Uma sucessão de acasos...
A Lei do Mercado de Capitais (Lei no. 4.728/65) completa 50 anos de sua promulgação no dia 14 de julho de 2015. Por maior que seja sua longevidade, as primeiras discussões que levaram a uma das maiores revoluções do mercado de capitais no Brasil surgiram de uma sucessão de acasos. Sua concepção está relacionada com a carreira do economista Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda de 1964 a 1967, e a de seu “sobrinho”, também economista, Ronaldo Nogueira que, de fato, deram o ponta pé inicial para que tudo acontecesse.
Octávio Gouvêa de Bulhões, “Tio Octávio”, como era chamado por Ronaldo Nogueira por conta do parentesco com sua esposa, Tita Nogueira, era um economista de orientação liberal quando foi nomeado em 1939 para chefe da seção de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda. Mais tarde, com a morte do presidente Getúlio Vargas (1954) e a posse de João Café Filho (1954-1956), recebeu o cargo de diretor da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), onde permaneceu até 1955. Após retornar à Sumoc como superintendente, em 1961, no governo de Jânio Quadros, Bulhões permaneceu no cargo até 1962, mesmo tendo discordância com as linhas básicas seguidas pelo governo de João Goulart.
No dia 1º de abril de 1964, líderes civis e militares conservadores derrubaram o presidente João Goulart e instauraram o regime militar. Nos primeiros dias após o golpe, Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu interinamente a presidência e nomeou um ministério provisório, que tinha Bulhões à frente da Fazenda. Quando o general Humberto Castelo Branco assumiu o governo no dia 11 em abril, o manteve no ministério.
Apenas 20 minutos
Em meio ao turbilhão político, Ronaldo Nogueira, dirigia-se diariamente à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, na Praça XV, onde 40 corretores reuniam-se na corbeille, um balcão circular ao redor do qual atuavam os corretores oficiais e onde eram apregoados os valores das ações. Na época, Nogueira era preposto assistente-sucessor de um corretor da Bolsa de Valores do Rio, pois os cargos de corretores eram nomeados pelo poder público e transmitidos como herança, de forma similar ao regime cartorial. “Eu era assistente do corretor Júlio Lips da Cruz. Como seu sucessor, isso significava que, quando ele morresse, eu imediatamente assumiria o cargo de corretor. Era assim que funcionava na época”, lembra.
Os pregões das ações duravam, em média, 20 minutos por dia e eram realizados em ordem alfabética, em meio a alguns gritos de compra e venda de ações. Em uma manhã, o então presidente da Bolsa, Ney Carvalho tocou a campainha para iniciar o pregão. Mal sabiam todos que seria após esse som que nasceria a Lei do Mercado de Capitais.
“Eu estava no meu posto que ficava do lado esquerdo da corbeille e o mercado abriu. Começou em queda e, a partir de um determinado momento ou em determinada letra, as ações começaram a subir movidas pelo lado oposto ao meu na corbeille”, lembra Nogueira. Na época, normalmente quando o mercado abria em queda, e era uma ação atrás da outra, uma determinava o comportamento da seguinte. No entanto, naquele dia, houve uma inversão com um forte movimento de compra no grito. Quando a tendência virou, todo mundo começou a comprar e o lado oposto que puxou a alta passou a vender. Poucos minutos depois, ao fim do pregão, os corretores do lado direito da corbeille jogavam seus cadernos para o alto e diziam: ganhei meu apartamento! Ganhei minha viagem! Do lado direito, imperou o silêncio. Os outros não estavam percebendo o ocorrido. Havia tudo acontecido muito rápido...
Depois de algumas doses
“Terminado o pregão, voltei para o meu escritório para fazer as operações de câmbio, que era o que dava dinheiro. Eu operava pouco com ações”, diz Nogueira. No fim do dia, lá pelas 17hs, Nogueira foi ao encontro de seu amigo, Guilherme Leão de Moura, que trabalhava como gerente do departamento técnico da Bolsa. “Como éramos vizinhos, eu costumava dar carona para ele. No caminho nós vínhamos conversando sobre o “escândalo” que havia ocorrido na manhã do pregão, o que era uma vergonha”, recorda.
Naquele dia, a esposa e o filho de Nogueira (Ronnie) estavam em Petrópolis. Sozinho em casa, ele convidou o amigo para tomar um whisky e conversar sobre o que tinha acontecido naquele dia na Bolsa. “Lá pela segunda ou terceira dose, o Guilherme me falou: ‘Ronaldo, teu “tio” é o ministro da Fazenda. Por que você não fala com ele?’ Eu peguei o telefone e liguei para a casa do Bulhões. Já passava das 19hs”, lembra Nogueira. Naquela época, os ministros moravam nas suas respectivas casas e o Bulhões encontrava-se em seu apartamento na Rua Raul Pompéia, em Copacabana.
“Eu disse: Tio Octávio aqui é o Ronaldo. Estou com o Guilherme que também foi seu aluno e gostaríamos de conversar com o senhor sobre a bolsa’. Expliquei um pouquinho o que tinha ocorrido e ele me disse o seguinte: ‘Ronaldo, convida o Guilherme para vocês virem jantar aqui em casa amanhã. Porque se o assunto for interessante, ótimo. Se não for, todo mundo tem que jantar mesmo...”, conta Nogueira. No dia seguinte, os dois foram à casa do ministro Bulhões e durante o caminho combinaram como apresentariam o assunto. Ronaldo começou: “o senhor está fazendo tanta reforma, também precisa olhar para as bolsas de valores. É uma bagunça generalizada”...
As bolsas de valores, foram instituídas oficialmente no Brasil por meio de vários decretos imperiais em 1851, que tratavam da intermediação de negócios no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará. Foi estabelecido, por exemplo, que no Rio de Janeiro "a Casa da Praça do Comércio era o único lugar competente para a reunião de corretores".
No início da década de 1960, havia uma bolsa em cada estado. Todas as sociedades anônimas eram obrigadas a fazer o registro na bolsa e eram negociadas apenas aquelas que tinham ações listadas. “Bulhões não sabia como funcionava. Expliquei para ele que isso dava espaço para manobras e especulações como as que tinham ocorrido no dia anterior. Bulhões, então, me pediu um relatório por escrito sobre o assunto”, recorda Nogueira.
Guilherme e Ronaldo voltaram para casa felizes com o desafio. Na época, sem a Internet para fazer a pesquisa e com telefones que mal funcionavam, os dois desenvolveram, em duas semanas, com base no que podiam ter acesso, inclusive enciclopédias, um relatório de 8 a 10 páginas, que explicava como funcionava o mercado no Brasil e nos Estados Unidos. Após a pesquisa, Ronaldo foi entregar o documento pessoalmente a Bulhões.
A matriarca dá a palavra
Passadas algumas semanas sem que houvesse manifestação do ministro, a avó da esposa de Nogueira (Tita), visitou a família para cuidar do bebê do casal (Ronnie Nogueira, atual editor da Revista RI), enquanto os dois saíam para jantar. Antonieta de Bulhões Gouvêa Pinheiro, chamada carinhosamente de Tuniche, era tia materna de Octávio Bulhões (irmã de Octávia, mãe do ministro) e uma espécie de matriarca da família. Como era bisavó de Ronnie (seu primeiro bisneto), Tuniche costumava visitar o bisneto quase que diariamente.
Como já estava tarde, Ronaldo foi levá-la ao seu apartamento, localizado no mesmo prédio que Bulhões morava em Copacabana. No caminho, Tuniche perguntou qual tinha sido a reação de Bulhões a respeito do documento. “Respondi o seguinte: ‘Ainda não tive resposta, e só se ele tiver muito peito é que vai fazer o que a gente sugere’. No dia seguinte soube que era mais de meia noite, quando, antes de ir para seu apartamento, Tuniche tocou a campainha do ministro e o acordou”, conta Nogueira.
Ao abrir a porta, Bulhões se deparou com uma senhora decidida, que o confrontou: “Octávio, estive com o Ronaldo agora e ele disse que só se você tiver muito peito é que vai fazer o que ele sugere”. Bulhões foi até o armário puxou o documento, colocou na pasta e foi dormir.
Vale lembrar que a “matriarca” Tuniche já tinha familiaridade com “assuntos da Fazenda”, pois seu tio materno Leopoldo de Bulhões (irmão de sua mãe Leonor) fora ministro da Fazenda por duas vezes, de 1902 à 1906 e 1909 à 1910.
Convocação
Ary Waddington era um experiente corretor de câmbio e muito amigo de uma autoridade no segmento: Marcos Souza Dantas. “Poucos entendiam de câmbio como ele, que, na época, criou o leilão de câmbio”, diz. Waddington havia sido aluno de Bulhões e também do próprio Marcos. Quando Souza Dantas faleceu, Ary foi homenagear o amigo no cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Lá encontrou o ministro da Fazenda que fez a convocação: “Ary, você pode ir ao Ministério amanhã no final da tarde?” relembra Waddington: “Eu sabia que o ministério fechava às 15:50hs. E perguntei como poderia entrar. Ele me respondeu que era só eu me anunciar que seria atendido”. Ary era um dos convocados para a reunião no Ministério da Fazenda, poucos dias após o ultimato de Tuniche.
“Quando a comissão se reuniu pela primeira vez, apresentamos um documento, elaborado por mim e Ary, que serviu de base para as discussões posteriores”, afirma Pedro Leitão da Cunha.
Leitão da Cunha era sócio de Ary Waddington na gestora de recursos Vamosa, primeira Asset Manager brasileira fundada em 1959. Foi outro dos nomes convocados. “Se havia um expert em investimentos, o nome era de Pedro Leitão da Cunha”, destaca Ary. A convocação do grupo veio através de uma portaria. “Curiosamente, eu virei duas pessoas: O Pedro Horácio e o José Maria Leitão da Cunha. O escrivão errou, pois meu nome é muito grande”, conta Leitão da Cunha.
A comissão formada para dar início ao trabalho que culminaria na Lei do Mercado de Capitais convocava Sérgio Augusto Ribeiro (diretor da Caixa de Amortização), Pedro Leitão da Cunha, Ary Waddington e Ronaldo Nogueira, que trabalhavam com corretores da Bolsa do Rio. “O Ary e o Pedro deram novas informações do documento e disseram que iam atacar o assunto. Alguns dias depois, por Portaria Ministerial foi criado um grupo de trabalho com o objetivo de propor medidas para o desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil”, recorda Nogueira.
Participaram ainda do grupo Ney Carvalho (presidente da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro), Ernesto Tomanik (presidente da Bolsa de Valores de São Paulo), José Cavalcanti Neves (Procurador Geral da Fazenda Nacional), Dênio Nogueira (presidente do Banco Central).
Foi dado um prazo de 30 dias para a apresentação de uma proposta que mudaria os rumos do mercado de capitais brasileiro. “Todos se conheciam e tinham experiência de mercado, idades similares e as mesmas ideias. Foi um exercício de patriotismo”, conta Ary.
Os membros reuniam-se diariamente e, como resultado, desenvolveram um trabalho dividido em três partes: A primeira voltada ao funcionamento das Bolsas de Valores; a segunda, as empresas e a terceira, aos investidores. O trabalho era relativamente grande e, após ser entregue ao ministro Bulhões, foi convocada uma nova reunião, desta vez com a presença de importantes autoridades do governo, como o ministro do Planejamento, Roberto Campos. Foram inúmeras reuniões para a discussão de cada tópico do trabalho. Ao final, passado algum tempo, Bulhões decidiu fazer a reforma na lei.
Fim do regime cartorial
As propostas de mudanças no mercado foram vistas por muitos como radicais, mas acabaram ocorrendo até por conta do regime autoritário vigente. Dentre as transformações trazidas pela Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estão: a reformulação da legislação sobre Bolsa de Valores; a transformação dos corretores de fundos públicos em Sociedades Corretoras (o que forçou a sua profissionalização); a criação dos Bancos de Investimento (aos quais foi atribuída a principal tarefa de desenvolver a indústria de fundos de investimento). “Na época, existiam apenas os corretores de fundos públicos que eram pessoas físicas autorizadas pelo Ministério da Fazenda que passavam seu cargo para um preposto sucessor, ou seja, era um emprego eterno”, diz Sérgio Ribeiro.
Waddington lembra que, antes da formação do grupo de trabalho, Bulhões havia enviado uma carta aos presidentes das bolsas do Rio de São Paulo em que perguntava o que precisava mudar no mercado. “Depois de 45 dias, ele recebeu a seguinte resposta: a única coisa que precisava mudar era a forma de transferência do cargo para o sucessor. Ao invés de o ministro da Fazenda empossá-lo, a transferência deveria ser automática. Diante do impasse com os representantes dos corretores, Bulhões me chamou e perguntou se era possível mudar. Respondi que sim, mas não do dia para a noite”, lembra Waddington.
Na época, existiam 40 corretores, que não tinham o estímulo vindo da concorrência para o aprimoramento dos negócios em bolsa. Segundo Leitão da Cunha, a proposta da comissão sugeria que fossem criadas as pessoas jurídicas das sociedades corretoras e que sua permissão de funcionamento ocorreria através de uma carta patente emitida pelo Banco Central, o qual havia sido recém-criado, mais precisamente em 31 de dezembro de 1964, pela Lei 4.595. “Havia uma exigência de capital mínimo para as novas sociedades corretoras e, ao mesmo tempo, deixou de haver um número limitado de autorizações. Essa transformação de pessoa física para pessoa jurídica permitiu o aperfeiçoamento técnico do sistema”, afirma.
O fim do regime cartorial que culminou na criação das sociedades corretoras foi um baque. “A dinâmica era completamente diferente. De repente foi preciso se profissionalizar. Lembro da reunião na bolsa de valores quando explicaram as mudanças. Logo depois houve um boom de abertura de sociedades corretoras. Foram cerca de 140, até que veio a crise de 70”, conta o então preposto sucessor corretor e, ex-presidente da Bovespa, Raymundo Magliano Filho. Ele havia sido emancipado pelo pai cedo para poder ter o direito de preposto sucessor corretor. Para os corretores que já estavam no mercado, como Magliano, foi possibilitada a condição de passarem um período como corretor individual antes de constituírem uma sociedade corretora, a qual exigia sócios e diretores. Essas novas sociedades podiam atuar nas bolsas de todos os estados, enquanto os corretores de fundos públicos podiam atuar somente no seu estado.
Persona non grata
Nesse período, ocorreu um episódio curioso. Dênio Nogueira resolveu publicar o trabalho na imprensa. Como era muito extenso, o texto foi publicado em partes, ao longo de alguns dias. No final da publicação foram dados os nomes dos autores do trabalho. “Só que eu era sucessor de um corretor da Bolsa. No dia seguinte, ou no mesmo dia, fui para o meu escritório e ao chegar tinha na minha mesa uma carta de demissão. Eu peguei a carta e na reunião no ministério disse: ‘Olha aqui! O nosso trabalho já está começando a surtir efeito, olha o tipo de reação...”, lembra Ronaldo Nogueira.
Dênio Nogueira
O corretor Júlio Lips da Cruz havia sido pressionado pelos demais corretores para demitir Ronaldo Nogueira. O problema é que o preposto-sucessor a corretor não era passível de demissão. Após a reunião com o grupo de trabalho, Bulhões ficou sabendo da carta de demissão. “O Bulhões não gostou nem um pouco. Ligou para o presidente da Bolsa Ney Carvalho e o convocou ao ministério. Disse que não admitia pressão no seu grupo de trabalho”, recorda Nogueira.
O fato é que o problema já existia e não havia mais como Nogueira continuar atuando na Bolsa. “No dia seguinte fui para o meu posto na corbeille e ninguém operava comigo. Ao final do pregão, alguém chegou para mim e disse: ‘não entra mais aqui na Bolsa. Você é persona non grata porque está trabalhando contra a classe’. A partir desse dia, não me deixaram mais entrar e eu passei a usar o escritório da Caixa de Amortização”, lembra Nogueira.
Profissionalização
Para Pedro Leitão da Cunha, a ideia da mudança que afetou diretamente as corretoras e o sistema de distribuição é apenas a ponta do iceberg das mudanças ocorridas. “A lei foi muito mais ampla, contribuiu para a sofisticação de um sistema absolutamente ultrapassado. Houve o estímulo para capitalização das empresas e para o aumento do número de investidores”, afirma.
Segundo Waddington, uma das principais contribuições da Lei do Mercado de Capitais foi a criação dos Bancos de Investimento. Ao desenvolverem a indústria de fundos de investimento, separavam o mercado de capitais do mercado de crédito. “A cultura do profissional de investimento e do profissional de crédito é completamente diferente. O profissional de mercado não pode ser banqueiro, pois este trabalha com recursos dos outros e não pode atuar alavancado. Essa questão foi o cerne da crise do mercado americano em 2008”, defende. A estrutura perdurou até 1987, quando foi criado o banco global, o que, na visão de Waddington, foi um grande erro.
A nova legislação também buscou a profissionalização das Bolsas de Valores. Segundo Leitão da Cunha, as instituições eram antes presididas pelos corretores de fundos públicos. Na época, as bolsas brasileiras eram entidades oficiais corporativas, vinculadas às secretarias de finanças (atuais Secretarias da Fazenda estaduais). Eram 27 bolsas de valores em todo o Brasil, dos governos estaduais, compostas por corretores nomeados pelo poder público. “Com a lei, cada bolsa passou a contar com um conselho, formado pelos representantes dos corretores e das companhias de capital aberto”. Outra importante mudança ocorreu no âmbito das companhias de capital aberto, que passaram a ter a obrigação de publicar fatos relevantes e resultados para os investidores.
Na época, foi posta em discussão a criação de uma autarquia reguladora do mercado. “Nós sugerimos a criação de uma superintendência do mercado de capitais que seria uma entidade autônoma. O Dênio Nogueira, porém, defendeu que a responsabilidade deveria ficar nas mãos do Banco Central”, ressalta Ronaldo Nogueira. Assim, foi criada a Gemec - Gerência do Mercado de Capitais, primeiro órgão a cuidar do mercado no Brasil. Posteriormente, a Gemec transformou-se em Dimec - Diretoria do Mercado de Capitais. Somente em 1976, com a Lei das S/As, foi criada a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Na avaliação do primeiro presidente da CVM, Roberto Teixeira da Costa, a especialização das instituições financeiras foi uma das grandes contribuições da lei, mas também era preciso que houvesse uma especialização regulatória. “O mercado de capitais exige especialização. Um dos motivos da crise de 1971 foi a estrutura de fiscalização incompetente”, afirma. Em sua avaliação, a Lei do Mercado de Capitais mostrou-se robusta, tanto que poucas coisas foram alteradas ao longo desses 50 anos.
Regulamentação
Dênio Nogueira fez uma “excursão” no Congresso para apresentar aos deputados (Comissão de Economia) o anteprojeto de lei, sua importância e os motivos pelos quais deveria ser aprovada. “Além de uma apresentação brilhante sobre os novos instrumentos de captação de poupança que se pretendia criar, Dênio teve muito trabalho em explicar o que era o instituto da "Alienação Fiduciária", instrumento que Dr. Bulhões Pedreira trouxe da Inglaterra para que se criasse no Brasil, um mecanismo de financiamento da indústria automobilística (financiar o comprador), bem como, a criação da Conta da Caderna de Poupança , sugerida por José Eduardo de Oliveira Penna (Diretor do BNH) para financiamento da indústria de construção civil”, conta Waddington.
Ele ressalta que a preocupação era criar "instrumentos de captação de poupança" específicos para cada atividade, diminuindo o espaço para o ressurgimento do "mercado paralelo" de notas promissórias, instrumento surgido durante o Governo de Juscelino Kubitschek, para financiar alguns investimentos do Plano do Metas.
Nesse momento, Murilo Bevilacqua, gerente de mercado de capitais do BC, tornou-se fundamental para a votação favorável. “Houve ainda a participação do Dr. Antonio Bulhões de Carvalho e Bevilacqua que, juntamente, com Norman Poser, foram incansáveis nas discussões da regulamentação da lei”, afirma Ary. Poser, representante da Securities and Exchange Commission (SEC), foi um dos grandes colaboradores da regulamentação da Lei de Mercado de Capitais. Ele passou duas semanas no Brasil (entre setembro e outubro de 1965). Após esse período, junto com Alan Roth, da American Stock Exchange (Amex), emitiu um relatório com diagnóstico e recomendações para a melhora da estrutura do mercado. Ele foi um dos idealizadores da reforma do mercado japonês e indiano.
Rumo à Nova Iorque
Enquanto fazia parte da comissão, Ary Waddington foi destinado a estudar o mercado americano com o objetivo de trazer para o Brasil ideias inovadoras. “A grande diferença que vi foi que, enquanto no Brasil existiam os corretores de fundos públicos, nos Estados Unidos havia corretoras com prédios de 40 andares. Nosso mercado era artesanal e atrasado. Lá a operação era gigantesca”, compara. Enquanto estava nos EUA, Waddington encontrou-se com um grupo de japoneses que também estavam estudando o mercado americano. “Eles me falaram o seguinte: se vocês querem desenvolver o mercado brasileiro, é preciso trazer profissionais para estudarem aqui”, conta, lembrando que na época havia mais de mil japoneses estudando o mercado nos EUA.
Assim surgiu a ideia da criação de uma bolsa de estudos na Universidade de Nova York para profissionais brasileiros. O curso era patrocinado pela USAID e financiado, em parte, pelo BNDE. Um dos participantes foi Ronaldo Nogueira. “Ao saber da bolsa de estudos, o Sérgio Ribeiro falou: ‘por que você não aproveita?’ Achei ótimo porque não havia mais espaço para mim na bolsa do Rio e, como eu já tinha ganhado algum dinheiro, tinha condições de me sustentar”, diz Nogueira. Em 1966, ele partiu com um grupo de 19 brasileiros para aprender, durante um ano, com famosos profissionais, quando teve oportunidade de vivenciar uma estrutura mais séria e profissional de mercado, além de ter sido aluno de Edward Demming, criador do conceito de qualidade total.
Herói desempregado
Em sua volta, Nogueira foi tratado como um herói. “A lei já tinha amadurecido e resultado em mudanças. Voltei como um herói da lei, mas eu não era mais corretor. Tive que arrumar um emprego. Virei herói desempregado. Aí arrumei o emprego na Invesco depois fui para algumas corretoras”, recorda. Em 1964, ano em que se debatia a nova lei, o IBV (Índice da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro) encontrava-se no fundo do poço, mas a partir de maio de 1965, iniciou-se um período de forte crescimento, culminando no topo de 1971. Entre junho de 1971 e agosto de 1972, o índice IBV apontou uma desvalorização de 70%, perda que ficou conhecida como “crash de 1971”.
Em 1966, Thomás Tosta de Sá, atual presidente do IBMEC, voltou ao Brasil, após um curso nos Estados Unidos sobre avaliação de ações. Ao chegar, encontrou o irmão que lhe explicou as mudanças na legislação do mercado e como o setor de energia seria beneficiado. “Conversei com uns amigos e criamos o Clube dos Engenheiros da PUC. Estudamos como investir através dos relatórios produzidos pela Organização SN. Mas, em 1969, me mudei para São Paulo e passei a participar de outro clube de investimento, mais formal”, conta. Diante do crash de 1971, o clube foi dissolvido. No entanto, um dos membros, um médico, decidiu pegar sua parte em ações e ficou com os papéis da Paranapanema. Anos depois, o médico resolveu ver quanto valiam suas ações. Com o dinheiro, comprou um apartamento e viajou para a Europa.
Incentivos
Uma das razões apontadas para o auge do crescimento do mercado brasileiro até 1971 foi a criação do chamado "Fundo 157" pelo Decreto Lei nº 157, de 10 de fevereiro de 1967. O decreto permitia que os contribuintes utilizassem uma parte do imposto de renda devido (10%), no momento da Declaração de Ajuste Anual do IR, para a aquisição de cotas de fundos administrados por instituições financeiras de livre escolha do aplicador. “Era um incentivo poderoso. Esse instrumento provocou uma grande arrancada no mercado, que acabou em 1971. Alguns questionam seu artificialismo, mas não tiro o mérito da tentativa”, ressalta Roberto Teixeira da Costa.
Até 1978, os contribuintes recebiam, juntamente com a notificação do imposto de renda, um formulário para investimento em algum Fundo 157 de sua escolha. O formulário preenchido deveria ser apresentado em algum banco ou corretora para que fosse efetivada a aplicação. Posteriormente, os contribuintes, com base em percentuais indicados pela legislação fiscal, tinham a opção de efetuar seu investimento diretamente na declaração de imposto de renda. O dinheiro era corrigido de acordo com a política de cada fundo, que aplicava os recursos em ações, títulos ou modalidades de investimento criadas na época de inflação alta.
O repasse à instituição administradora escolhida era realizado pela Secretaria da Receita Federal, que emitia um certificado e o encaminhava ao investidor. O incentivo fiscal deixou de vigorar no início dos anos 1980, quando foi revogado pelo Decreto-Lei n° 2.065, de 1983, em seu art. 14. Em 5 de junho de 1985, através da Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) nº 1023/85, os Fundos 157 então existentes foram transformados ou incorporados em Fundos Mútuos de Investimento em Ações, atualmente denominados Fundos de Investimento.
“Perdeu-se a oportunidade de aproveitar aquela massa da população que investiu nos Fundos 157. Tanto é que foram esquecidos. Faltou educação financeira. Podia-se pagar imposto ou comprar ações, e comprar ações era uma loteria. O 157 ofereceu um momento de perspectiva, mas se perdeu”, avalia Ronaldo Nogueira.
Os governos mudam
O grupo se separou, mas alguns membros ainda conversavam. Na avaliação de Ary Waddington, o mais importante para a reforma foi a compreensão do governo e do Congresso sobre a lei. Após os incentivos para o desenvolvimento do mercado acionário, vieram outros presidentes e ministros e o projeto prioritário ficou mais ou menos no segundo plano. Perdeu-se o foco e, atualmente, vivencia-se o esvaziamento da Bolsa de Valores. Os fatores que levam à crise do mercado de capitais são inúmeros, mas basicamente pode-se resumir na falta de atores: não há investidores, nem empresas interessadas em abrir o capital.
AINDA FALTA MUITO PARA O MERCADO
DE CAPITAIS CUMPRIR SEU PAPEL...
Após 50 anos da promulgação da Lei 4728/65, a principal função do Mercado de Capitais (prover recursos de longo prazo para as companhias abertas) ainda não é exercida em sua plenitude. Apesar da evolução em termos de legislação, os fatores que levam ao enfraquecimento são inúmeros. Falta poupança privada, há desconhecimento por parte do investidor, a conjuntura econômica, altas taxas de juros, escândalos recentes envolvendo grandes companhias abertas e falta de governança são alguns dos motivos enumerados pelos especialistas ouvidos pela Revista RI.
“Ainda estamos mais ou menos no mesmo patamar do período anterior à lei. Houve mudanças no arcabouço legal. A estrutura está pronta, mas como as companhias vão lançar ações se não conseguem captar pelo valor justo?”, destaca Luiz Spínola, vice-presidente da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca).
Spínola acredita que possa haver um movimento positivo no mercado nos próximos quatro anos, pois as crises geram soluções. “Se temos crise nas contas públicas, a solução para o investimento é o mercado de capitais”, afirma. O retorno de um ciclo favorável para o mercado, entretanto, ainda depende de segurança com relação ao marco regulatório brasileiro. Mudanças nas regras do jogo prejudicam o empresariado e inibem investimentos. "As empresas precisam de sossego. O meu 11º mandamento é: não complicarás. Diante de tanta burocracia, as empresas fecham o capital. É preciso lembrar que o mercado de capitais é sinônimo de Companhias. Sem elas, não há mercado de capitais. Mas o futuro é favorável. As economias são cíclicas e o mercado de capitais vai voltar”, diz Alfried Plöger, da Abrasca.
O maior entrave atual é a conjuntura econômica. A expectativa é de que o índice oficial de inflação (IPCA) beire os 9% este ano. De acordo com o boletim Focus publicado pelo Banco Central no dia 22 de junho, os economistas de cerca de 100 instituições, previsão para o IPCA é de que o índice acumule alta de 8,97%. Caso as previsões sejam confirmadas, essa será a maior inflação desde 2003, quando índice encerrou em 9,3%. “A conjuntura econômica está muito difícil. A inflação está em alta e o governo absorve mais de 40% da geração de renda e investe apenas 11% do PIB. Quem tem coragem de investir diante desse quadro?”, questiona o presidente da Abrasca, Antônio Castro.
Para combater a inflação, o Banco Central tem elevado a taxa básica de juros a cada reunião. A Selic encontrava-se a 13,75% ao ano no início de junho, o maior patamar em quase nove anos. Para o fim de 2015, os especialistas ouvidos pela pesquisa do Banco Central acreditam que a taxa deva ficar acima de 14%. “Os juros altos são um veneno para o mercado de capitais. O investidor não vai comprar ações ou correr riscos se os títulos do governo oferecem uma rentabilidade boa, sem risco. Para que haja o desenvolvimento do mercado, é preciso estabilidade econômica e juros baixos”, observa Geraldo Soares, superintendente de RI do Itaú Unibanco e presidente do Conselho do IBRI. Ele lembra que em países onde o mercado é desenvolvido, como Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, a estabilidade econômica é bem maior.
Para o comportamento do PIB neste ano, os economistas do mercado financeiro têm constantemente reduzido suas previsões. O boletim Focus do dia 22 de junho apontou a quinta queda consecutivo do indicador. A retração esperada é de 1,45%. Se confirmado, este será o pior resultado em 25 anos, ou seja, desde 1990 - quando foi registrada uma queda de 4,35%. “Estamos voltando à década de 80, com juros altos, inflação em alta e um governo deficitário. É preciso que haja um movimento para a criação de poupança. Temos uma elevada dependência do investidor estrangeiro. O brasileiro costuma aplicar em renda fixa. Há pouca poupança, pouca educação e pouca atratividade do mercado”, lamenta o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários, Luiz Leonardo Cantidiano, da Motta, Fernandes Rocha Advogados.
Com o pessimismo na economia, pouco se pode fazer para que o mercado retome seu papel de financiador das empresas no curto prazo. Mas é possível criar na conjuntura atual bases sólidas para o desenvolvimento do mercado no longo prazo, de forma similar ao que foi feito durante a concepção da Lei 4.728/65. “Não seremos um país desenvolvido sem o mercado de capitais. É preciso criar a cultura de investimento e, para isso, precisamos lançar mão da educação. É a história do ditado americano. A educação é cara? Tente a ignorância”, ressalta Roberto Teixeira da Costa, ex-presidente da CVM e conselheiro de várias empresas.
Popularização
No passado recente, movimentos importantes serviram para alavancar o mercado, como o liderado pelo ex-presidente da Bovespa Raymundo Magliano Filho, a partir de 2000. Iniciativas como a criação do Novo Mercado e a busca pela popularização da Bolsa foram importantes para o desenvolvimento dos negócios nos anos seguintes. “Queríamos democratizar o mercado e tornar possível que as empresas abrissem o capital. Foi quando buscamos apoio do presidente Lula”, conta Magliano.
Em 2002, quando Lula ainda era candidato, Magliano convidou Lula a visitar a Bolsa e, durante a visita, explicou o funcionamento do mercado ao presidenciável. Lula acabou por comprometer-se com o desenvolvimento do mercado, caso fosse eleito. E cumpriu. “O Lula me ligou e disse, ‘Magliano, já convoquei o grupo de trabalho do governo para traçarmos um plano para o desenvolvimento do mercado. O seu grupo está pronto?’ Corri e convoquei alguns técnicos da Bolsa. O trabalho foi realizado a quatro mãos e ele fez tudo o que prometeu”, conta.
Como resultados, houve o incremento do volume de negócios, ondas de abertura de capital e a valorização da Bolsa entre 2000 e 2007. Conforme os dados da Bovespa, de janeiro de 1999 até o final de agosto de 2000, a Bovespa sofreu forte valorização. O índice Ibovespa foi de 6.786 pontos no início de 1999, para 17.657 pontos em 28 de agosto de 2000. Ao final de dezembro de 2003, o índice totalizou 22.236 pontos, registrando variação de 97%. A evolução estava associada à estabilização da economia somada as políticas do novo governo, proporcionando melhores expectativas quanto à redução das taxas de juros e redução do risco país, aumentando assim o investimento estrangeiro no mercado brasileiro. O Ibovespa seguiu positivo até 2007, quando as condições econômicas internacionais reverteram devido à crise do subprime nos Estados Unidos. Neste período, empresas abriram capital e o volume de negócios registrou forte crescimento, passando de R$ 260 bilhões em 2000 para R$ 1,02 trilhões em 2007 (dados ajustados pelo IPCA).
“Com a crise de 2008, tudo mudou. Infelizmente, perdeu-se a credibilidade após a emissão de ações da Petrobras e a intromissão do governo na Vale e com a intervenção nas elétricas. Acabou a confiança e a credibilidade. Os juros são altos e o BNDES empresa dinheiro muito barato para as empresas. Todo o trabalho feito anteriormente foi perdido”, lamenta Magliano.
Regulação
Em termos de normatização e governança corporativa, o mercado brasileiro apresentou uma grande evolução nos últimos 50 anos, porém ainda há um longo caminho a percorrer. “A principal contribuição da Lei do Mercado de Capitais foi estabelecer a estrutura do mercado, que se consolida com a Lei das S/As. Porém, o mundo muda e é preciso que nos atualizemos. Se a gente já foi um referencial no passado, hoje não é mais porque os outros evoluíram e nós ficamos estagnados”, diz Geraldo Soares.
Ao redor do mundo, 57 países já adotaram um código nacional de governança corporativa, voltado tanto para companhias fechadas como abertas. “É interessante que tenhamos uma base melhor para que, quando a conjuntura econômica estiver melhor e ocorrer um novo boom no mercado, tenhamos mãos segurança. A governança não traz investidores, mas mitiga riscos”, destaca Soares. Casos como o recente escândalo da Petrobras acabam por afetar a credibilidade do mercado e afastar possíveis novos investidores. “Não podemos tomar atitudes hoje? O que as entidades do mercado podem fazer agora? Essas são as perguntas”, observa Geraldo Soares.
Não há dúvidas que o Novo Mercado foi um dos marcos da história da Bolsa, mas muito ainda pode ser feito em termos de autorregulação. “Houve uma grande evolução no mercado, mas falta articulação entre as entidades na busca pela atualização das melhores práticas. É preciso propor melhorias e evoluir com certa organização”, diz Marcelo Mesquita, sócio-diretor da Leblon Equities. Ele defende a criação de um Novo Mercado “turbinado”, onde o aprimoramento das regras não fique restrito à votação das empresas participantes, como ocorre atualmente. “É preciso que haja uma reforma que trate os grandes investidores e os pequenos de forma igualitária”, afirma.