Enfoque

UM PAÍS PRÉ-LIBERAL

O liberalismo surgiu na segunda metade do século XVII com uma ideia singela: somos todos livres e iguais. Essa ideia foi tão repetida desde então, que é difícil perceber o quanto era nova e subversiva.

Os corolários da ideia eram: o fim do absolutismo; a supressão da monarquia, da aristocracia, dos privilégios (de classe, de sexo, de raça); a instauração da República, da democracia, do habeas corpus; o fim da censura; liberdade econômica, de imprensa, de religião; separação entre o Estado e a Igreja; igualdade de oportunidades; direito de propriedade para todos (e não só para os nobres); o direito de cada um viver sua vida como bem entender. Tudo impensável na época.

A ideia deflagrou movimentos revolucionários em todo o mundo ocidental. Em 1688, os ingleses derrubaram seu rei e importaram da Holanda um outro que respeitasse a liberdade religiosa e o Parlamento. Em 1776, os colonos na América se rebelaram e criaram a primeira república liberal da história. Em 1789, os franceses decapitaram seu soberano, emitindo ondas de choque por toda a Europa.

No Brasil, as ideias liberais produziram movimentos como a Inconfidência Mineira e acabariam por levar à proclamação da Independência. Diferentemente dos EUA, no entanto, o Brasil teve uma independência consentida, e pôs à testa do governo, indefinidamente, o príncipe regente. Pouco depois, dom Pedro dissolveu a Assembleia Constituinte, prendeu e baniu seus adversários, e aprovou uma Constituição que lhe conferia o Poder Moderador.

A República Velha, de inspiração positivista, foi também iliberal, assim como o governo provisório de Vargas, a ditadura do Estado Novo e a ditadura militar. Mesmo nos raros períodos que podem ser considerados democráticos, o Estado brasileiro imiscuiu-se na vida dos cidadãos e, com frequência, violou seus direitos.

Recentemente, após a débâcle do intervencionismo petista, o termo “liberalismo” entrou em voga, mas temos tão pouca tradição liberal, que muita gente, tanto à esquerda quanto à direita, considera que ele se refere somente a liberdade econômica. E, na liberdade econômica “à brasileira”, os agentes econômicos privados exigem benesses governamentais, como vimos com a intervenção governamental no preço do diesel. (Aliás, não custa lembrar que o mais emblemático dos “liberais” brasileiros, Roberto Campos, criou a correção monetária, apoiou o intervencionista Geisel a ponto de ser seu embaixador em Londres, e votou em Maluf, especialista em surrupiar do Estado, para presidente.)

O autoritarismo, na economia ou fora dela, está impresso de maneira indelével em nosso inconsciente coletivo. A reação típica do brasileiro ao ver qualquer coisa com a qual não concorde é exclamar: “isso deveria ser proibido!”. Sejam os juros dos bancos, o preço dos produtos de consumo, ou uma exposição de arte que considera imoral, o cacoete é chamar o Estado para proibir.

No Brasil, se proíbe cadeira na calçada; saleiro em restaurante; canudinho de plástico; preço diferente para a bebida gelada ou à temperatura ambiente, e para ingresso na Internet ou na bilheteria. Quase proibimos o Uber e estamos falando em proibir o AirBnB. O Estado brasileiro não fornece segurança, educação ou saúde de qualidade, mas se mete em tudo e proíbe tudo.

Uma juíza condenou um humorista à prisão por ter ofendido uma deputada: aqui, liberdade de expressão é preceito constitucional fundamental desde que não ofenda ninguém. Mas quem precisa de garantia constitucional para ser gentil com os outros? garantia constitucional é justamente para poder ofender. Ofender é do jogo.

Toda ideia tem o poder de ofender alguém. A ideia liberal de que somos livres e iguais ofendeu o rei, a aristocracia, os senhores de escravos etc. As ideias de Cristo ofenderam Roma e ensejaram 300 anos de perseguição aos cristãos. As ideias de Galileu ofenderam os cristãos - e ofendem os terraplanistas de hoje. As ideias de Darwin ofenderam os cristãos - e ofendem criacionistas como a ministra Damares e o pastor Malafaia. E nem vamos falar de Marx e Freud. Sem liberdade para ofender, as mulheres não votariam e os escravos continuariam escravos: a sociedade não avança sem ofender alguém.

Aceitar ofensa não é igual a advogar impunidade: se o que alguém diz causa dano, ele não deve ser censurado, mas responder na Justiça e pagar indenização proporcional ao dano. Mas não basta dizer-se “ofendido” ou “magoado”: é preciso demonstrar o dano. E a responsabilidade deve ser civil, não penal.

Quem se sente ofendido, entretanto, especialmente se for autoridade, acha que pode calar quem o ofende. Confrontado por um cidadão que afirmou que “o Supremo é uma vergonha”, o ministro Lewandowski chamou a polícia, e o cidadão foi obrigado a prestar depoimento na PF. Já o ministro Alexandre de Moraes, instruído pelo presidente Dias Toffoli, censurou a revista Crusoé, que ousou revelar que Toffoli é “o amigo do amigo do meu pai” de Marcelo Odebrecht. Os ministros usam suas prerrogativas para violar as garantias constitucionais das quais deveriam ser guardiães.

As autoridades afirmam, com muita pompa e solenidade, que “a liberdade de expressão não é absoluta”. Evidentemente, ninguém pode gritar “fogo” num teatro lotado, nem se pode admitir pornografia infantil ou discurso de ódio: manifestações assim representam risco concreto para outras pessoas. Mas são exceções que confirmam a regra: a ofensa à deputada e a matéria da revista não representam risco concreto para ninguém.

Na raiz da arrogância de nossas autoridades está o fato de que não acreditam, de verdade, que sejamos todos iguais. Aqui, “alguns são mais iguais do que os outros” e “Sarney não pode ser tratado como uma pessoa comum”, como disse Lula. O Brasil é o país da carteirada, do “sabe com quem está falando?”.

A aristocracia brasileira já não detém título nobiliárquico, mas subsiste em uma casta de privilegiados a se locupletar do Estado. Funcionários públicos que ganham muito melhor do que os cidadãos comuns, que não podem ser demitidos, que obtêm aposentadorias milionárias em troca de contribuições irrisórias, cujos filhos têm acesso a pensões estapafúrdias. Deputados, senadores, juízes, procuradores, militares são verdadeiros marqueses. E, comparado aos plebeus que lhe pagam o salário e amargam a maior taxa de desemprego de todos os tempos, mesmo o mais humilde dos barnabés é um barão.

Passados mais de 200 anos da Revolução Francesa, o Brasil está vivendo um turbilhão. E o que estamos discutindo? Corrupção de autoridades públicas. Privilégios de classe. Liberdade de expressão. Abuso de poder. Vícios do sistema eleitoral. Impostos. O peso opressivo do Estado. Tudo por causa daquela ideiazinha singela que diz que todos somos livres e iguais.

O Brasil está discutindo, enfim, se quer ser um país liberal.

Já não era sem tempo.


RICARDO RANGEL
é administrador de empresas, foi diretor da Icatu Holding e sócio-diretor da Conspiração Filmes. É colaborador do jornal O Globo e autor dos livros “Passado e Futuro da Era da Informação” e “Uma Nação sem Noção”. Foi candidato a deputado federal pelo Partido Novo/RJ em 2018.
rprangel2004@gmail.com


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