AMEC | Opinião

A SEGUNDA CHANCE

Está em andamento a Reforma do Novo Mercado. Trata-se de uma gigantesca oportunidade para refletirmos sobre o que aconteceu no mercado de capitais brasileiro nos últimos 20 anos, e utilizar a sabedoria que adquirimos com a experiência para fazer uma correção de rumos.

Não vamos gastar a paciência do leitor com um excesso de números que descrevam o que todos já sabemos, mas não custa trazer alguns: temos cerca de 350 empresas listadas na bolsa brasileira com alguma liquidez. A própria BM&FBOVESPA estima que existam cerca de 10.000 empresas no Brasil que teriam porte para abrir seu capital. Países como Índia e Canadá contam com mais de 6.000 empresas, o que confirma esse potencial.

Enquanto isso, secaram no país as ofertas públicas. Depois do renascimento em 2004 (sob a égide do Novo Mercado) até o pico de R$ 56 bilhões em 2007, o número voltou para zero. Há três anos não temos operações significativas de abertura de capital no país (com pequenas e honrosas exceções).

Os números não mentem: nosso mercado de capitais hoje, e o de ações em particular, é pouco mais que uma ficção. Não cumpre sua função social de canalizar a poupança privada para o setor produtivo.

A interpretação cínica desse quadro sempre aponta para as “taxas de juros estratosféricas” e para a instabilidade do ambiente macro como razões para este cenário. Nada mais falso – trata-se de uma tentativa de negar a própria razão de existir do mercado. O mercado é uma “máquina” de precificar fatores de risco. Fatores macro, como PIB, inflação, juros, ou mesmo o impeachment afetam tanto compradores como vendedores, jogando o preço para baixo. Isso ajusta as taxas de retorno aos fatores sistêmicos, trazendo alguma atratividade para os instrumentos de renda variável. Ou seja, perspectivas ruins não deveriam levar à inexistência de um mercado, e sim a uma queda nos preços.

Como já tivemos a oportunidade de apontar neste espaço, a razão para o mercado primário de ações não funcionar é a existência de um fator de risco adicional que afeta compradores e vendedores de ações de maneira assimétrica: o risco de expropriação. Se eu compro 10% de uma empresa e acabo ficando com menos do que este percentual do seu valor econômico, a conta não fecha. Compradores e vendedores não se encontram e o mercado não funciona.

É esta a realidade do nosso mercado de ações hoje. Curiosamente, era exatamente a mesma situação que vivemos na década de 90, quando a globalização levou a operações de fechamento de capital e alienação de controle com prêmios médios da ordem de 700%. Isto é, o controlador recebendo 8 vezes mais por ação do que o minoritário.

Também curiosamente este é exatamente o valor do prêmio pago pela Potash Corporation quando comprou 10% do capital da Fertilizantes Heringer, no início de 2015. Um detalhe: a Heringer é uma empresa do Novo Mercado! Supostamente aquele segmento onde os acionistas seriam tratados com equidade e devidamente protegidos. Por que as ações dos controladores da Heringer valem 8 vezes mais do que as ações em mercado? Responder a esta pergunta significa atingir a essência do problema do nosso mercado de ações.

A verdade é que a complacência nos trouxe de volta no tempo. O Novo Mercado, criado de maneira visionária pela então Bovespa, foi considerado à época, pelos mesmos que falam dos juros estratosféricos, como um sonho numa noite de verão. Era uma realidade inatingível, e desconectada da realidade brasileira. Pois o sonho se tornou realidade, e ao longo da década de 2004 a 2014, chegamos a praticamente 200 empresas listadas nos segmentos especiais da BM&FBOVESPA, provendo uma renovação fundamental no nosso mercado de ações. Setores inteiros se formalizaram e abriram seu capital, gerando emprego, renda e externalidades positivas como mais impostos e mais transparência. A adesão ao Novo Mercado ou ao Nível 2 se tornou condição sine qua non para as aberturas de capital na última década – 76% dos IPOs no período foram no nível máximo de governança. Tentativas de mensurar o “prêmio” que os investidores pagariam pelas proteções do segmento variavam de 26% ao infinito, pois a alternativa era não ter oferta.

Mas, infelizmente paramos no tempo. O Novo Mercado foi criado como um checklist – uma lista de normas concebida para endereçar os problemas dos anos 90. Ademais, num país de normas notadamente formalistas, basta o decurso de tempo suficiente para que os advogados bem incentivados encontrem as brechas nas normas que matem a sua finalidade. Foi precisamente isso que aconteceu.

O tag along, grande bandeira dos anos 90, tornou-se irrelevante tendo em vista a jurisprudência completamente pro-controladores dos reguladores e autorreguladores. O alinhamento de interesses, que em 2001 foi consumado com a regra one share, one vote no Novo Mercado, e com a redução no teto de preferenciais de dois terços para metade do capital social na lei 10.303 do mesmo ano, foi dizimado com a criação das ações “superpreferenciais” da Gol – empresa do Nível 2! A proteção de ofertas a “valor econômico” caiu por terra dada a incapacidade de se enquadrar os avaliadores, e impedir que os laudos sejam pouco mais do que alugueis de planilhas, alimentadas pelos dados do ofertante, e praticamente usando a função “Atingir Metas” do Excel. A Câmara de Arbitragem, certo ou errado, virou uma caixa preta inacessível à maioria dos investidores. E o conjunto da obra foi levado a descrédito a partir da percepção de que é facílimo sair do Novo Mercado... basta fazer uma oferta sem que seja necessário que nem mesmo um acionista aceite o preço proposto.

Por tudo isso, o Brasil jogou por água abaixo um dos maiores intangíveis criados pela Bovespa (e que talvez tenha viabilizado sua própria oferta de abertura de capital). Pergunte a um investidor hoje quanto ele pagaria de prêmio para uma empresa do Novo Mercado e a resposta provavelmente seria muito próxima de zero. Nós fizemos essa pergunta várias vezes entre nossos associados, de forma não científica, e foi esta a resposta que obtivemos.

Ao mesmo tempo assistimos ao espetáculo da exportação do nosso mercado de ações. Grandes e tradicionais empresas fecham seu capital (a Souza Cruz é o maior exemplo). Mais assustadoramente, vemos agora o fantasma da reincorporação, na operação feita pela JBS. Quando analisamos a justificativa da empresa para a medida (provavelmente correta do seu ponto de vista), encontramos algumas razões concretas e outras nem tanto. O “custo Brasil” não deveria ser relevante nesta decisão. Se o mercado é eficiente, ele aplica a taxa livre de risco ponderada à região de operação da companhia, e não ao seu país de incorporação (ou, pior ainda, de acordo com a origem do investidor). Mas é verdade que o mercado brasileiro provavelmente paga “menos” pelas ações da JBS do que pagará o mercado irlandês e o americano. Mas a razão é a mesma que vimos acima: o risco de expropriação.

Nossa complacência permitiu a sensação de que no Brasil não apenas os abusos ocorrem com frequência, mas que além disso os investidores não conseguem ser compensados. Desafio o leitor a nomear 2 casos de acionistas minoritários que foram efetivamente ressarcidos por empresas abertas ou controladores nos últimos 10 anos no Brasil. Não existem. Os abusos contra a Petrobras serão mais um tijolo nesta construção: provavelmente os processos de acionistas serão julgados nos Estados Unidos muito antes de decisões minimamente relevantes aqui no Brasil que compensem os acionistas minoritários. Consequência? Exportação do nosso mercado.

Por tudo isso, a reforma do Novo Mercado é urgente e necessária. Apesar de todos os percalços “macro” a que estamos sujeitos, todos aqueles que acreditam em nosso mercado, na sua capacidade de alavancar a economia e a sociedade brasileira, ou que dependam dele para suas carreiras profissionais (aí incluímos analistas, gestores, banqueiros, executivos e reguladores), precisam se debruçar sobre as lições aprendidas, e colaborar num esforço para que o Novo Mercado volte a ser aquilo que foi durante uma década, reabrindo nosso mercado de capitais.

A Amec se posicionou de maneira inequívoca na Consulta Pública efetuada pela BM&FBOVESPA, cujo prazo se encerrou em 16 de maio. Nosso posicionamento está disponível em nosso website. Mas o processo continua. Aqueles que ainda não colaboraram precisam refletir e falar bem alto o que pensam.

E aqui chegamos no público mais importante de todos: as empresas. Pelas normas do Novo Mercado, eventuais mudanças de regras devem ser aprovadas por dois terços das empresas listadas. Em 2010, sob a liderança de Armínio Fraga, a BM&FBOVESPA tentou atualizar as regras do Novo Mercado, mas foi frustrada aos 44 minutos do segundo tempo com uma onda de votos negativos. Pelo que pudemos apurar, muitas empresas votaram contra as mudanças sem uma maior reflexão dos seus méritos, seguindo unicamente as orientações das pseudolideranças empresariais, que se posicionam contrariamente às evoluções que necessitamos para reavivar nosso mercado de capitais.

Precisamos sensibilizar as boas empresas. As empresas do Novo Mercado, que abriram seu capital de maneira consciente, e não simplesmente porque seu banqueiro acenou com um cheque de 1 bilhão no meio da bolha. Precisamos das empresas que passaram pela mudança cultural e entendem o que é ser uma empresa de capital aberto, que capta recursos do público, e deve tratá-lo com transparência e equidade. Essas são as empresas que vêem no acesso ao mercado uma vantagem competitiva, e uma relação de parceria de longo prazo.

É importante, portanto, que as boas empresas se debrucem sobre o tema. Que conversem com seus acionistas, controladores e minoritários, e reflitam pensando no longo prazo.

Fundamentalmente, não devem as boas companhias se unir às lideranças consolidadas das empresas do passado. Aquelas construídas com a visão varguista, segundo a qual o mercado de capitais era apenas uma perna fraca do seu tripé de capitalização (sendo as outras os “capitães da indústria” e o dinheiro público barato). Essas empresas irão sempre se posicionar contra a criação de um mercado baseado na equidade, pois não têm nada a ganhar com ele. Continuarão tratando os investidores como cidadãos de segunda classe, a serem chamados somente para pagar a conta quando as coisas dão errado. É importante que fiquem falando sozinhas, pois representam o passado.

Investidores e empresas do futuro uni-vos. Não é sempre que a vida nos dá uma segunda chance.


(*) A AMEC publica mensalmente na Revista RI - artigos a respeito de posições importantes para a associação. O objetivo é facilitar o reconhecimento da Amec como referência em discussões a respeito do nosso mercado de capitais, e difundir as ideias defendidas pela associação para o público em geral.
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Continua...