O lema Brasil, pátria educadora passa bem longe do mercado de capitais. O desconhecimento da população e a falta de poupança privada é o grande entrave para o desenvolvimento do mercado. Hoje, menos de 0,3% dos 200 milhões de brasileiros investem em ações, sem contar que parte desse público é formado por especuladores e não investidores de longo prazo. Na avaliação de um dos idealizadores da Lei do Mercado de Capitais, Ronaldo Nogueira, o diagnóstico pode ser resumido em uma palavra: desconhecimento.
Em entrevista exclusiva à Revista RI, Nogueira avalia a evolução do mercado de capitais brasileiro ao longo dos últimos 50 anos. Acompanhe a entrevista.
RI: Como o mercado era na época em que surgiu a Lei do Mercado de Capitais e o que mudou principalmente?
Ronaldo Nogueira - Na época as sociedades anônimas eram todas registradas em uma bolsa de valores, mas apenas algumas eram negociadas. O pregão durava uns 20 minutos e os corretores de fundos públicos ganhavam mais dinheiro no mercado de câmbio. Com a lei, isso tudo mudou. Foram criadas as sociedades corretoras de bolsa e as corretoras de câmbio em separado. Abriu-se a venda de carta patente para as corretoras. A sucessão não era mais por herdeiros. Muitos formaram sociedades corretoras e os que já estavam no mercado tiveram que se adaptar à nova lei. Isso mostrou que o governo passou a dar uma maior atenção ao mercado de capitais.
RI: O que falta para o desenvolvimento do mercado?
Nogueira - Eu digo em uma única palavra: educação. A oportunidade que houve durante a criação dos Fundos 157 não foi aproveitada. Não se criou a cultura de investimento. Isso também ocorreu quando houve a liberação das ações da Petrobras e da Vale para investimento com recursos do Fundo de Garantia. Vários brasileiros investiram, mas não houve o mais importante: a educação. Desde pequeno seus pais lhe ensinam a fazer as coisas. A gente aprende tudo. Os hábitos são criados por programas educacionais, mas não foi criado o hábito de investir na bolsa. Ninguém ensinou que comprar ações pode ser um bom negócio. Eu me lembro que quando foi criada a correção monetária as pessoas desconfiavam das entidades de poupança. Tinha gente que colocava dinheiro de manhã e tirava no dia seguinte. Então, ao longo dos cerca de 50 anos, hoje você tem 130 milhões de brasileiros com depósito de poupança. No mercado hoje, o número de investidores cadastrados na Bolsa, está em algo em torno de 600 mil, sendo que apenas 100 mil são considerados ativos, ou que operam a cada 12 meses. É um número pífio diante de uma população de 200 milhões. Como é que você vai desenvolver o mercado apenas 100 mil investidores? Os cadastrados na bolsa variam de 500 a 600 mil. O resto da população brasileira ignora o mercado de ações. Por quê? São várias as razões: falta educação e há o encolhimento do mercado que está perdendo cada vez mais investidores. Dos 100 mil, há um grande número de especuladores que participa da bolsa para ganhar no dia seguinte. Com espírito de investidor mesmo existe muito pouco. Eu diria que o nosso mercado está virtualmente dominado por especuladores.
RI: Mas não é somente a educação. Episódios de falta de governança em que as pessoas perdem rios de dinheiro, também afastam os investidores do mercado e deixa a imagem da bolsa como um cassino...
Nogueira - Porém esse tipo de informação atinge apenas uma parcela dos 100 mil. Pergunta para um médico ou arquiteto se eles acompanham esse tipo de notícia. Vão dizer que não interessa porque não têm ações. Se eles fossem investidores isso os afetaria. Se você pensar em investir esbarra no momento em que pretende se tornar investidor. Vá a uma corretora qualquer e diga que quer investir R$ 5 mil. Eles vão te empurrar um fundo de investimento porque R$ 5 mil não compensa para eles. Não vão perder tempo com você.
RI: Essa situação é que está fazendo as corretoras falirem e demitirem funcionários...
Nogueira - É exatamente isso. O mercado está estreitando. Como disse, hoje são algo como 100 mil. Se nada for feito, vai cair para 80 mil, 50 mil, até acabar. Quem faz o movimento da Bolsa? Como você vê as ações da Petrobras irem a R$ 8 depois a R$ 12 ou R$ 14 em poucos dias?. Não é o pequeno e médio investidor, mas sim o investidor pesado, o especulador nacional ou estrangeiro. Na grande maioria, o estrangeiro não está investindo na Bolsa brasileira com o objetivo de ganhar ao longo dos anos, mas sim ao longo de dias. Quando há um feriado lá fora, o volume da nossa bolsa cai enormemente. O que acontece é que o número de investidores aqui é cada vez menor. Veja o caso das corretoras que oferecem “cursos para investidores”. São programas de três a quatro horas e, se você for bem, elas dão o valor do curso na forma de corretagem para você “jogar” na Bolsa. Na tentativa de atrair novos investidores, estão atraindo incautos para o mercado. São 200 milhões de brasileiros. Aquele que entrou e perdeu não quer nem saber, mas têm outros que ainda não testaram e são atraídos apesar de pouco ou nada conhecerem sobre o mercado. Tudo o que falta, no final, é a educação. Em qualquer corretora você vai e diz: quero comprar ações. O cara vai te mandar comprar um fundo. Porque ele administra com um só profissional. O que não se dão conta é que R$ 50 de um garçom pode ser pouco, mas R$ 50 de muitos garçons transformam-se em um volume considerável.
RI: E as companhias abertas? Vemos hoje uma postura de saída da bolsa e ainda existem muitas que não saem pelos entraves para fechar o capital...
Nogueira - Quando você cria uma empresa, seja do que for, precisa vender para consumidores. É claro que se você abrir uma sapataria já conta com quem use sapato, mas no nosso mercado de ações, há o produto e não tem quem compre. E não tem quem compre porque falta conhecimento e educação de quem vai comprar, e das próprias corretoras. Hoje existem cerca de 350 empresas listadas na Bolsa. Na minha época, eram 1.000. As empresas foram saindo. Muitas faliram, ou foram incorporadas ou saíram simplesmente. A pergunta é: por que a empresa abre seu capital? Para permitir a participação de outras pessoas para ajudar a empresa a crescer. Esse objetivo está completamente distorcido. Hoje tem ações que nem se mexem no dia. São poucas que tem liquidez. A Souza Cruz, uma das pioneiras na Bolsa, agora quer fechar o capital, certamente porque o mercado não atende mais. O que existe hoje não é somente característica de Brasil. Outros países têm situações semelhantes. No próprio Estados Unidos, as ordens na Bolsa estão sendo dirigidas por computadores, levando o número de investidores individuais a cair substancialmente. O investidor está sendo substituído pelas máquinas. No entanto, lá ainda existe a preocupação de que a pensão futura está baseada em ações. Há um vínculo do mercado de ações à uma atividade de investimento. Veja a Apimec, da qual sou fundador (Abamec 1970). No início as pessoas iam nas reuniões para conhecer e fazer perguntas sobre a lucratividade, a expectativa futura da empresa. Existiam mais de 3 mil associados na Abamec no Brasil. Hoje são 600 pessoas. Eu me lembro que há alguns anos fui à 3 reuniões na sociedade dos analistas de Nova Iorque. Começava com um café, depois um almoço e outra sessão à tarde. Eram três empresas se apresentando e muitos interessados. Hoje em dia isso não acontece mais. A internet substituiu uma porção de coisas e nos EUA isso é um fato. No Brasil, tirando os 100 mil, você têm 200 milhões que não sabem nem que existe mercado ou que tem uma visão deturpada da bolsa.
RI: Quais os movimentos que as entidades têm feito para desenvolver o mercado?
Nogueira - Eu soube que existem mais de 800 iniciativas para promover o mercado de capitais no Brasil. Eu entrei em contato com a entidade formada com esse objetivo e falei do trabalho que estávamos fazendo para estimular o mercado no Brasil. Daí quis saber quais eram esses projetos e a resposta foi: é sigiloso. Não querem que seu projeto seja divulgado. De que adianta ter 800 iniciativas? A CVM está promovendo a regulamentação para pegar falhas na comunicação das empresas, para promover a abertura de capital, mas como podemos estimular a empresa a abrir capital sem estimular as pessoas a comprarem ações? Os estímulos a abertura de capital podem ser inúmeros, mas se você não disser para o futuro investidor que comprar é um bom negócio, não vai vender nunca. Tanto que o número de empresas listadas está diminuindo. Se você fizer uma pesquisa nessas mais de 300 empresas listadas e perguntar quais gostariam de fechar o capital, o número de respostas sim será bastante grande.
RI: Há alguns anos, o senhor criou o Instituto Nacional dos Investidores (INI), justamente para combater o problema da falta de educação. Como foi o projeto e por que não deu certo?
Nogueira - O INI não deu certo por falta de objetividade. A ideia nasceu há mais de dez anos exatamente com essa preocupação, de que faltavam investidores. O INI foi espelhado na NAIC - National Association of Investors Corporation, uma entidade americana cuja missão é formar pessoas para atuarem no mercado de ações, ensinando-as a investir através de pequenos clubes de investimentos. Eu fui em uma reunião de um desses grupos em Nova York, que contava com 14 pessoas e que já existia há mais de dez anos. A presidente do clube era uma enfermeira. Eles se reuniam todos os meses e a primeira parte da reunião era dedicada à educação. Já a segunda parte era dedicada a tomada de decisões. Ao fim da reunião, todos pagaram US$ 300, que era a contribuição mensal ao clube de investimento. Após a reunião fui conversar com eles no jantar. No clube tinha aposentados, engenheiros, advogados, as mais variadas profissões. Perguntei qual o montante de recurso do clube: US$ 220 mil dólares. Quando perguntei o montante da carteira própria de cada um caí para trás: o que tinha menos possuía US$ 400 mil. Daí perguntei por que quem tem isso na carteira própria participaria de um clube de investimento? A resposta foi simples: o grupo é o comitê de investimento. As decisões do clube influenciava a carteira individual de cada um. Daí eu trouxe essa ideia para o INI com o apoio da NAIC e da Bovespa. A ideia era formar pequenos clubes de investimento em todo o Brasil, mas isso, por outras razões, virou uma imitação dos fundos de investimento. As pessoas faziam clubes no Brasil para ter um tratamento diferenciado do fundo e poucos funcionaram como verdadeiros clubes. O problema é que as corretoras, nas atuais condições do mercado, perdem com pequenos investidores, pois a estrutura é cara. O INI nasceu espelhado na NAIC com as adaptações necessárias. Conseguimos apoio e dinheiro para a largada, para sustentar o instituto nos primeiros anos até que a ideia se espalhasse. O objetivo era que o INI fosse autossustentável com as anuidades dos clubes de investimentos. Infelizmente, quando o INI foi formado, eu tinha outras atividades que impediam minha participação integral. No final o objetivo do INI de educar através dos clubes nunca foi levado à frente. Foi distorcido desde a largada. Tanto é que teve que ser fechado há dois ou três anos. Agora voltei com a mesma ideia, mas com o aprendizado anterior. Quero criar um programa de educação financeira no Brasil inteiro.
RI: Uma das críticas que escutamos comumente é que o BNDES é o grande financiador das empresas quando deveria ser o mercado de capitais. O senhor acredita que essa concorrência está minando o mercado?
Nogueira - Quando não tem mercado de capitais para financiar as empresas, alguém precisa fazê-lo. O BNDES vem fazendo isso, ganhando poderes e escolhendo as empresas que quer financiar. No mercado de capitais, você vai e apresenta seu projeto e os investidores decidem. Uns entram e os outros não. No caso do BNDES você vai lá e apresenta seu projeto e uma pessoa decide se bota ou não o dinheiro. O BNDES ocupou um espaço que o mercado criou para ele. Não é ele que está matando o mercado. Alguém precisa financiar. Não há outra alternativa.
RI: É preciso apertar o cerco para o aprimoramento da governança no Brasil, diante dos recentes escândalos?
Nogueira - Os escândalos de mercado estão restritos a quem tem ações. Os cerca de 200 milhões de brasileiros estão alheios a esses escândalos. Não falo no escândalo de Petrobras que é público. Você conhece muita gente preocupada com governança? A maioria nem sabe o que é, e se sabem se perguntam: e daí? Não é comigo eu não tenho ações dessa empresa.
RI: Qual seria o mundo ideal?
Nogueira - Acredito que em termos de legislação, estímulos para abrir o capital e tudo o mais já existe o suficiente. Nós temos agora é que criar estímulos para que as pessoas participem do mercado e, para isso, é preciso educá-las e criar condições para que participem. As pessoas precisam saber disso, assim como as corretoras precisam permitir a participação de um maior número de brasileiros. Não falo dos 200 milhões, mas um salto de 100 mil para um milhão já representa dez vezes mais. Hoje, são 28 milhões de brasileiros que pagam imposto de renda, e desses só 100 mil estão na bolsa. É necessário um processo de educação com a participação das corretoras, da Bolsa, da CVM, etc. É preciso entender que qualquer um pode ser investidor e não podemos limitar o acesso a quem tem mais de R$ 300 mil reais. A educação através dos clubes de investimentos é o ideal. Estimular todos a participarem das reuniões, ensinar a poupar com o que puder. No início que o dinheiro vai para uma caderneta de poupança, mas com o tempo, os participantes vão sendo apresentados ao mercado e passam a comprar ações. As pessoas vão ficando conscientes. Uns aprendem mais rápido outros demoram, mas vão se movimentar. Ao mesmo tempo as corretoras passarão a se acostumar a atender o pequeno investidor e, certamente, terão mais negócios. Educação é a palavra.
Ronaldo Nogueira
Nasceu em Fortaleza (CE) no dia 31 de julho de 1938. Na infância morou em Montevideu (Uruguay) e Pelotas (Rio Grande do Sul) e desde 1948 está no Rio. Aos 21 anos, passou um ano na Europa, estagiando em bancos na Suécia e na Alemanha. Em 1961, formou-se em economia pela Faculdade Nacional de Ciência Econômicas da Universidade do Brasil, no Rio. Em 1966 passou um ano em Nova York, onde estudou no Graduate School of Business Administration da New York University, e estagiou nos bancos de investimentos Smith Barney e Kuhn Loeb. Durante sua vida profissional, além de trabalhar em instituições do mercado de capitais no Brasil, tendo sido fundador da ABAMEC, do IBRI e do INI. Desde 1989 tem ocupado até hoje o cargo de diretor de vários fundos de investimentos americanos (inclusive o Brazil Fund) e europeus.
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