AMEC | Opinião

GOVERNANÇA CORPORATIVA NO CONTEXTO DO BOOM DOS IPOS

O ano de 2020 será histórico para IPOs em todo o mundo. Se antes da pandemia a perspectiva dos investimentos era de maior seletividade na escolha das empresas, o excesso de liquidez, a busca por retornos mais atrativos e o senso de oportunidade transformaram o ano com a surpreendente quantidade de ofertas. Apesar de todo esse frenesi, quando as condições que trouxeram as entrantes ao mercado se dissiparem, aspectos sólidos como a governança serão testados no relacionamento entre investidores e empresas.

No Brasil, onde a taxa básica atingiu a mínima histórica de 2 por cento ao ano e o número de investidores individuais se aproxima de 4 milhões, os IPOs registraram números impressionantes. No ano fechado, dados da B3 mostram que foram captados mais de 40 bilhões de reais nas 28 ofertas de IPOs, o segundo maior volume da história. Se incluirmos os follow-ons na análise, os números de captação de recursos se aproximam de R$100 bilhões.

Entre as estreantes, há empresas de setores não antes disponíveis no mercado local, como a fintech de cashback Méliuz, a rede de pet shops Petz, a administradora de estacionamentos Estapar e a empresa de manejo de resíduos Ambipar. Ao contrário do passado, quando muitos diziam que empresas estreantes diminuíam os recursos disponíveis - classificando as operações até mesmo como a “morte da bolsa” - a ampliação dos setores do mercado brasileiro tem sido vista como desenvolvimento benéfico do mercado de capitais.

Outro destaque positivo é a realização de captações com tickets menores, inferiores a R$1 bilhão, o que reforça o mercado de capitais como fonte alternativa ao crédito bancário para esses volumes de capital. Além disso, é motivo de comemoração o fato de que 26 das 28 estreantes aderiram ao Novo Mercado, o mais alto segmento de governança corporativa da B3 - sem contar a migração de companhias já listadas, como TIM e GPA - o que indica apelo dos investidores pela preservação de seus direitos como acionistas minoritários e boas práticas de gestão. Vale lembrar que o assunto vem sendo cada vez mais discutido no Brasil e no exterior, em meio à ascensão dos critérios de investimentos baseados em Ambiente, Social e Governança - ou ESG.

É verdade que alguns projetos não se concretizaram por questões relacionadas ao valuation ousado ou pela baixa demanda dos investidores, argumentos mais comuns para se justificar a interrupção de novas ofertas. Pouco tem sido explorado com relação à incapacidade de muitas empresas em atender requisitos mínimos de governança exigidos pela bolsa brasileira. Muitas operações nem chegam ao mercado por conta da fraca estrutura de governança das empresas, que carregaram até o último minuto suas estruturas familiares e os relacionamentos conflituosos com outras empresas do próprio fundador, com a promessa de que tudo será diferente a partir da oferta pública inicial.

Há relatos de empresas que nem mesmo tinham balanços auditados para os últimos anos, ou que nem mesmo possuíam Conselho de Administração estruturado quando do envio dos primeiros documentos da estruturação da operação. Mas além dos requisitos check the box, fica a sensação de que a ausência de cultura de compliance, controles internos e segregação de funções fará com que algumas empresas tenham dificuldade no relacionamento com investidores. Até porque é fácil imaginar que mesmo empresas melhor preparadas passam por uma curva de aprendizado no amadurecimento de suas áreas de Relações com Investidores (RI).

Nesse contexto, é natural que novas companhias listadas comecem com o básico e evoluam suas práticas com o tempo, mas é nesse momento de estruturação das entrantes que “aumenta a responsabilidade das empresas já listadas em ser exemplo de melhores práticas”, como apontou recentemente o presidente do Conselho do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Henrique Luz. Justamente por isso, o escrutínio da governança corporativa envolvendo empresas do segmento Novo Mercado deve continuar sendo bastante elevado.

Em perspectiva mais geral, outros aspectos dos IPOs também precisam de aperfeiçoamentos. Uma pesquisa do capítulo brasileiro do 30% Club, movimento que visa ampliar o equilíbrio de gênero no comando das empresas, mostra que mulheres ocupavam apenas 11,2 por cento dos vagas nos conselhos das empresas que realizaram IPOs até setembro último. O conselho de apenas uma empresa era presidido por uma mulher e oito das estreantes não tinham sequer uma mulher no board. A situação é mais preocupante ao se pensar que, no IBRX 100, índice que compila as 100 maiores empresas da bolsa brasileira, a proporção de mulheres no board é ainda menor: somente 10 por cento.

O fato de que muitas empresas aceleraram seus processos de IPO para aproveitar a janela de oportunidades é algo pra lá de positivo, e a presença de pontos de atenção não desmerece o momento do mercado brasileiro. Avalio que a prova de fogo que se colocará para todas essas mudanças será a próxima temporada de assembleias, prevista para ter início em março. Será o momento em que investidores institucionais e estrangeiros buscarão interlocução maior com as companhias dentro do espírito de engajamento, e será, portanto, o teste de fogo das áreas de RI. Seguimos na torcida para um desfecho positivo.

Fábio Henrique de Sousa Coelho
é presidente da Amec - Associação de Investidores no Mercado de Capitais e ex-superintendente da Previc.
fabio.coelho@amecbrasil.org.br


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