Este é o centésimo artigo que publico aqui na Revista RI. Já escrevi cinco livros e mais de 800 artigos para vários outros veículos. Dito isso, você, caro leitor, pode pensar que eu adoro escrever. Nada mais distante da realidade. Escrever, para mim, é uma atividade sofrida. A cada artigo que recebo, logo após a alegria de vê-lo publicado, já começa a angústia do deadline do próximo. Aliás, deadline é minha grande fonte de inspiração.
Na vigésima terceira Bienal do Livro, que ocorreu em agosto de 2014, fui convidado para falar sobre os benefícios da publicação via KDP (Kindle Direct Publishing) da Amazon. Então, uma jovem repórter que me entrevistava perguntou quando eu tinha descoberto meu amor pela escrita. Eu disse que nunca, pois detestava escrever. Ela ficou tão surpresa que rapidamente encerrou a entrevista, que nunca foi publicada.
Já offline, a repórter me questionou por que eu escrevia se detestava escrever, pois, segundo a visão dela, seria impossível imaginar alguém se dedicar a fazer algo que não goste. Disse a ela que escrevia por propósito e não por amor.
Escrevo para expor minhas ideias, para difundir educação financeira, para falar sobre qualidade de vida e, mais recentemente, sobre longevidade – temas pelos quais sou, aí sim, apaixonado. Escrevo porque adoro receber a revista com meus artigos e sou imensamente grato quando alguém me diz que leu o que escrevi e que isso, de alguma forma, lhe ajudou.
Atualmente, existe uma ideologia muito forte, especialmente entre as gerações mais recentes, de que devemos amar nosso trabalho e encontrar prazer nas tarefas que realizamos diariamente. Essa visão, embora inspiradora, pode ser complicada e até prejudicial se não for abordada com uma perspectiva equilibrada.
Talvez, essa ideologia de que o trabalho precisa ser prazeroso decorra do fato de que é cada vez mais comum ver pais expressarem o desejo de que seus filhos sejam felizes, colocando o bem-estar emocional e a realização pessoal como prioridades. No passado, os objetivos dos pais para seus filhos frequentemente giravam em torno de segurança financeira, estabilidade profissional e cumprimento de deveres familiares e sociais. A felicidade e a satisfação pessoal costumavam ser consideradas como uma consequência de uma vida digna.
Pais das gerações Baby-boomer e X, que foram criados com foco na virtude, razão e autodisciplina, onde o trabalho era encarado como uma obrigação moral, vem passando aos filhos uma visão hedônica da vida e do trabalho. O hedonismo é uma filosofia ética que sustenta que o prazer ou a felicidade é o bem supremo e a principal motivação da vida humana. De acordo com essa visão, as ações são moralmente corretas se promovem o prazer ou a felicidade e são erradas se causam dor ou infelicidade.
Sendo assim, seria de esperar que encontrássemos cada vez mais jovens felizes do que nas gerações anteriores, porém, não é o que aponta um compilado de pesquisas publicado pela consultoria McKinsey.
As pesquisas demonstram que a geração Z (Zoomers) tem perspectivas de vida menos positivas, incluindo níveis mais baixos de bem-estar emocional e social do que as gerações mais velhas. Um em cada quatro entrevistados da geração Z relatou sentir-se mais angustiado emocionalmente (25%), quase o dobro dos níveis relatados pelos entrevistados da geração Y e da geração X (13% cada) e mais do que o triplo dos níveis relatados pelos entrevistados da geração Baby Boomer (8%).
Esses números demonstram que a abordagem hedônica, tão cara aos jovens, pode ser bastante traiçoeira, por colocar enorme pressão para encontrar uma felicidade à frente da simples obrigação. Afinal de contas, é muito difícil imaginar um trabalho que, ao menos em alguns momentos, não cause dor ou infelicidade.
Para aqueles que, como eu, começaram a trabalhar no século passado, devem lembrar como eram insalubres alguns ambientes de trabalho, e sabem como as coisas melhoraram de lá para cá. Porém, 59% dos Zoomers entrevistados no Brasil e 58% dos millennials dizem se sentir esgotados por causa da intensidade e das demandas do trabalho.
Talvez, esse esgotamento das novas gerações seja uma demonstração do clássico gap entre expectativa e realidade. Para exemplificar, se, em uma viagem, me disserem que vou encontrar um hotel ruim e, ao chegar, encontro um hotel razoável, ele parecerá muito melhor do que se tivessem me prometido um hotel maravilhoso e eu encontrasse o mesmo hotel razoável.
É certo que algumas pessoas têm a sorte de amar o que fazem, e eu mesmo experimentei essa felicidade durante os longos anos em que dei aulas. No entanto, acredito que o verdadeiro motor que me moveu pelos 38 anos de magistério foi o sentimento de propósito e a convicção de que estava fazendo o que precisava ser feito. Não fosse por esse fato, talvez as terríveis reuniões de departamento e a imensa burocracia universitária tivessem me feito desistir precocemente da carreira de professor.
Para ilustrar essa ideia, vamos considerar um exemplo pessoal: eu amo andar de bicicleta, mas detesto fazer musculação. Pedalar é uma atividade que me traz imenso prazer e satisfação, mas sei que apenas pedalar não é suficiente para manter minha saúde e qualidade de vida a longo prazo.
Para alcançar um equilíbrio físico e assegurar a minha longevidade, preciso incorporar exercícios de força na minha rotina, apesar de não gostar deles. Pedalo por prazer e faço musculação por propósito. Essa distinção é fundamental para entender como podemos enfrentar e aceitar tarefas que talvez não nos apaixonem, mas que são essenciais para nosso crescimento e bem-estar.
Quando se trata de trabalho, a mesma lógica se aplica. Nem todos os aspectos de nosso emprego serão agradáveis ou inspiradores. Existem tarefas que são monótonas, desafiadoras ou simplesmente não nos trazem alegria. No entanto, essas tarefas podem ser realizadas com um sentido de propósito, sabendo que contribuem para um objetivo maior, seja ele o sucesso de uma empresa, o bem-estar de uma comunidade ou o sustento de uma família. O propósito nos dá a força necessária para perseverar mesmo quando o entusiasmo falha.
É justo e valoroso buscar trabalhar com aquilo que amamos. Porém, por melhor que seja o trabalho, é irrealista achar que ele será sempre apaixonante, que não nos trará alguns dissabores ou sofrimentos pelo caminho. Muitas pessoas têm que trabalhar apenas para garantir o pão nosso de cada dia. Quando acreditamos que merecemos um trabalho que nos preencha de satisfação e prazer constantemente, a chance de frustração é enorme.
Portanto, enquanto a ideia de que devemos amar o trabalho que fazemos é atraente, é mais realista e sustentável focar em encontrar e nutrir um senso de propósito. Esse propósito pode nos guiar através das partes menos agradáveis de nossas carreiras e nos ajudar a apreciar o impacto positivo que nosso trabalho pode ter na nossa vida e no mundo ao nosso redor.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br