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A revolução industrial testemunhou, em seu início, abusos impensados, como crianças trabalhando em fábricas, sem horários, nem cuidados de segurança, fornecendo mão de obra barata para produzir mais rapidamente bens materiais, como registram as imagens mais significativas do final do séc. XIX. Hoje o ciclo se repete, com outra matéria prima: os DADOS.
As redes sociais e a internet multiplicam volume e variedade inimagináveis de informações sobre seus usuários, dados gratuitos que servem para alimentar a publicidade, permitir o melhor conhecimento dos clientes, identificar ou “pré-ver” tendências, analisando, segmentando, lapidando essa mina de dados brutos. A imagem contemporânea é o “data mining”; empresas extraindo informações a nuvem aberta, processando esses dados para multiplicar suas potencialidades. No século XVIII e XIX o poder estava na terra, no século XX no capital, e no século XXI a informação empodera!
Leis de Proteção de dados
Mas o pêndulo da história oscila. Surge na Europa, em 2016, a GDPR - General Data Protection Rule, em vigor desde 2018, norma que baliza o uso das informações disponíveis sobre as pessoas, baseada no consentimento do titular dos dados e na moderação do uso dessas informações, sujeito o infrator a severas penas (em Janeiro desse ano a Google foi multada na França em € 50 milhões, com base na GDPR).
No Brasil é publicada em agosto de 2018 a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei 13.709/2018), que entrará em vigor em 15/08/2020. Muito semelhante à sua congênere europeia, baseia a obtenção de dados pessoais no consentimento do seu titular, regulamenta a obtenção, armazenamento, tratamento e uso das informações e prevê sanções severas e vultosas (multas de até 4% de faturamento anual, limitada a R$ 50 milhões por infração, dentre outras - art. 52).
Nesse ponto assume destaque a figura das regras de Compliance, pois a conduta da empresa em relação à política de informações pode gerar enormes reflexos nos resultados financeiros, na imagem da companhia e na postura dos investidores. Agora o investidor tem novo dado a prospectar; o até então livre uso de informações pelas companhias, que não gerava maiores preocupações, a partir de agosto de 2020 pode ser uma fonte de perdas e desgastes, ou, se bem cuidado, um exemplo de postura cidadã.
Mais um componente entra no rol de análise dos investidores, o modo de tratamento de informações em geral, principalmente em relação a usuários e consumidores.
Para dar ideia do volume de informações coletado tratado e disponibilizado vejamos os seguintes aspectos, que envolvem a cultura em vigor e os novos e severos padrões que se aproximam velozmente. Uso como exemplo os dados disponíveis em rede do Facebook, mais popular das redes sociais no Brasil.
Na prática, cada usuário do Facebook é um núcleo gerador de informações, com seus vários “amigos” e preferências expostos. Essas informações podem ser cruzadas, pela ferramenta de busca por afinidade de perfis, multiplicando as extensões e níveis de identidades. Ao mesmo tempo em que esses núcleos, os usuários, trocam informações profissionais ou de lazer, dedicando bom tempo de sua existência à telinha – já disse que o teenager deu lugar ao screenager categoria que não tem idade – o Facebook de modo naturalmente datafágico, coleta, cruza e redistribui esses dados, na forma de publicidade, que lhe rende bilhões, tendo lucrado US$ 5 bilhões no primeiro trimestre de 2018.
Diz o site da rede: “Em 2018 aconteceram muitas mudanças em nossas plataformas, desde novos posicionamentos para anúncios até a criação de recursos para tornar mais prática a relação entre empresas e seu público-alvo. Foi um ano em que o vídeo ganhou destaque, a troca de mensagens entre as pessoas e os negócios cresceram e, além disso, as compras feitas diretamente pelo celular aumentaram – e o Facebook não poderia ficar de fora dessas tendências oferecendo novidades. O principal objetivo do Facebook é fortalecer comunidades e proporcionar novas formas para pessoas e marcas se conectarem.”
O vídeo e a imagem impulsionaram as ferramentas de associação de faces para fins de obtenção de dados em nova fonte, que não as preferências expostas em textos; os rostos são os personagens aparentes, a ponta do iceberg visível, que permite verificar mais facilmente os gostos e características submersos.
Mas o Facebook pode marcar meu rosto e me localizar em fotos do perfil de outros usuários? Novamente com a palavra o próprio Facebook, através de sua Política de Privacidade, atualizada em 19 de abril de 2018:
“Reconhecimento facial: se você tiver esse recurso ativado, nós usamos a tecnologia de reconhecimento facial para reconhecer você em fotos, vídeos e experiências da câmera. Os modelos de reconhecimento facial que criamos podem representar dados com proteções especiais nos termos da legislação de seu país. Saiba mais sobre como usamos a tecnologia de reconhecimento facial ou como controlar nosso uso dessa tecnologia nas Configurações do Facebook. Se introduzirmos a tecnologia de reconhecimento facial em sua experiência do Instagram, nós informaremos você previamente e você terá controle sobre nosso uso dessa tecnologia para você.”
Então há tecnologia de reconhecimento facial no Facebook, e breve no Instagram, de modo a permitir o reconhecimento do rosto do usuário em qualquer imagem. Essas informações podem ser obtidas nas suas fotos, mas também nas fotos que representem o usuário, que estejam armazenadas na conta de amigos, bem como as informações nelas contidas, ou a elas associadas. Mais uma vez transcrevo trecho da Política de Privacidade do FB:
“O que os outros fazem e informações que eles fornecem sobre você. Também recebemos e analisamos conteúdo, comunicações e informações que outras pessoas fornecem quando usam nossos Produtos. Isso pode incluir informações sobre você, como quando outras pessoas compartilham ou comentam uma foto sua, enviam uma mensagem a você ou carregam, sincronizam ou importam as suas informações de contato.”
Como disse acima todas essas informações são coletadas e cruzadas, de modo a “ajudar você ... a encontrar pessoas” (sugestões de amizade). Tudo isso está claramente informado no link da Política de Privacidade, que você está lendo parcialmente agora, possivelmente pela primeira vez:
“Redes e conexões. Coletamos informações sobre as pessoas, Páginas, contas, hashtags e grupos com que você se conecta e sobre como você interage com eles em nossos Produtos, por exemplo, as pessoas com quem você mais se comunica ou os grupos dos quais você faz parte. Também coletamos informações de contato se você optar por carregar, sincronizar ou importá-las de um dispositivo (como uma agenda de contatos, registro de chamadas ou histórico de SMS), que usamos para ações como ajudar você e outras pessoas a encontrar pessoas que talvez vocês conheçam e para as outras finalidades listadas abaixo.”
Além do reconhecimento facial, informações sobre horário e frequência de uso da rede social, conteúdo que o usuário busca ou acessa, tudo é informação coletada e cruzada pelo Facebook.
Portanto, é bem possível que o Facebook use seu rosto para localizar seus hábitos e de seus amigos, inclusive utilizando fotos antigas (talvez por isso o 2009), de modo a facilitar a interação entre pessoas.
“Seu uso. Coletamos informações sobre como você usa nossos Produtos, como o tipo de conteúdo que você visualiza ou com o qual se envolve; os recursos que você usa; as ações que você realiza; as pessoas ou contas com que você interage; e o tempo, frequência e duração das suas atividades. Por exemplo, registramos quando você está usando e a última vez que usou nossos Produtos, quais publicações, vídeos e outro conteúdo você visualizou nos nossos Produtos. Nós também coletamos informações sobre como você usa recursos como nossa câmera.”
Todas essas informações são compartilhadas com anunciantes, de modo a permitir, como disse antes, publicidade direcionada para determinado grupo de usuários.
“Anunciantes. Fornecemos aos anunciantes relatórios sobre os tipos de pessoas que visualizaram os anúncios deles e sobre o desempenho de tais anúncios, mas não compartilhamos informações que identifiquem você pessoalmente (informações como seu nome ou endereço de e-mail, que possam ser usadas por si só para contatar ou identificar você), a menos que você nos dê permissão para tanto.”
Outras utilizações do reconhecimento facial passam da interação com livros de role playing game, até o controle do cidadão pelo poder público, como já acontece na China. Essa prática está sendo cogitada por vários governantes brasileiros eleitos em 2018, que desejam implementá-la em seus estados.
Essa coleta e armazenamento também pode ter por objeto, além dos dados cotidianos, como data de nascimento, endereço , preferências, etc., a voz, outro fator de identificação das pessoas. As redes praticamente não tinham limites na coleta e armazenamento de dados, facilitada pela exponencial evolução tecnológica.
Andy Warhol disse que no futuro todos seriam famosos por 15 minutos. A frase hoje ainda é: “Se o serviço é grátis, o produto é você!”. O maior uso do site gratuito pelo usuário implica em aumento do patrimônio imaterial (e material) do dono das redes; é a bicicleta com dínamo, cujas pedaladas fazem o farol iluminar não só seu caminho, mas muito mais o terreno por onde você anda, que é do dono das redes.
Portanto a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), cuja entrada em vigor, repito, se dará em agosto de 2020, vai reposicionar o controle sobre a extração, armazenamento e uso de dados no Brasil. Todo o tipo de informações pessoais, como médicas, sobre créditos, hábitos de consumo, moradia, e, principalmente, o cruzamento desses dados - denominado pela lei como “tratamento” – e a sua disponibilização sofrerão sérias restrições. Destaco alguns artigos relevantes:
Art. 7) o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: i - mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;
Art. 8) o consentimento previsto no inciso i do art. 7º desta lei deverá ser fornecido por escrito ou por outro meio que demonstre a manifestação de vontade do titular. § 1º caso o consentimento seja fornecido por escrito, esse deverá constar de cláusula destacada das demais cláusulas contratuais.
art. 17) toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta lei.
art. 18) o titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: i - confirmação da existência de tratamento; ii - acesso aos dados; iii - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados;
art. 42) o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.
O mundo das informações e o jurídico estão em efervescência, pois na prática todas as empresas que naturalmente coletam dados de consumidores terão que se submeter às regras dessa lei, que já gerou na Europa pesadas multas. Consumidores, dirigentes de empresas e investidores devem atentar para as informações dos sites, política de privacidade das companhias, conteúdo dos contratos das redes sociais e tudo o mais que implique na obtenção, uso, tratamento e disponibilização de dados.
Ainda estamos na idade do chip polido, mas já se desenha na nova era a impossibilidade da matéria prima disponível não poder ser coletada livremente. É a propriedade imaterial – e todas as suas derivações - se consolidando como ativo desse início de século XXI.
Gustavo Martins de Almeida
é advogado, mestre em direito, atua na área civil e comercial. É Conselheiro do MAM e da AMEAV e membro da Comissão de Direito Autoral da OAB -RJ e do IAB.
gma@gmalaw.com.br