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É extremamente provável que o Homo sapiens tenha saído das savanas africanas para povoar o mundo. Mas por que abandonamos o conforto das savanas para encarar o frio das mais extremas latitudes, o calor dos desertos ou as grandes altitudes das montanhas?
Será que no passado nos movemos pressionados pela necessidade de comida ou nossa espécie é dotada de um sentimento nômade atávico? Independentemente do que nos levou às migrações no passado, o fato é que hoje viajar é um dos maiores desejos dos humanos modernos.
Quando perguntamos para as pessoas por que viajam, as respostas mais comuns são: visitar a família, passar um tempo com os amigos, encontrar um clima melhor, buscar um amor, se encontrar ou, o que a maioria diz, descobrir novas culturas. Não à toa, a indústria do turismo é uma das que mais cresce no mundo. Todos os anos movimenta trilhões de dólares.
Se o maior objetivo é conhecer novas culturas, o turismo deveria fazer o possível para preservar as culturas únicas, mas nada as destrói tanto como o turismo. É estranho: as enormes redes de hotéis, de fast food, de cafeterias fazem o possível para nos acolher como se estivéssemos em casa.
Há uma palavra da língua alemã que me parece responder à questão de modo muito mais convincente: Wanderlust. É a junção das palavras Wandern, que significa andar, e Lust, que é um impulso muito forte ou irresistível. Ou seja, é o desejo puro e simples de viajar. Pessoalmente, viajo para quebrar o ritmo normal da vida, mudar meu estado emocional, nutrir minha visão, cheirar, sentir e saborear. Viajar me permite encontrar o que me une com a humanidade e, sobretudo, entender o que me torna único.
A vida me possibilitou conhecer muitos lugares e diferentes culturas. Além das viagens de lazer, meu trabalho me levou a percorrer todo o Brasil e viver um ano no Canadá e outro na Bélgica. De todas, três viagens marcaram minha vida e me modificaram profundamente como pessoa.
A primeira foi a que fiz com vinte e poucos anos. Com dois amigos, saímos de Florianópolis em um Fiat 147 e fomos até Fortaleza. Mais do que praias, queríamos conhecer a seca que assolava o Nordeste naqueles anos. Decidimos fazer toda nossa viagem de ida pela BR 116. Na época, de Feira de Santana até Fortaleza, a estrada ainda era quase toda sem asfalto.
Foi assim que me tornei verdadeiramente brasileiro. Entendi como era errada a visão sobre o sertanejo difundida na grande mídia. Descobri a força do homem que enfrenta a dureza da seca na esperança da fartura da chuva. Passei a amar a diversidade de culturas e saberes do meu país.
A segunda viagem foi a que fiz no final dos anos 1990 com a Celina, minha companheira de viagens e de vida, pelo parque Torres Del Paine. Caminhamos por 12 dias apenas com nossas mochilas. Em um clima hostil e cenários de beleza ímpar, aprendi a respeitar a natureza e a viver com pouco. Cada item que vai na mochila cobra um preço elevado das nossas costas. Temos que pesar muito o custo e o valor do supérfluo. Entendi que sobriedade é muito diferente de avareza.
Iniciei a viagem como um homem ambicioso em conquistar bens materiais e saí com a firme convicção de que eles só fazem sentido se puderem melhorar nossa vida. Ali descobri que consumir para conquistar status social não fazia o menor sentido.
O ano de 2022 foi um dos mais desafiadores que já vivi. Em novembro de 2021, fiz 60 anos e comemorei muito a entrada na terceira idade. Busquei assim que pude minha credencial para estacionar em vaga de idoso e adorei ir ao cinema pagando meia entrada. Mas a empolgação durou pouco, foi difícil encarar a velhice de frente. Acabei o ano deprimido. Então resolvi realizar um velho sonho: saí de Florianópolis de carro rumo ao Chile para encarar a icônica Carrretera Austral. E esta é a terceira viagem da minha vida.
A Carretera Austral, ou Rodovia 7, parte de Hornopirén, onde após dois ferryboats se chega em Caleta Gonzalo. A partir dali, são mais 1.038 km até Villa O'Higgins, onde a estrada acaba em frente ao imenso Campo de Gelo Sul.
Aqui, o turismo de massa ainda não chegou. Claro que tem aqueles que querem apenas carimbar seu passaporte imaginário por ter percorrido toda a rota, porém a maioria das pessoas quer apenas estar. Muitos viajam de bicicleta, a pé, de carona, de moto, trailer ou, como no nosso caso, de carro com uma barraca. Assim como a BR 116 no início dos anos 1980, ainda existe pouco asfalto. Na maior parte do percurso, também não há sinal de celular. Comodidade das grandes cidades, nem pensar.
Na Carretera, não se viaja para chegar, se viaja para estar, se viaja para contemplar. Contemplar pode parecer uma palavra simples, mas evoca muitos significados. Trata-se de olhar com admiração, ver a perfeição nos detalhes, examinar com cuidado, refletir profundamente, se sentir parte do que é belo, se maravilhar. Para os religiosos, pode-se dizer que é sentir Deus naquilo que se contempla.
Para isso, é preciso tempo. Tudo que é belo pode ser contemplado, mas raramente o fazemos. Uma pequena teia de aranha olhada com cuidado pode ter tanta beleza como um glaciar que despenca do alto de uma montanha, e os dois podem ser apenas vistos sem ser contemplados.
Ao longo da minha vida, sempre fui movido por objetivos, por realizar, por chegar mais longe para cumprir metas. Não me arrependo nem um pouco de tudo que fiz ou de quem eu fui até aqui, porém é tempo de mudar. Tentar ressignificar a palavra velho como melhor idade, juventude prateada ou segunda adolescência – termos que muitas vezes eu mesmo usei – embute o preconceito de que o que é velho não presta.
Sim, eu sou um velho. Mas minha resistência física é maior que a da maioria dos jovens que conheço. Minha cabeça continua funcionando perfeitamente e vivo livre de preconceitos e dogmas, com a mente curiosa e aberta para o novo. Poderia dizer, então, que sou um jovem de mais de 60 anos? Poderia, mas seria um enorme erro.
Uma coisa me torna muito diferente de um jovem: minha expectativa de vida. É inegável que, quando olho para frente, tenho menos tempo do que tinha aos vinte e poucos anos. Então, o que mudou profundamente é que o valor do meu tempo passou a ser muito maior.
Meus compromissos com a criação dos filhos cessaram, a busca pela formação de patrimônio não é mais necessária, a busca por status há muito deixou de fazer sentido. É hora de direcionar o tempo que ainda tenho para aquilo que me deslumbra. Não tenho mais tempo para fazer o que não quero nem para estar com quem não agrega nada à minha vida.
É tempo de ter tempo para contemplar aquilo que é belo e aqueles que admiro por seu caráter, inteligência e bondade. A viagem na Carretera, na verdade, foi uma profunda viagem interior. Além de cenários deslumbrantes, me encontrei com o significado da minha velhice.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br