Com grande destaque na imprensa foi divulgada a condenação de Eike Batista pela CVM à pena de inabilitação por 5 anos para o exercício de determinados cargos em entidades que dependam de autorização ou registro naquela autarquia. Todavia, os aspectos mais relevantes, mas que ainda não produziram adequada repercussão, foram as razões que fundamentaram essa decisão.
Segundo a CVM, o empresário, que era presidente do Conselho de Administração da OGPar. (antigamente denominada OGX) e, portanto, um de seus administradores, aprovou as contas do exercício de 2013 da sua administração, por meio do voto proferido por sociedades por ele controladas.
A lei brasileira impede que qualquer acionista vote em situações de conflito de interesse, assim entendidas as deliberações nas quais ele tenha pessoalmente outro interesse relevante que possa levá-lo a votar de forma dissociada do melhor interesse da sociedade. Por expressa previsão legal, essa é precisamente a situação da aprovação das contas do administrador, cujo efeito direto é exonerar o administrador da responsabilidade, perante os acionistas da sociedade, pelos atos de gestão por ele praticados no respectivo exercício social. A hipótese de interesses intrinsecamente em conflito é, portanto, claramente identificável, tendo em vista que o administrador-acionista estaria votando em favor da exoneração de sua própria responsabilidade perante os demais acionistas.
Como meio de tentar contornar essa proibição, alguns administradores-acionistas – como Eike Batista – adotaram a estratégia de manter suas ações em sociedades holdings e votar nessas deliberações indiretamente, isto é, por meio dessas entidades por eles controladas. Assim, formalmente, não seria o administrador da companhia cujas contas aguardam deliberação quem votaria as próprias contas, mas um terceiro. Por ele controlado, é verdade, mas com personalidade jurídica própria e autônoma.
É evidente que esse comportamento não poderia passar despercebido pela CVM, por constituir fraude à lei. Afinal, a fraude à lei acontece quando, diante da proibição legal de determinado comportamento, adota-se formalmente conduta diversa, mas que alcança o mesmo resultado prático daquele legalmente vedado. Na “superfície verbal da norma”, para utilizar-se expressão da doutrina jurídica, a lei aparenta estar sendo respeitada, mas, de fato, está sendo substancialmente violada.
No caso acima, a lei proíbe que determinada pessoa (o administrador) pratique determinado comportamento (aprove as próprias contas). Com o intuito de fugir da proibição, interpõe-se um terceiro (a holding), controlado ou sob a influência daquela pessoa (o mesmo administrador), para praticar e concretizar substancialmente o ato vedado em lei. Em suma, exemplo clássico de fraude à lei na modalidade “interposição de pessoa.”
Cumpre notar ser absolutamente irrelevante se a estrutura de holding foi arquitetada pelo administrador especificamente para o propósito de votar na deliberação das contas ou se ele está se utilizando de uma estrutura pré-existente constituída para objetivos diversos (tributários, sucessórios ou outros). O aspecto determinante que deve ser observado é se a proibição legal está sendo materialmente violada, como de fato aconteceu, segundo a autarquia.
Aliás, não foi a primeira vez que a CVM manifestou-se sobre a ilegalidade desse comportamento. Em caso anterior e que não teve tanto destaque nos meios de comunicação, envolvendo a empresa Taurus, igual foi a solução adotada pelo colegiado da autarquia.
Os críticos desse entendimento têm levantado duas questões que precisam ser enfrentadas: em primeiro lugar, a autarquia teria violado a personalidade jurídica das holdings, ao equipará-las à vontade do administrador; em segundo lugar, teria inviabilizado a aprovação das contas de companhias abertas ao proibir o voto das holdings controladoras. As duas críticas simplesmente não procedem.
Primeiramente, a tese da desconsideração da personalidade jurídica das holdings controladoras é um argumento especioso e inaplicável. A desconsideração, também conhecida como a retirada do véu da pessoa jurídica, implica desconsiderar a autonomia patrimonial entre sócio e sociedade para responsabilizar o sócio por passivos da sociedade. Evidentemente que não se tratou disto, mas do reconhecimento de que sócio e sociedade, no caso, estão diante da mesma situação de conflito de interesse. Afinal, a vontade da sociedade holding foi determinada e contaminada pela vontade do administrador que estava em situação de conflito de interesses. Não se tratou, portanto, da retirada do véu da pessoa jurídica, mas da retirada da máscara do acionista controlador, que se escondia atrás de outra personalidade jurídica.
Por fim, também impertinente o argumento alarmista de que não mais será possível aprovar as contas dos administradores de uma sociedade anônima aberta. Adotado o correto entendimento da CVM, o processo de aprovação das contas passará a ser realizado como sempre deveria ter sido, ou seja, uma deliberação tomada pelos acionistas desimpedidos de votar na matéria, representem estes a maioria do capital social ou não. Importante observar que, ao votar as contas dos administradores, o acionista deverá fazê-lo motivado pelo interesse da companhia, sem transformar o ato em mecanismo de perseguição ou qualquer outro comportamento leviano, caso em que incorreria na responsabilidade decorrente da prática de outra irregularidade, o exercício disfuncional do seu direito de voto.
Resumindo, portanto, a decisão da CVM de reconhecer e punir a fraude à lei é correta e benéfica para o mercado de capitais brasileiro. Inadmissível permitir que relevantes comportamentos proibidos e nocivos às sociedades anônimas sejam praticados mediante o recurso a máscaras e simulações.
André Leal Faoro e Raphael Manhães Martins
são sócios do escritório Faoro & Fucci Advogados.
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