Uma situação perversa. O Brasil apareceu em um estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre corrupção global como um dos principais exemplos de como os desvios sistêmicos de dinheiro e os sucessivos escândalos podem desestabilizar a política e prejudicar a economia e a distribuição de renda de um país. Conforme o relatório, a corrupção tem muitas consequências maléficas, entre elas, a evasão de impostos e o superfaturamento de obras, compras e serviços públicos, o que se traduz em menor qualidade do gasto do Estado.
No caso do Brasil, segundo o FMI, os desdobramentos das investigações de casos de corrupção resultaram em um ambiente incerto no qual consumidores e investidores têm baixa confiança. O FMI menciona ainda que a corrupção sistêmica, com forte peso dos desvios na Petrobras, contribuiu para que o Brasil perdesse o selo de bom pagador das maiores agências de classificação de risco. Desta forma, fica mais difícil e mais caro para governos e empresas captarem recursos no mercado internacional.
No mundo, o custo anual da corrupção é estimado entre US$ 1,5 trilhão a US$ 2 trilhões ou algo próximo de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) global, aponta o FMI. Esse volume diz respeito às propinas pagas, porém, os danos são muito maiores à sociedade. “A urgência (no combate) é global porque a corrupção é um problema que afeta países desenvolvidos e em desenvolvimento”, ressaltou Christine Lagarde, diretora-gerente do FMI, ao divulgar o relatório em 11 de maio último.
O esquema de corrupção na Petrobras, alvo das investigações da Operação Lava Jato, é um dos componentes da crise que o país atravessa. Logicamente, há uma face importante que vem do maior rombo fiscal do governo já registrado na história. Contudo, a Petrobras sempre foi importante no contexto dos investimentos do país, sendo responsável por uma fatia anual de cerca de 15% do total, condição alterada a partir da Operação Lava Jato.
Segundo Juan Jensen, economista e sócio da 4E Consultoria, os investimentos da Petrobras recuaram em torno de 30% no ano passado e, considerando o peso da companhia nos investimentos do país e os efeitos na cadeia de produção, o impacto negativo no PIB foi de 0,9 ponto percentual. Quanto às empreiteiras, a queda dos investimentos em 2015 foi na casa de 25%, com efeito negativo no PIB de 1,3 ponto percentual, também incluindo a cadeia. “O impacto da Operação Lava Jato foi significativo sobre a atividade econômica em 2015, representando uma boa parte da queda de 3,8% do PIB”, afirma Jensen. Em relação à petrolífera, ele destaca que a queda brutal dos investimentos foi decorrente dos escândalos envolvendo dirigentes e da baixa capacidade da companhia de se financiar a taxas razoáveis. Porém, outra fatia é justificada pela redução do preço do petróleo no mercado internacional. “Há uma defasagem da Petrobras em relação às outras grandes companhias globais do setor em função dos escândalos de corrupção”, comenta o economista.
A Operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de dinheiro desviado dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na ordem de bilhões de reais. Soma-se a isso a relevância econômica e política dos suspeitos de participar dos atos ilícitos. De acordo com o Ministério Público Federal, nesse esquema de corrupção, que vigora há pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos executivos da Petrobras e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% dos contratos superfaturados. Esses subornos eram distribuídos por meio de operadores financeiros, incluindo doleiros. A Lava Jato é extensa. A Polícia Federal deflagrou no final de maio a 30ª. fase da investigação, chamada de Operação Vício. Os alvos são grandes empresas fornecedoras de tubos para a estatal, que agiam com seus executivos, sócios, advogados e funcionários da Petrobras para vazar os cofres da estatal e recolher propina.
Para Juan Jensen, por sua amplitude, a Operação Lava Jato contribuirá para que a relação entre os setores público e privado se altere no caminho da ética. “Empresas que tinham como prática comum caixa dois e pagamento de propina, ao verem empresários “superpoderosos” atrás das grades, tendem a mudar a forma de trabalhar”, diz o economista. Embora a mudança seja para melhor, trava os processos de decisão dos negócios público-privados no curto prazo. De qualquer modo, ele avalia que a retomada dos investimentos, principalmente em infraestrutura, não será imediata porque o governo federal terá que acertar primeiramente aspectos regulatórios e itens mais urgentes do ajuste fiscal. Como as maiores empreiteiras são investigadas, os investimentos estrangeiros serão fundamentais. Outra alternativa é que empresas médias entrem no jogo, destaca o economista. Mesmo as empreiteiras investigadas poderiam continuar trabalhando com parte das operações, extirpando-se as áreas comprometidas e punindo os indivíduos envolvidos em atos de corrupção, o que seria um desafio maior, avalia o sócio da 4E Consultoria. São arestas que precisarão ser aparadas em algum momento.
Marcelo Carvalho, economista-chefe para América Latina do BNP Paribas, também acredita que a Lava Jato está colaborando para um ambiente de negócios mais saudável no médio e longo prazo. O banco trabalha com um cenário mais provável de que o governo interino se estenderá até 2018. “A anulação do impeachment ou o retorno da presidente Dilma Rousseff seria juridicamente possível, mas politicamente difícil”, afirma. Para ele, a Operação Lava Jato não será esvaziada. “As investigações irão continuar e os últimos episódios confirmam esse quadro, de que não há quem conseguirá abafar ou evitar o avanço da Lava Jato, o que é muito positivo”, destacou Carvalho à RI. Ele fez referência ao então ministro do Planejamento, Romero Jucá (PMDB-RR), que deixou o cargo após o vazamento de uma gravação bombástica. Se tratava de conversa, em março, na qual Jucá sugeriu ao ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, que uma mudança no governo federal resultaria em um pacto para “estancar a sangria” representada pela Operação Lava Jato, que investiga ambos.
Dias depois, vazaram as gravações que Sérgio Machado fez de conversas com o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) e com o ex-senador José Sarney (PMDM-AP). Calheiros chegou a defender alteração na lei que trata de delações premiadas para impedir que presos colaborassem com as investigações da Lava Jato. Por sua vez, Sarney prometeu ajudar Machado, evitando a transferência do caso para o juiz federal Sérgio Moro.
O economista Roberto Teixeira da Costa, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), está confiante de que a Lava Jato não será contida, como ocorreu com a Operação Mãos Limpas, que foi importante na desarticulação das relações ilícitas entre políticos e empresários na Itália, no entanto, o movimento sofreu uma reversão. Na visão dele, a Lava Jato prosseguirá, com desdobramentos que ainda vão abalar o cenário político no país. “As investigações nos surpreendem a cada dia. Vivemos em constante sobressalto”, afirma.
Entretanto, o ex-presidente da CVM avalia que o presidente interino Michel Temer potencializou essa situação, cometendo erros em relação ao preenchimento de cargos do alto escalão do governo. “Esse governo diz que pretende trabalhar para retomada da confiança. Nesse sentido, Temer deveria ter feito uma análise meticulosa antes das nomeações”, destaca o economista.
Além de Romero Jucá, o governo interino de Temer sofreu uma segunda baixa em pouquíssimo tempo. O ministro da Transparência, Fiscalização e Controle, Fabiano Silveira, pediu demissão do cargo. A situação de Silveira ficou frágil depois que foram divulgadas conversas gravadas em que ele critica a Lava Jato e dá orientações para defesa de investigados, incluindo o presidente do Senado, Renan Calheiros.
De acordo com Luciano Vaz Ferreira, professor adjunto de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), autor do livro recém lançado “Corrupção e Negócios Internacionais” (Editora Paco), neste caso, Temer errou ao extinguir a Controladoria Geral da União (CGU) e transferir suas atribuições ao ministério da Transparência. O modelo da CGU era decorrente de um movimento internacional de criação de agências anticorrupção, fundamentado em convenções internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE). O papel da CGU era monitorar as contas e punir funcionários públicos federais e empresas por fraudes em licitações e violação da lei anticorrupção. Em sua criação, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, o objetivo era que a CGU se tornasse um órgão permanente, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao órgão máximo do poder executivo federal. No entanto, isso não aconteceu de forma plena, segundo o professor. A CGU que deveria ser fortalecida foi extinta e o Ministério da Transparência representa retrocesso, avalia o especialista. Essa nova pasta não está em hierarquia superior aos demais ministérios. “Além de acabar com a CGU, Temer escolheu uma pessoa sob suspeita para o novo ministério da Transparência. Isso macula a imagem do órgão”, afirma Ferreira.
Rita de Cássia Biason, professora de Política Brasileira na Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp) de Franca (SP), explica que a CGU havia chegado a um impasse, isto é, ou o governo concedia autonomia como no caso da Polícia Federal (PF) ou não funcionaria. Isso porque havia um desconforto pelo fato de o órgão ter se tornado um balcão de barganha de Acordos de Leniência. “O governo deu mais autonomia para a PF, mas por outro lado, colocou a fiscalização e controle em um Ministério. Isso é um contrassenso”, critica. Ela avalia que a sociedade civil não está aceitando bem essa situação.
A confiança e um certo grau de previsibilidade, fundamentais para a economia andar, parecem ser condições ainda remotas. Muitos especialistas avaliam que a quantidade de delações premiadas poderá aumentar a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar prisões a partir de decisões de segunda instância. “A mudança na jurisprudência, passando a admitir a prisão do indivíduo condenado a partir da segunda instância, com certeza aumentará muito a efetividade do combate à corrupção”, ressalta Bolívar Lamounier, cientista político e diretor-presidente da Augurium Consultoria.
Há muita expectativa em relação à delação premiada assinada pelo empresário Marcelo Odebrecht, principalmente porque a Polícia Federal havia apreendido em março uma lista com aproximadamente 300 políticos que receberam propina da Odebrecht. O pai de Marcelo, Emílio Odebrecht, está em vias de prestar uma série de esclarecimentos às autoridades. A empreiteira deve firmar um acordo de leniência, um tipo de delação para empresas.
Mais surpresas poderão vir de uma delação, ainda em negociação, do ex-diretor da área Internacional da Petrobras, Jorge Luiz Zelada, que foi condenado a 12 anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Na gravação vazada que resultou na prisão de Delcídio do Amaral à prisão, o então senador, agora cassado, disse que a delação de Zelada preocupava Michel Temer.
E não é só a Lava Jato que abala o cenário. A Operação Zelotes, que apura fraudes nas decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) da Receita Federal, tem mirado em grandes empresas e seus altos executivos. No fim de maio, a Polícia Federal indiciou o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, e mais nove pessoas pelos crimes de tráfico de influência, corrupção ativa, corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro. No dia do anúncio pela PF, as ações do Bradesco caíram 5% na bolsa. Em nota, o Bradesco informou que não houve contratação dos serviços oferecidos por um escritório usado para corromper o conselho do Carf. O banco enfatizou que foi derrotado por 6 votos a 0 no julgamento do órgão.
Mudança de paradigma e desafios
O combate à corrupção não é uma corrida, mas sim, uma maratona. Vai levar muito tempo, porém, o país está no caminho certo, segundo especialistas. Para Bolívar Lamounier essas investigações têm conseguido desvendar os mecanismos da corrupção e os astronômicos valores envolvidos. “Estamos vendo surgir uma nova atitude. Graças principalmente ao juiz Sérgio Moro, estamos deixando de lado aquela resignação que sempre nos caracterizou como sociedade e partindo para uma atitude combativa”, enfatiza.
Começa a aflorar uma nova realidade no país, a de que o crime não compensa, avalia Roberto Faldini, empresário e conselheiro independente de empresas de capital aberto e fechado. “Até pouco tempo o crime compensava porque não havia punição, era vantagem não respeitar as regras. Mas houve uma mudança e muitos políticos, empresários e dirigentes que eram considerados “blindados”, foram para prisão”, diz. Isso tem feito com que a sociedade pense de forma diferente. “Um dos temas mais presentes nas empresas hoje é o risco para aqueles que não navegam na seriedade ética”, acrescenta Faldini. Segundo ele, o compliance (conformidade com leis e regras) sempre foi importante, mas agora ganha uma dimensão maior, com cuidados reforçados na vida prática das organizações. Diante de risco de punições, prisões e multas pesadas que podem até inviabilizar o negócio, as corporações colocam uma lupa maior nas práticas da boa administração e na integridade. Roberto Teixeira da Costa também acredita que uma mudança de paradigma está em curso no mundo corporativo. “Nunca tivemos no país tantos seminários abordando compliance, regras de disclosure e códigos de ética”, enfatiza.
A partir das investigações da Lava Jato e das primeiras punições à luz da Lei Anticorrupção (12.846/2013), que após processo de regulamentação, entrou em vigor em 2015, o Brasil alça um novo patamar, avalia Luciano Vaz Ferreira da Unesp. A lei é um reforço na punição do lado pagador da propina. Já havia a punição criminal, porém, a corda costumava arrebentar frequentemente para o lado mais fraco, por exemplo, determinado funcionário recebia a ordem de um superior para cometer desvio e ficava muito difícil detectar o esquema e todos os diretores comprometidos. “Pela lei, as empresas envolvidas são punidas, não somente as pessoas. Isso também acaba com a cultura da vitimização na qual as organizações afirmavam que se não agissem de forma ilícita, não participariam de licitações, estariam totalmente fora”, comenta. Agora, as empresas, com receio de sofrerem sanções, criam mecanismos internos de controle para evitar a corrupção. Além disso, a possibilidade de as companhias firmarem acordos de leniência, cooperando com as investigações das autoridades e diminuindo suas penas, ajuda a combater esse mal, ressalta o professor.
As empresas que estavam muito centradas no Brasil na cultura de contencioso, têm adotado ou reforçado medidas de compliance, destaca Clarissa Oliveira, sócia do escritório Veirano Advogados e especializada nas áreas Penal Empresarial, Lei Anticorrupção e Integridade Corporativa. Há maior proatividade para evitar problemas. Segundo ela, para que haja intensificação das cooperações por acordos de leniência no país, será importante estabelecer, de forma expressa, quais serão as garantias aos indivíduos na esfera criminal. Pela lei 12.846, os acordos de leniência são focados no abrandamento das punições administrativas e só para as empresas, não aborda o que acontece com os indivíduos. A legislação não assegura nenhuma proteção na área criminal às pessoas que fazem as denúncias. “Ainda falta regulamentação dos acordos de leniência. Os diretores e colaboradores devem enxergar algum tipo de benefício em cooperarem com as autoridades”, explica a advogada.
A Operação Lava Jato marca um momento do país de necessidade de aperfeiçoamento da relação público-privada. “O Brasil está em uma fase criativa de procedimentos administrativos e judiciais e também de discussão legislativa para que sejam criadas ferramentas que reduzam as oportunidades de corrupção”, diz Evandro Guimarães, presidente executivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco). A entidade está fazendo o acompanhamento de projetos importantes que estão no Congresso.
Os desvios descobertos na esfera federal são de grande monta, porém, o Etco está bastante preocupado com a corrupção nos Estados e, sobretudo, nos Municípios. O país tem mais de 5 mil prefeituras, que contratam uma infinidade de obras e serviços. “Os munícipes podem fazer a diferença reivindicando transparência”, enfatiza. O Etco fez um estudo e constatou que a corrupção costuma ocorrer com frequência na hora do pagamento das faturas liberadas pelos órgãos contratantes, quando os autorizadores de despesa costumam criar dificuldades aos prestadores de serviços. “Por esse motivo, defendemos que o pagamento de qualquer serviço público tem que ser feito na data combinada. Caso contrário, devem ser obrigatórias as explicações dos autorizadores de despesa”, explica.
Há outros problemas a serem resolvidos para mitigar a corrupção. A professora Rita de Cássia Biason, que coordena na Unesp de Franca (SP), o Centro de Estudos e Pesquisas sobre Corrupção, acredita que a lei de Licitações (8.666) é muito confusa, abrindo brechas para diversas interpretações. “O fato de permitir aditivos nos contratos é uma fragilidade. Fica fácil mudar o que foi contratado, aumentar o preço. Por isso, ao detectar obras com aditivos, desconfie”, alerta. Já o sistema de pregões eletrônicos para contratação de material e serviços é um mecanismo bem-visto pela professora. Nessa modalidade, as empresas interessadas disputam contratos abertamente, com lances on-line em tempo real, que podem ser acompanhados mais facilmente, diminuindo as possibilidades de desvios. No entanto, atualmente, os pregões têm sido empregados nos contratos de valores mais baixos.
A pesquisadora avalia que o Brasil já conta com muitas leis para combater a corrupção, sendo necessário avançar no controle e fiscalização. Por exemplo, a atuação dos tribunais de contas da União, Estados e Municípios) deveria ser mais incisiva. Por outro lado, a população está cada vez mais consciente. O controle social vem se intensificando. Nesse processo, a lei de Acesso às Informações Públicas (12.527) é um elemento importante. Muitas informações, antes tratadas como sigilosas, foram abertas aos cidadãos e à imprensa. No entanto, Rita Biason diz que a transparência ainda não é plena porque não há clareza suficiente nos dados ou a linguagem é muito técnica e afasta leigos. Além disso, a acessibilidade costuma ser difícil. “Em um estudo com 72 municípios que realizei, notei deslocamentos frequentes nas informações financeiras, alterações nos links em nome de reformulações nos sites. Isso dificulta a fiscalização constante pela sociedade”, critica a professora.