Espaço Apimec

OS DESAFIOS ATUAIS DA AUTORREGULAÇÃO NO BRASIL

A autorregulação brasileira passa por momento de transformação de seu conteúdo, forma de implementação e estrutura. A busca por melhor conteúdo revela-se na Reforma de 2016 do Novo Mercado; o debate para a criação do Código Único para Companhias Abertas; a gestação de regras privadas para investidores institucionais pela Associação de investidores no mercado de capitais, a AMEC.

Os desafios de implementação estão vinculados à revisão judicial pelo Poder Judiciário das atividades da Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, Câmbio e Mercadorias, a ANCORD, para exercer credenciamento, fiscalização e punição sobre os agentes autônomos de Investimento, os AAI e a primeira divulgação pública de manifestação do Comitê de Aquisições e Fusões, o CAF. A estrutura da autorregulação deverá ser escolhida pela empresa resultante da combinação de negócios entre BM&FBOVESPA e CETIP.

Os segmentos especiais de listagem da BM&FBovespa - Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado – surgiram no início do milênio. O tempo de maturação para a utilização destes segmentos especiais de listagem foi longo. Começaram a ser usados pelas companhias e requeridos pelos investidores a partir de 2004, com preferência para o Novo Mercado. Depois disso, o Novo Mercado tornou-se condição para o sucesso de ofertas públicas iniciais de companhias que acessam o mercado brasileiro. Foram feitas tentativas de reformas em 2006 e 2010, nesta última, as principais propostas feitas pela BM&FBOVESPA foram rejeitadas pela alçada competente de deliberação para a modificação das regras do regulamento: as próprias companhias participantes. Se houver oposição de 1/3 das companhias participantes, a Reforma do Novo Mercado não é aprovada. Para a Reforma de 2016, a BM&FBOVESPA tem buscado as percepções de mercado. Deve apresentar suas propostas para, só então, colocá-las em votação, após audiência restrita. A dúvida é se a alçada exclusiva para a aprovação de eventuais alterações no Novo Mercado implicará a desvalorização do referido segmento de listagem pelos investidores em caso de permanência das regras em vigor. Se as companhias participantes resistirem às propostas de alteração, o que tem sido tendência, será que os investidores continuarão a ver valor suficiente neste pacote regulatório?

Estimuladas pela CVM, 11 entidades de representação do mercado de valores mobiliários que formam o GT Interagentes buscam consenso sobre regras para companhias abertas. O objetivo é que este conjunto de regras seja inserido na regulamentação estatal, como instrução editada pela CVM, com respectivo monitoramento e mecanismos de fazer cumprir a regra executados pela autarquia federal. Os desafios de elaboração deste Código incluem o consenso entre os participantes do GT Interagentes, a definição de limites de atuação, linguagem adequada, forma de monitoramento e cumprimento, especialmente porque será utilizado o modelo pratique ou explique (comply or explain).

Outra iniciativa de autorregulação tem sido capitaneada pela AMEC, que pretende divulgar um código de princípios e deveres para investidores institucionais na comemoração de seus 10 anos de existência. A iniciativa é bem-vinda dado que existem poucas regras privadas para os investidores institucionais. Os participantes de mercado poderão participar da construção deste código por audiência pública. O elemento principal deste código será o conceito de stewardship, cuja tradução abarca mais do que o dever fiduciário legal, um engajamento efetivo e responsável dos investidores sobre os recursos por eles geridos.

Para além da melhora do conteúdo, há que se tratar da revisão da autorregulação pelo Poder Judiciário. Desde o início de 2016, a legalidade da autorização dada pela CVM para o credenciamento exercido pela ANCORD em relação aos AAI é objeto de ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal, o MPF, em face da Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, e a ANCORD. Na data de término deste artigo, o Poder Judiciário liminarmente retirou a possibilidade de atuação da ANCORD como entidade de autorregulação.

Na equivocada visão do MPF, a CVM delegou – e a delegação é proibida -- atividade estatal para a ANCORD, quando, na realidade, a CVM apenas utilizou sua prerrogativa legal (artigo 18, Lei 6385/76) para regulamentar a profissão de AAI, usando a legítima opção de utilização do trabalho da entidade de autorregulação sob sua intensa e pública supervisão. Também segundo o MPF houve descumprimento do princípio constitucional de liberdade de associação em função da determinação de controle do ingresso dos AAI no mercado pela CVM por meio da ANCORD. Mais uma vez, a autorregulação tem seu conteúdo confundido com outro conceito, neste caso, a livre associação. O desenrolar desta ação civil pública será importante para conhecer a percepção do Poder Judiciário em relação à autorregulação como política regulatória.

A autorregulação é uma opção legítima de política de regulação, que consiste no uso de mecanismos privados de elaboração, monitoramento e fiscalização de regras em prol dos objetivos do regulador estatal. A IOSCO, entidade privada internacional que congrega os reguladores e autorreguladores de mercado de valores mobiliários de mais de 100 países, incluiu a autorregulação em seus princípios sobre regulação deste mercado. Não é razoável supor que a CVM não tenha a possibilidade de, dentro de sua esfera de atuação, estabelecer os mecanismos pelos quais cumprirá seus mandatos legais, incluindo a utilização da Supervisão Baseada em Risco, como permitido pelo Conselho Monetário Nacional.

Além disso, após 03 anos de atividades, o CAF, entidade de autorregulação constituída para analisar e julgar OPAs e reorganizações societárias, divulgou a análise da primeira operação, a reorganização societária de JBS S.A. Como no exemplo do Novo Mercado, o tempo de maturação para a utilização do CAF é longo, mas espera-se que as companhias abertas percebam o caráter benéfico da incidência destas regras e monitoramento por ente especializado e independente. Esta sinalização de compromisso de longo prazo de tratamento igualitário entre os acionistas é muito positiva para todo o mercado brasileiro.

O desafio decorrente da combinação de negócios entre a BM&FBOVESPA e CETIP é a escolha da estratégia única para a autorregulação da nova companhia. Atualmente, a BM&FBOVESPA criou uma empresa apartada para autorregulação, a BSM, enquanto a CETIP optou pela criação de área interna, o Departamento de Autorregulação da CETIP, o DAR. Estas entidades de autorregulação, auxiliares da CVM, com fundamento na Lei 6385/76, deverão ser consolidadas em uma única estrutura a ser escolhida e convalidada pela CVM, que atenda mecanismos de gerenciamento efetivo de conflitos de interesses e realize sua função com independência e rigidez necessária, de acordo com os preceitos da Instrução CVM 461.

Os desafios da autorregulação no mercado de valores mobiliários no Brasil não são poucos e são intrínsecos a sua natureza: a busca do novo, do melhor, do mais adequado padrão para criação de mercado mais ético, justo e equânime, com benefícios sistêmicos que devem resultar em atração e permanência de investimentos para nosso país.


Vanessa Brenneke
é advogada, mestre em Direito Comercial-USP (2016). Dissertação: Autorregulação no Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Matizes, Métricas e Modelos. Secondment no Takeover Panel Britânico (2015). Curso na Securities Exchange Commission, a SEC (2010). MBA-Insper (2006), LLM-Insper (2000).
vanessacb@cafbrasil.org.br


Continua...