No final do ano passado começaram a ser debatidas diversas propostas de alteração na Lei nº 6.404/76, com o objetivo de melhorar a posição do Brasil no ranking do Doing Business do Banco Mundial e aperfeiçoar a proteção aos minoritários. Como a questão foi tomando proporção cada vez maior, a Abrasca decidiu reunir, no final de dezembro de 2020, um grupo de experientes juristas para discutir essas possíveis alterações.
A pauta do webinar, que teve mais de 600 inscritos, foi construída com base nos seguintes temas: conflito de interesses em assembleias e operações com partes relacionadas; litígios para tutela de minoritários; e membros independentes do Conselho de Administração.
Foram convidados para debater esses tópicos Nelson Eizirik, ex-presidente do CAF, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e professor da Escola de Direito da FGV/RJ; Mariana Pargendler, doutora pela Yale Law School professora de direito da FGV/SP; Gustavo Gonzalez, diretor da CVM; e Marcelo von Adamek, professor da Faculdade de Direito da USP. Os debates foram coordenados por Renato Berger, fundador do Berger Advogados.
O propósito do encontro não era chegar a uma conclusão se a lei deve ou não ser alterada, muito menos discutir uma nova redação para algum artigo, mas sim debater as questões no plano conceitual – e foi o que ocorreu. No entanto, ficou explícito o consenso dos participantes sobre um ponto específico: medida provisória (MP) não é a forma adequada para se alterar a Lei das S.A, tendo em vista a ausência de urgência e, em muitos casos, tampouco de relevância, requisitos necessários e intrínsecos no regime de tramitação das medidas provisórias.
Cabe destacar que, ao longo dos dois primeiros anos do atual governo, o Ministério da Economia vem buscando introduzir aprimoramentos à Lei nº 6.404/76, com objetivo de impulsionar o mercado de capitais. Algumas ideias foram debatidas na tramitação da MP 881/19, transformada na Lei nº 13.874/19, popularmente conhecida como Lei da Liberdade Econômica, e da MP nº 892/19, que não foi aprovada pelo Congresso e perdeu sua validade em dezembro de 2019.
A MP 881/19, originalmente em seu artigo 8º, pretendia incluir o novo art. 294-A na Lei 6.404/76, destinando à CVM atribuição para, em regulamentação própria, dispensar exigências previstas na Lei das S.A. para companhias definidas como de pequeno e médio portes, o que poderia facilitar o acesso dessas sociedades ao mercado de capitais; entretanto, tal dispositivo não foi mantido na Lei 13.874/2019.
Já a MP 892/19 extinguia a obrigatoriedade de publicação de atos societários em diários oficiais e jornais impressos de grande circulação, a fim de passarem a ser feitos somente por meio eletrônico, visando à redução do custo e burocracias relacionados à rotina administrativa e societária das empresas, demanda antiga de todo o mercado, tendo em vista o seu anacronismo nos dias atuais. No entanto, a medida teve seu prazo de vigência expirado e perdeu a validade – não chegou a ser analisada pelo plenário da Câmara nem pelo do Senado.
Algumas medidas provisórias são relevantes para as companhias abertas, como a MP nº 881/19, que atendia um antigo pleito da Abrasca. No entanto, tudo indica que a forma como essas propostas são conduzidas seja a razão de encontrar tantos obstáculos no Congresso. A título de exemplo, vale citar que, nos últimos dois anos, o Governo Federal emitiu 149 medidas provisórias, sendo que grande parte foi rejeitada ou sequer analisada. Só em 2020 foram 101, o maior número em quase duas décadas, e nem todas foram destinadas a combater a pandemia da Covid-19.
Mudar a Lei das S.A. exige debate
Nelson Eizirik, resumindo o pensamento dos participantes, destacou que ninguém é contra alterar a Lei das S.A., desde que isso ocorra de forma transparente e que seja fruto de um grande debate. Há uma razão para esta preocupação: as últimas mudanças na Lei nº 6.404/76 são passíveis de críticas por deficiências técnicas. Durante os debates do webinar foi citada, como exemplo, a chamada “Lei Lobão”, que intentou tirar o direito de recesso da incorporação, esquecendo-se de que havia outro artigo que tratava dessa questão – o que resultou em uma grande insegurança jurídica.
Outra mudança problemática foi a reforma implementada através da Lei nº 10.303/01, que alterou vários aspectos da Lei das S.A. e foi malsucedida na construção de alguns conceitos, como é o caso do preço justo, que até hoje se discute do que se trata. “O Artigo 254 A tentou construir uma definição do que seja alienação de controle, que é absolutamente circular e termina dizendo que alienação de controle é alienação de controle”, exemplificou Nelson Eizirik.
No entender do professor, esses exemplos não devem servir de inspiração para tentativas de novas mudanças. Por isso, afirmou temer o “voluntarismo jurídico”, ou seja, a ideia de que mudando a lei vai se alterar a realidade econômica – quando, na prática, o que se consegue é criar mais insegurança jurídica.
O que se discute agora? Com o intuito de melhorar a pontuação do Brasil no Doing Bussiness do Banco Mundial, o governo estuda fazer alguns ajustes. Entre as 190 economias avaliadas pelo BIRD, o país caiu de 109ª para a 124ª posição em 2020. Nações como México (60º), Índia (63º) e África do Sul (84º) estão à nossa frente.
O que motiva todo esse debate é a possibilidade de o governo editar uma MP alterando os artigos 122 e 124 da Lei nº 6.404/76, que trata das assembleias gerais – o que exigiria também uma nova redação para o artigo 115, sobre voto do acionista em situação de potencial conflito de interesses, bem como nos artigos 138 e 140 da mesma lei, que dispõem sobre o Conselho de Administração e sua composição. A avaliação é que operação “relevante” entre partes relacionadas poderá ter de ser submetida à assembleia, e que, nas companhias abertas, será vedada a acumulação de cargos de presidente do Conselho de Administração e diretor presidente por uma mesma pessoa, além de passar a ser obrigatória a participação de conselheiros independentes no conselho em proporção a ser estabelecida pela CVM, sem nenhum limite estipulado na própria lei.
São temas complexos que não encontram apoio generalizado do mercado, inclusive dentro da própria Comissão de Valores Mobiliários. A maioria alerta para a possibilidade de promover insegurança jurídica em lugar de funcionar como propulsora de mais negócios e segurança para os acionistas minoritários, podendo criar entraves desnecessários para as companhias, em especial aos grupos societários de maior porte.
As discussões avançaram no início de dezembro, quando a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou o relatório sobre meios privados de tutela dos direitos de acionistas. O relatório “Private Enforcement of Shareholder Rights” é o resultado da segunda fase do projeto realizado pelo Grupo de Trabalho formado entre a CVM e o Ministério da Economia, juntamente com a OCDE.
Segundo a OCDE, o objetivo do material é recomendar a adoção de medidas que possam robustecer o arcabouço de ações derivadas e arbitragem no Brasil, tendo como base uma revisão comparativa das estruturas de nove países: França, Alemanha, Israel, Itália, Portugal, Cingapura, Espanha, Estados Unidos e Reino Unido.
Ocorre, porém, que a simples transposição de uma regra bem-sucedida em um país não garante que repetirá o mesmo efeito em outro, o que exige, portanto, muita cautela. Isso está explícito em vários estudos da década de 1990 sobre adoção de medidas do Banco Mundial para deter a inflação em diversos países da América Latina, inclusive o Brasil.
Ninguém discorda de que o mercado de capitais precisa de aperfeiçoamentos, tampouco que as regras para as companhias abertas podem ser flexibilizadas e atualizadas. Vivemos um processo disruptivo, o que pressupõem agregar valor a um sistema já existente. Portanto, se necessário for que a Lei das S.A., sancionada em 1976, deva ser atualizada, mas que isso ocorra como fruto de um amplo debate entre as partes regidas pela lei.
Eduardo Lucano da Ponte
é presidente Executivo da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca)
abrasca@abrasca.org.br