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INSTRUMENTOS FINANCEIROS COMPOSTOS: DECIFRA-ME OU DEVORO-TE!

A esfinge egípcia até hoje continua a despertar o interesse da humanidade acerca de seus mistérios. É um ícone na forma de leão estendido com a cabeça de um faraó. Na mitologia grega, a esfinge também está presente. Tida como um demônio exclusivo de destruição e má sorte, ela é representada por um leão alado com cabeça de mulher. Sua imagem está exposta no museu Arqueológico de Delfos, na Grécia. De acordo com a mitologia grega, a Deusa Hera, Deusa do casamento, envia uma esfinge de sua casa para Tebas, antiga cidade-estado grega, para formular a todos que encontra pelo caminho o histórico enigma: Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três? Qualquer inábil em responder a questão receberia como prêmio a perda da própria vida, por estrangulamento.

Instrumentos financeiros compostos, assim como o ícone mitológico da esfinge, têm promovido verdadeiros desafios enigmáticos para sua compreensão. A começar pela confusão taxonômica que profissionais tarimbados, por vezes, fazem destes com os instrumentos financeiros híbridos. A que propósito servem os IFs Compostos afinal? Esse é o enigma. É um desafio apresentado à sua compreensão, que conduz a outros desafios no campo contábil, quais sejam como reconhecê-los, mensurá-los e classificados adequadamente.

Ao se esmiuçar a IAS n. 32, que espelha no Brasil o Pronunciamento Técnico CPC n. 39, mais especificamente em seus itens 11, 16A, 16B, 16C e 16D, constata-se a tarefa árdua e cansativa que envolve a compreensão de um IF composto (um verdadeiro teste conceitual de fogo), para fins de seu enquadramento no conceito de passivo ou de patrimônio líquido. Consomem-se horas de todos os profissionais envolvidos, que resulta em custos não desprezíveis.

Interpretar e aplicar apropriadamente a IAS 32 aos IFs compostos é um desafio para os profissionais de contabilidade (preparadores e auditores das demonstrações contábeis). Um exemplo disso diz respeito às situações em que o IF composto emitido pode vir a ser liquidado com instrumentos patrimoniais de própria emissão da companhia, quando entra em cena a regra de conversibilidade (número variável x “fixed-for-fixed”). Tal situação, na regra atual vigente (IAS 32), pode ensejar a classificação do instrumento ou como item de passivo ou de PL, a depender do enquadramento do instrumento financeiro composto como “moeda de pagamento”.

E quanto à sua mensuração, como fazê-lo? A rigor, um IF composto para fins contábeis deve ser bifurcado e seus itens devem ser contabilizados separadamente, conforme seu enquadramento ou no conceito de passivo ou no conceito de patrimônio líquido. A mensuração separada do IF composto se dá via precificação ao valor justo do componente de passivo e residualmente, por diferença, chega-se ao componente de patrimônio líquido (se tal componente passar no teste de enquadramento). E para mensuração da sua parte passiva ao valor justo deve ser considerado o risco de não performance.

Ferramentas estatísticas robustas (Regressão múltipla por Mínimos Quadrados Ordinários - MQO’s, por exemplo) são imperativas para cômputo do valor justo. Invariavelmente, recai-se na medição ao valor justo no 3º nível hierárquico para esses instrumentos. O risco de não performance (default do emissor) é uma variável observada no mercado? Há bases de dados confiáveis disponíveis, com séries históricas com um horizonte temporal razoável, que considerem a realidade brasileira? A variável – risco de não performance - deve ser construída? Como? Preparadores de demonstrações contábeis e profissionais responsáveis pela auditoria das mesmas estão preparados para lidar com isto? Resta recorrer à figura do comfort letter do especialista externo?

Façamos um exercício. Vejamos um exemplo concreto de um IF composto no mercado brasileiro, qual seja, uma debênture mandatoriamente conversível colocada privadamente no ano de 2010. Para se computar o seu risco de não perfomance, considerou-se o modelo econométrico desenvolvido por professores da FGV-SP. Para se chegar à medida proxy, foram amostradas debêntures simples não conversíveis colocadas publicamente no mercado brasileiro, considerando o spread na colocação, o período do papel e a avaliação do rating de crédito por agências especializadas. O rol amostrado é apresentado na tabela a seguir:

Amostra de séries de distribuição

Emissor Spread S&P Moodys Fitch Prazo Nota
1 0,30% 0 Aaa.br 0 4 0,95
2 1,95% 0 A1.br 0 5 0,90
3 1,65% BrA+ 0 A+(bra) 4 0,76
4 1,85% BrA+ 0 A+(bra) 5 0,76
5 1,15% BrAAA 0 0 4 0,95
6 1,15% BrAAA 0 0 5 0,95
7 1,30% 0 Aa1.br 0 5 0,90
8 1,50% 0 Aa2.br 0 6 0,86
9 1,20% BrAAA Aaa.br 0 4 0,95
10 1,20% 0 Aa2.br A+(bra) 5 0,86
11 1,25% BrAA Aa2.br A(bra) 4 0,86
12 1,95% BrAA- 0 0 5 0,81
13 1,40% BrAA- 0 0 3 0,81
14 1,70% 0 Aa3.br 0 5 0,81
15 1,70% 0 Aa3.br 0 5 0,81
16 1,50% 0 Aa1.br 0 5 0,90
17 1,60% 0 Aa2.br 0 5 0,86
18 1,60% BrAA- 0 0 4 0,81
19 0,90% 0 Aa1.br 0 2 0,90
20 2,00% 0 0 A+(bra) 4 0,76
21 1,30% 0 0 A(bra) 4 0,71

Fonte: autor

Com base nessas informações, e reproduzindo trabalho de Mellone Jr., Eid Jr. e Rochman (2002), foi adotado o modelo para o spread médio, tendo como variável dependente o spread e como variáveis explicativas as notas de risco de crédito e os prazos de vencimento das debêntures.

Com auxílio do pacote econométrico Eviews, foi rodada uma regressão por mínimos quadros ordinários - OLS, com 20 das 21 observações amostradas. O resultado obtido é o que segue:

Resultado da regressão OLS

Dependent Variable: SPREAD      
Method: Least Squares      
Sample (adjusted): 120      
Included observations: 20 after adjusting endpoints
         
Variable Coefficient Std. Error t-Statistic Prob.
C 0,028651 0,006994 4.096.778 0,0008
PRAZO 0,001602 0,000607 2.638.127 0,0173
NOTA -0,000246 7,74E-05 -3.184.148 0,0054
         
R-squared 0,490905 Mean dependent var 0,014925
Adjusted R-squared 0,431011 S.D. dependent var 0,003109
S.E. of regression 0,002345 Akaike info criterion -9.135.522
Sum squared resid 9,35E-05 Schwarz criterion -8.986.162
Log likelihood 9.435.522 F-statistic 8.196.286
Durbin-Watson stat 1.754.563 Prob(F-statistic) 0,003220

Fonte: autor

Do ponto de vista estatístico, o modelo passou com robustez. A estatística F apresenta uma probabilidade inferior a 1% e as estatísticas T dos parâmetros do modelo também são inferiores a 1%, inclusive o intercepto, o que na prática é difícil de ser observado.

O modelo gera a seguinte fórmula para cálculo do spread médio:

Spread-médio = 0,028651 – 0,00246 x [Rating] + 0,001602 x [Prazo]

Aplicando a nota rating conferida à emissão do IF composto ora em análise e o seu prazo de maturidade chega-se a um spread médio de 3,68% para o papel. Essa seria uma medida proxy para o risco de não performance, a ser considerado na mensuração ao valor justo do IF composto.

Seria uma das etapas para mensuração do IF composto. Procedimento deveras trabalhoso e complexo. Porém imperativo, nos termos do arcabouço normativo em vigor.

Será que os custos incorridos com a bifurcação do IF composto (tempo despendido com a análise e o estudo dos contratos para plena compreensão do IF; gastos incorridos com a contratação de profissionais externos para precificação do IF; volume de horas consumido em discussões e debates entre preparadores e auditores, entre outros) suplantam os benefícios proporcionados pela informação produzida? Por que não se pensar em um elemento intermediário entre o passivo e o patrimônio líquido?

Parece que figura do mezanino, já adotada por norte-americanos, seria a melhor forma de o profissional de contabilidade evitar “ser estrangulado pela esfinge ao responder inabilmente seu enigma” (eventual determinação de republicação de Demonstrações Contábeis por entendimento diverso do Regulador, ao qual cabe zelar pela qualidade da informação disseminada no mercado). Todo o IF composto seria classificado entre o Passivo e o PL, e informações qualitativas e quantitativas relevantes acerca do IF composto seriam complementarmente prestadas em nota explicativa, de modo a permitir que o próprio usuário concluísse a respeito. É um convite à reflexão que se faz aos leitores deste importante veículo.


Jorge Vieira
é professor adjunto da UERJ, vinculado ao Programa de Mestrado em Contabilidade.
jorgevcosta@terra.com.br


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