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Apesar dos sustos e percalços políticos, a Reforma da Previdência será aprovada no Congresso. Pode não ser a melhor reforma – e a qualidade da reforma aprovada depende diretamente da habilidade do governo em convencer e negociar com o Congresso -, aquela que corte os benefícios abusivos do judiciário, de parlamentares e de classes profissionais, mas o pilar central do regime de capitalização será aprovado.
Afinal, a sociedade já está suficientemente esclarecida sobre a demografia perversa, os custos do sistema atual e a injustiça social causada pelo sistema atual e sobre as condições fiscais. O controle das contas públicas, o ajuste fiscal, a sustentabilidade da relação dívida pública/PIB, a manutenção dos juros básicos em níveis civilizados, e muitos e muitos outros acertos dependem do passo inicial da reforma da previdência. Todos são requisitos obrigatórios para retomar o crescimento econômico em ritmo sustentável.
A implantação do regime de capitalização será o teste inicial para credibilidade e capacidade política do Governo Bolsonaro e sua equipe. As expectativas de investidores nacionais e internacionais dependem desta demonstração. O governo atual - Executivo, Legislativo e Judiciário - terá a responsabilidade de conferir um marco regulatório moderno ao regime de capitalização que permita gerar benefícios além da questão fiscal e do corte dos benefícios injustos.
Aprovado o regime de capitalização, o governo e sua equipe enfrentam novos desafios, alguns simples por não exigir os embates no Legislativo e as delongas do Judiciário. Outros são mais complexas, pois envolvem a reorganização da estrutura e controle societário. Em contrapartida, a nova previdência cria grandes oportunidades que, se aproveitadas, potencializam os efeitos da reforma. Este artigo discute o pós-reforma da previdência, enfocando os problemas e oportunidades de mudanças complementares no setor financeiro.
Um diagnóstico realista revela diversas carências e distorções, que as reformas de 1965-68 haviam tentado corrigir. Passados mais de meio século, muitos dos avanços prometidos foram perdidos. E é bom lembrar que os anos de intenso crescimento econômico do milagre brasileiro resultaram dos avanços e melhorias de 1965-68, em especial da Lei do Mercado de Capitais (Lei 4728, de julho de 1965). Neste pacote de reformas, a Lei das SA e a criação da CVM remodelaram em bases modernas o setor financeiro, infelizmente nem todas aproveitadas.
Relançar a economia brasileira na rota do crescimento sustentado, com taxas melhores do que os medíocres 2 / 2,5 %, vai exigir mudanças drásticas, além da reforma da previdência. Existe uma agenda já anunciada com a implantação de um sistema tributário mais inteligente e menos punitivo e reorganização dos gastos públicos. Não menos importante – por enquanto ainda ao largo das preocupações do governo – está a reforma do mercado financeiro. Inclusive, a reforma e modernização do marco regulatório e modus operandi do setor financeiro servem como pilar fundamental para aproveitar o restante do bônus demográfico, que se esvai.
O conforto perverso da concentração em títulos públicos
O regime de capitalização na previdência exige por definição a montagem de carteiras mais eficientes. Neste aspecto, existem dois problemas gritantes. Primeiro, nas condições atuais, os títulos públicos predominam em rentabilidade e menor risco, e o novo regime de capitalização vai gerar uma demanda adicional por títulos públicos. Por um lado, é confortável para os gestores das carteiras e para o governo na administração da dívida pública, mas por outro, consolida velhas práticas e vícios. Será uma oportunidade perdida para modernizar a economia brasileira, ampliar o espaço e responsabilidade do setor privado, e gerar recursos para investimentos fixos. O conceito de investidores institucionais privados, que foi um dos objetivos das reformas de 1965-68, foi perdido com o conforto do endividamento público. E com este pseudo conforto, minguaram as fontes de recursos privados para investimentos fixos em projetos.
Desempenho dos fundos atuais de previdência privada
O segundo problema é o desempenho dos fundos de previdência aberta, com a cobrança de elevadas taxas de administração, em alguns fundos atingindo 5 %. Ora, taxas elevadas de administração são justificáveis quando existe uma gestão ativa das carteiras, que gere retornos médios maiores (e/ou risco médio menor) do que os do mercado. Não é o que acontece no Brasil, como alertam diversos trabalhos. Citando os resultados das pesquisas coordenadas pelo Prof. Carlos Heitor Campani, COPPEAD/UFRJ, pelo menos nos fundos disponíveis pelas maiores empresas de previdência aberta, o desempenho é inferior ao do mercado – e pior do que o desempenho de uma carteira passiva, tipo buy-and-hold -, embora cobrem taxas de administração ativa. Como a quase totalidade dos fundos (PGBL e VGBL) tem incentivo fiscal no imposto de renda, na prática os planos de previdência aberta estão se apropriando de parte do benefício e isenção fiscal concedida pelo governo. E no caso dos fundos fechados, os problemas de má gestão são reforçados pelas interferências políticas e os desvios de recursos.
Como complemento, pesquisas anteriores desenvolvidas pela consultoria SILCON apontaram que, na média, o desempenho retorno-risco das carteiras de reservas de seguradoras, das empresas de previdência aberta e de títulos de capitalização fica abaixo da fronteira eficiente condicionada pelas restrições de aplicações em ativos. Como os cálculos se referem a média do mercado, existem empresas com desempenho pior do que a média e outras acima, o que não quer dizer que estas últimas tenham desempenho melhor do que a fronteira eficiente.
Sem alternativas de melhores aplicações, o aumento de demanda por fundos de previdência privada vai consolidar a prática atual, seja na concentração de títulos públicos na carteira, seja na cobrança de taxas elevadas de administração. O patrimônio acumulado dos investidores pessoas físicas fica aquém do alcançável com uma gestão ativa ou com taxas menores de administração.
E sob o ponto de vista de cobertura dos riscos, as carteiras de reservas das seguradoras, empresas de previdência e de títulos de capitalização também mostram retorno-risco abaixo do possível, inclusive da fronteira eficiente condicionada pelas restrições na composição.
O mito da modernidade bancária
O cidadão comum se acostumou com o mito de que o mercado financeiro do Brasil é moderno e dos mais avançados no mundo. No tocante à tecnologia bancária existe algum fundamento no mito, embora o nosso sistema esteja longe do observado em outros países. E os custos e juros para o usuário final são exorbitantes, quer nos bancos privados ou públicos. A nossa tecnologia bancária tem custo elevado, não é inclusiva e dificulta a concorrência de bancos e instituições financeiras menores.
Juros básico e a formação do spread de risco
As distorções e mau funcionamento do setor financeiro do Brasil assumem inúmeras formas. A principal - e não única - e maior evidência de que o setor financeiro funciona mal é a taxa de juros persistentemente elevada, que viciou toda a economia e tornou o setor financeiro avesso ao risco. E como todo vício, a cura exige tratamento, que envolve atuar nos fundamentos do próprio setor financeiro. Juros elevados são confortáveis para os rentiers e instituições que precisam de resultados financeiros para encobertar as deficiências operacionais, mas ajudam a concentrar renda e desestimulam os investimentos.
Por conceito, as seguradoras precisam do risco para as suas atividades e conhecem como prevenir danos e sinistros. Através da gestão de risco têm a função de mitigar o risco de atividades, e com isto reduzem o spread básico do sistema produtivo e de patrimônios. Os bancos comerciais, por sua vez, têm aversão ao risco e não são talhados para a prevenção de sinistros. Portanto, assumem, em princípio, como dado o spread básico quantificado pelas seguradoras. No seu papel de intermediação financeira, os bancos diversificam o risco das atividades e estabelecem a estrutura de risco financeiro da economia.
Nos mercados financeiros modernos, as seguradoras controlam ou têm participação relevante na administração central dos bancos. O spread básico de risco flui do mercado de seguros para o sistema bancário. No Brasil, e em geral, as seguradoras são apêndices ou controladas por bancos, que por definição não são talhados para estabelecer o spread básico de risco. Como resultado, os juros básicos incorporam um spread por precaução.
Os recursos privados de longo prazo para investimentos fixos
Ainda no elenco de carências, o mercado de capitais privado continua capenga, sem conseguir prover recursos de longo prazo para as empresas, que acabam sendo ofertados pelas instituições públicas (BNDES e agências de fomento). Os bancos de investimento, criados nas reformas de 1965, não cumpriram o seu papel no fomento às atividades de fomento ao capital fixo e se dedicaram ao crédito ao consumo. O funding via equity e IPOs é ainda uma operação com custo relativo mais elevado, mais demorada e difícil do que realizada num mercado de capitais atuante. A dependência de recursos públicos para investimentos fixos foi fonte dos desvios, fraudes e corrupção nas últimas décadas. A mudança de gestão do BNDES estancou estes problemas, mas a auditoria nos empréstimos e identificação dos beneficiados não basta para restaurar, por si só, os canais da oferta de recursos para investimentos de longo prazo. As instituições privadas de crédito imobiliário – criadas também pela Lei 4728, de 1965 - fracassaram e os financiamentos acabaram concentrados na CEF.
Liberdade cambial e depósitos em outras moedas
O processo de abertura da economia brasileira é basicamente comercial, e em segundo plano, financeiro. No âmbito financeiro, a liberdade do mercado de câmbio não é completa na permissão de abertura de contas bancárias em moeda estrangeira nos bancos comerciais, em condições idênticas no compulsório ao dos depósitos em reais. Descentralizar o mercado de câmbio com a abertura de contas em outras moedas, sem curso legal, gera pelo menos sete benefícios :
(a) distribui as responsabilidades do Banco Central com o setor privado no carregamento de reservas,
(b) o custo e o risco de carregamento de reservas geradas pelos bancos privados são de responsabilidade dos próprios bancos, desonerando o Banco Central, com reflexos positivos na taxa de juros e no alongamento da dívida pública,
(c) integra o sistema financeiro do Brasil ao sistema internacional,
(d) agiliza as operações e amplia as fontes de recursos de crédito para o comércio e investimento,
(e) amplia os mecanismos de hedge contra os riscos nas operações de câmbio e reforçando as bolsas de valores,
(f) o mercado paralelo de dólar e outras moedas, sem registro e muitas vezes ocultando operações ilegais, diminuiria. O Banco Central e bancos comerciais teriam os registros das movimentações das contas, e
(g) os depósitos em outras moedas podem ser convertidos em títulos cambiais de emissão dos bancos depositários e negociados em bolsas de valores. E como ponto final nesta medida, depósitos em moedas estrangeiras já fazem parte da prática bancária internacional, inclusive de nossos vizinhos latinos.
Mazelas menores
Duas outras mazelas menores do nosso setor financeiro podem ser apontadas, como os deficientes canais de recuperação de créditos e de securitização de dívidas. Mas os acertos nestes itens podem ser adiados para outra etapa. Um passo de cada vez. Próximos artigos devem explorar estas questões.
Claudio R. Contador
SILCON Estudos Econômicos. Ph.D. em Economia, Universidade de Chicago, EUA; Professor Titular de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (aposentado), membro de diversos conselhos de empresas e instituições no Brasil e exterior.
claudiocontador49@gmail.com