A pandemia nos transformou. A crise sanitária causada por ela ressaltou dores e chamou a atenção ao que era invisível ao senso comum. Os efeitos dos atuais modelos de mercado e estado expuseram a falta de cuidado com o ambiente e uma sociedade cheia de mazelas provocadas pelo forte caráter Hobbesiano do ser humano. Nosso pragmatismo que olha apenas para o imediato continua sem o horizonte da sustentabilidade, quase em uma alusão ao carpe diem, carente de conceitos, reflexões e resultados que contribuam à qualidade de vida agora e de futuras gerações.
Vimos com clareza a desventura e o estrago causados pela falta de diálogo ou por monólogos polarizados, porque crises sanitárias exigem ações simultâneas e de múltiplas dimensões. A busca pelos extremos tem resultado em muitos culpados e poucas soluções. A ciência e o poder político ficaram em lados opostos numa disputa inglória e épica, quase alcançando uma narrativa mitológica. Surgiram líderes, caíram comandantes. Os vulneráveis se multiplicaram. O desemprego foi ampliado e não há perspectivas de reduções diante dos avanços tecnológicos, produtividade, e inovações que suprimiram postos de trabalho e que exigem alto grau de qualificação. A arte imitando a vida ganhou espaços numa simulação de realidade que mostra evolução tecnológica e científica, mas muito pouco avanço como sociedade, onde o final inacabado apresenta um elevado número de mortes antecipadas no relógio biológico, e a principal comorbidade é de cunho social.
A história dá pistas importantes para o entendimento do que está por vir. Para o The Economist, o cenário pós-pandemia pode ser o retrato dos nossos dias atuais, também expresso em Les Miserables (1864), onde “os ricos fugiram para as casas de campo e se protegeram” enquanto a inocência da pequena Cosette era abreviada pelo trabalho infantil e extrema pobreza. Pouco depois, a Exposição Universal em Paris levou às classes melhor privilegiadas ao apogeu na mudança de época - nada incomum na história da civilização. Em um paralelo aos nossos dias, o anúncio da grande mudança vem com carros híbridos/elétricos, energias renováveis, tecnologias que incrementam a conectividade e eficiência, o avanço exponencial da ciência possibilitando cura para doenças até então sem respostas. São avanços necessários e muito bem-vindos. Mas, a condução da mudança precisa ser diferente.
A guerra fria agora se estabelece em conflitos geoeconômicos do 5G, produção de vacinas e novas conquistas espaciais. As prioridades atuais estão nos levando a marte, mas a fome não foi vencida, nem mesmo atenuada. Novos tempos, mesmos comportamentos, resultados que se repetem em ciclos históricos.
No Brasil, temos economias aglomeradas por habitações precárias de alta densidade (2m²/pessoa), déficit habitacional, ausência de saneamento básico, de água limpa - um panorama desigual demais para o conceito de sociedade.
No Ceará, os números da pobreza e extrema pobreza atingem quase 3,5 milhões de pessoas, 39% de uma população de pouco mais de 9 milhões, em condições subumanas. As perdas trouxeram mais empatia e solidariedade durante a pandemia. O ano de 2020 ampliou as redes de apoio aos mais vulneráveis no mundo todo, mas, também, deixou a riqueza mais concentrada nas mãos de poucos. Quem sabe a capital do Hidrogênio Verde consiga transferir rend, diante das riquezas futuras projetadas. Seria um avanço transformador do Verde com o social.
No ambiente político, a governança merece uma atenção especial na busca pela eficiência político-institucional e integração estado-mercado. Discursos propositivos superam a narrativa de conflito. Não menos que agora, o pós-pandemia exigirá instituições fortalecidas, presentes e aptas a atender à sociedade, com autonomia que impeça ameaças à democracia.
Novos modelos e ferramentas surgem como revisão de paradigmas. A reflexão de Kofi Annan, Who Cares Wins, em 2004, feita a grandes instituições financeiras iniciou uma discussão sobre como integrar questões ambientais, sociais e de governança aos interesses do mercado. Foi um divisor de águas na forma das corporações pensarem o futuro. Entender que estamos inseridos num ecossistema do qual dependemos diretamente pode despertar a sensibilidade social para fortalecer os processos decisórios, e principiar um redesenho de mercado e estado com foco no impacto que as decisões geram para o ambiente e sociedade, e retornam para as instituições. Longe de ser uma abordagem romantizada, a fala de Annan faz despertar o interesse por uma visão integrada de uma estratégia completa, com objetivo não apenas no resultado, mas focado nos processos e escolhas do que entregar ao mercado. Os Princípios para Investimentos Responsáveis (2006) são um desdobramento do ESG. No Global Impact Investing Network (2019), o investimento responsável chegou a US$ 31 trilhões no mundo, e US$ 1 trilhão de investimento de impacto.
Em 2015, a riqueza de diversidade, perspectivas e experiências de 70 países resultou no que temos de mais amplo e completo sobre como mudar o mundo para melhor de forma sustentável considerando os critérios ESG: são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Eles traduziram para empresas e governo o que e como fazer para que o impacto do que chega ao mercado seja positivo para o ambiente, sociedade e para as instituições.
Nesse momento da história estamos vendo corporações e investidores mundiais olharem não apenas o impacto dos riscos ESG em seus portfólios e planejamento estratégico, mas também adotarem a sustentabilidade como princípio para decisão, e entender os impactos que seus portfólios têm no entorno. Isso significa ver a indústria 4.0 como meio, e não como fim, compreendendo os avanços da transformação digital, mas sobretudo o seu impacto na sociedade. Trazer o fator social à discussão sobre o futuro do trabalho permite deixar de lado a dicotomia “homem x máquina” e restabelecer a relação que nunca deveria ter sido esquecida de que a inteligência artificial, robótica, internet das coisas e demais derivações precisam ser direcionadas à melhoria da qualidade de vida da sociedade, e não disputar espaço com ela. É o surgimento da sociedade 5.0.
As instituições estão em transição para adotar os princípios de sustentabilidade criando valor para empresas e sociedade. A importância da adoção ESG é realidade nas discussões no mercado de capitais, é vista como indicador de solidez, custos mais baixos, melhor reputação e maior resiliência em meio às incertezas e vulnerabilidades. O mercado de capitais mundial absorveu que investimentos tradicionais que não olham para os problemas que geram provocarão prejuízos, e dá sinais de que num cenário de longo prazo o mundo destinará os recursos a investimentos de impacto, que promovem intencionalmente impacto positivo. Distante de ações pontuais, o foco é no core business da companhia. A Boston Consulting Group (2020) aponta que as companhias que têm boas práticas nesses campos apresentam resultados melhores ao longo do tempo. Na lógica de maximizar o impacto positivo, pode existir um portfólio interessante para se investir: empresas que têm investimentos de impacto, empresas que nasceram para resolver problemas sociais e um outro olhar para a filantropia em organizações que combatem os problemas socioambientais.
A ONU indica que até 2025, 57% dos ativos de fundos mútuos na Europa estarão em fundos com critérios ESG, o que representa US$ 8,9 trilhões. 77% dos investidores institucionais pesquisados pela PwC (2020) disseram que planejam parar de comprar produtos não ESG nos próximos dois anos. O PRI, em 2020, registrou mais de 3 mil signatários, com ativos sob gestão que ultrapassam USD 100 trilhões. No Brasil, fundos ESG captaram R$ 2,5 bilhões em 2020 – maior parte da captação veio de fundos criados nos últimos 12 meses, com destaque para fundos net-zero e carbon negative.
A urgência social e ambiental pela descarbonização e redução do aquecimento global é fruto de investimentos tradicionais, com prejuízos que põe em risco a vida de espécies animais e vegetais, e pode comprometer seriamente a produção de alimentos como milho, arroz e trigo – base de muitas economias. Mais uma vez, a solução vem do que a natureza oferece. Energias renováveis são parte da resposta às indústrias mais poluentes. A matriz energética mundial está em discussão, e o hidrogênio verde (H2 verde - combustível do futuro) lidera a mudança pelo alto potencial de reduzir os impactos ambientais. No Ceará, a chegada do H2 verde traz a possibilidade de uma renda básica inclusiva para retirar milhões de pessoas da pobreza – é a filosofia ESG impactando positivamente na formulação de soluções tecnológicas para problemas sociais.
A adoção dos princípios de sustentabilidade já faz parte da análise de riscos e decisões de investimento, o que também pressiona governos. Então, por que não reforçar as políticas públicas do Estado com a assertividade proposta pelos ODSs? Por que não levar os benefícios da tecnologia que facilita a produção de alimentos, educação, saúde, bem-estar e segurança aos milhões de pessoas na extrema pobreza? Se esse contingente for beneficiado por um Estado que age com foco no impacto positivo, teremos diminuição da desigualdade, expansão no consumo, circulação de recursos, acréscimo na arrecadação de impostos.
Direcionar investimentos para tirar milhões da miséria, entre outras coisas, deve atrair a atenção de grandes investidores mundo a fora. O Estado pode ser redesenhado, no que seria natural, para a força de um formato ESG 5.0, que utiliza a inovação e a tecnologia para melhorar a qualidade de vida, levando educação de qualidade, saúde de qualidade e dignidade à população.
Célio Fernando B. Melo
é economista, mestre em negócios internacionais (UNIFOR), doutorando em RI (UL/ISCSP), Vice-presidente Apimec Brasil, Conselheiro Consultivo CDP LatAm, Sócio BFA. Secretário Executivo Casa Civil- Governo do Estado do Ceará.
celio.melo@bfa.com.br
Juliana Rabelo Melo
é graduada em Administração, especialização em Análise Financeira de Projetos de Investimento, pela Universidade Federal do Ceará; MBA em Finanças pela Escola de Negócios Saint Paul; Mestrados em Administração na Universidade de Fortaleza e em Negócios Internacionais pela Universidade de Ciências Aplicadas HDU Deggendorf/Alemanha; Assessora da Presidência da Agência de Desenvolvimento do Ceará.
julianadmelo@yahoo.com.br