidente da PwC, quando o entrevistamos nesta Revista RI: considerando o “império da ética” como solução, o que é necessário fazer?
Claudia Pitta: Quando comecei a trabalhar com ética organizacional, eu me aprofundei muito em ciências comportamentais. Além de entender como o ser humano deveria se comportar, tema de estudo da filosofia, me interessava saber como o ser humano, de verdade, se comporta, e como se comporta dentro das organizações. Sofremos influências dos fatores internos, sejam os incentivos financeiros, aquele bônus, aquelas metas superagressivas. A cultura e a linguagem de muitas organizações, que não promovem o comportamento ético e a segurança psicológica. As inúmeras racionalizações que utilizamos: “se eu não pagasse aquela propina para ganhar a licitação o concorrente pagaria e eu ficaria de fora. Faço porque todo mundo faz. Se eu não fizesse, a empresa estaria fora do mercado”. Também sofremos influências de fatores externos – culturais, jurídicos, políticos. No Brasil, a percepção de impunidade é um grande fator de atraso ético. As leis não são aplicadas com equidade, não há um senso de consequência do ilícito. Esse conjunto de fatores - oportunidades e pressões internas e externas, aliadas à capacidade de racionalizar desvios - resulta em um esvaziamento gradual do nosso discernimento ético, fragilizando conexões neurais importantes para a modulação de impulsos antiéticos. Sim, a cultura afeta o funcionamento do cérebro. O meio em que vivemos (organizacional, social) pode fragilizar a atividade no córtex pré-frontal, onde está a capacidade de pensar na consequência dos nossos atos no longo prazo, de pensar na consequência dos nossos atos para as outras pessoas, para o meio ambiente. Por isso, quando as pessoas me dizem que “ética se aprende em casa”, eu costumo responder que é verdade, mas também é verdade que se desaprende na vida profissional. A forma como a empresa lida com questões éticas pode extrair o melhor ou pior das pessoas, dependendo da cultura que cria.
RI: Diante da profundidade do que foi abordado em suas respostas anteriores, não resistimos a fazer aqui uma provocação: será que o conflito entre a ética de princípios e a ética de resultados de Maquiavel - que considerou justificáveis determinadas ações para evitar o chamado “mal maior” - não seria inerente à própria vida?
Claudia Pitta: Cito uma teoria da década de 50, de um criminalista que estudou os condenados por crimes do colarinho branco, principalmente. Ele criou a teoria que hoje conhecemos como a pirâmide da fraude, que preconiza que qualquer pessoa “normal”, diante de uma combinação suficiente de oportunidade, pressão e racionalização, pode cometer desvios éticos. O comportamento ético é parcialmente automático, subconsciente e irracional. Ou seja, na maior parte do tempo, sequer estamos deliberando sobre a ética de princípios x a ética de resultados. A ética de resultados é, muitas vezes, invocada como justificativa do desvio: “fraudei a licitação porque, se não ganhássemos, precisaríamos demitir empregados e dezenas de famílias perderiam seu sustento”. No Brasil, esse discurso já foi chamado de “ética da responsabilidade”, vejam só...
RI: Como já frisou várias vezes: é preciso ter coragem! Sendo assim, qual é o set mínimo ESG?
Claudia Pitta: Sim, é preciso ter as conversas difíceis, o que a gente tem muita dificuldade de fazer! Em minha atividade como consultora, faço uma avaliação da organização com base em escalas de maturidade da cultura ética, ESG e governança corporativa. O estágio inicial é quando a empresa não tem nada, não faz nada, não tem nem a consciência sobre esses temas e sequer cumpre a lei, estando em estágio pré-legal. O segundo estágio da maturidade, que eu considero como o set mínimo de sua pergunta, é o da conformidade, o de cumprir a Constituição Federal e as leis - trabalhistas, ambientais, de proteção ao consumidor, entre outras. A Constituição pauta os direitos humanos. Se tudo isso fosse cumprido, estaríamos muito mais avançados na Agenda 2030 da ONU: o Brasil já estaria em outro patamar de desenvolvimento social, ambiental e econômico. Só para dar um exemplo, uma de nossas principais fontes de emissão de gases de efeito estufa é o desmatamento ilegal – e ele já é proibido! Mas é difícil aplicar essa lei, porque há corrupção ao longo do processo, dos fiscais, da polícia, os problemas do Judiciário, de realmente garantir a aplicação da lei. Isso é só um pequeno exemplo, que mostra o quanto as empresas, a sociedade e o Brasil já estariam muito mais avançados, se apenas cumpríssemos a lei. Então, para mim, a pauta mínima no Brasil é CUMPRIR A LEI.
Nota: Assista o vídeo com à integra dessa entrevista disponível no link: https://www.revistari.com.br/videos
Cida Hess
é CEO da Orquestra Societária Business, doutora em Sustentabilidade pelo PPGEP da UNIP/SP, mestre em Ciências Contábeis e Atuariais pela PUCSP, economista e contadora, com MBA em finanças pelo IBMEC. Executiva, conselheira, palestrante, coordenadora da Comissão Temática de Finanças e Contabilidade e professora da Board Academy. Colunista da Revista RI desde 2014 e do Portal Acionista desde 2019.
cidahessparanhos@gmail.com
Mônica Brandão
é Chair do Conselho Consultivo da Orquestra Societária Business, mestre em Administração pela PUC Minas, com pós-graduação em gestão estratégica pela UFMG e MBA em finanças pelo IBMEC. Engenheira eletricista e graduanda em Direito, tem atuado como executiva, conselheira (inclusive da Apimec-MG) e consultora, além de professora. Colunista da Revista RI desde 2008 e do Portal Acionista desde 2019.
mbran2015@gmail.com