Pouco antes falecer, meu avô paterno pediu que eu não deixasse minha avó passar necessidades financeiras. Na época minha avó tinha 70 anos e uma saúde muito frágil. Suas cinco filhas se dispuseram a abrir mão da meação a que teriam direito, de forma que os bens inventariados fossem passados para o nome dela.
Quando ficou viúva minha avó passou a receber dois salários mínimos do INSS, o que não era suficiente para seu sustento. Com a concordância das filhas vendemos os imóveis e aplicamos o valor resultante no mercado financeiro, preservando o apartamento em que ela morava. O montante parecia ser mais do que razoável para ela manter a vida simples e confortável a que ela estava acostumada. Lúcida, acompanhava com interesse sua situação financeira.
Em seu aniversário de 91 anos minha avó compartilhou comigo suas preocupações. Ela via que seu dinheiro estava chegando ao fim. Eu a disse que não se preocupasse, pois, suas filhas e eu poderíamos, se necessário, ajudar com seu sustento. Mas nem de longe isso a tranquilizou.
Ela não queria viver às custas das filhas e dos netos e pretendia fazer um enorme corte de gastos. Disse a ela que deveria continuar com seu padrão de vida e que, caso o dinheiro acabasse, eu compraria seu apartamento. Um pouco chocada ela perguntou onde ela iria morar. "Aqui mesmo," respondi. "Compro seu apartamento, colocamos o dinheiro no banco e quando a senhora vier a falecer o apartamento será meu".
Minha avó adorou a proposta. Uma tia, porém, ficou muito chateada com o que julgava ser uma proposta indecente.
A mulher mais velha da história
Fiz a proposta para minha avó depois de conhecer a história da senhora Jeanne Louise Calment. Sra. Calment ficou famosa por ter vivido 122 anos, tornando-se a pessoa mais velha já documentada da história.
Li sobre a sra. Calment em uma reportagem do New York Times, publicada no último dia do ano de 1995. O artigo não focava na longevidade da senhora Louise, mas na má sorte do senhor Andre-Francois Raffray, antigo advogado dela.
Em 1965, sr. Raffray e sra. Calment fizeram um acordo. Ele tinha 47 anos e ela, pouco mais de 90. Pelo combinado, o advogado pagaria uma quantia mensal fixa para a idosa até o final da vida dela. Em troca, o confortável apartamento da sra. Calment, no centro da cidade de Arles, sul da França, tornaria-se propriedade de Raffray após a morte da idosa.
Naquela época a expectativa média de vida na França era de pouco mais de 60 anos. Ninguém esperava que Sra. Calment vivesse muito tempo após os seus 90. Como o valor mensal acordado era baixo, o montante que o advogado teria de desembolsar não chegaria perto do valor real do imóvel. Isso motivou um pequeno escândalo na cidade de Vincent Van Gogh, para quem a Sra. Calment dizia ter vendido pincéis -- embora nunca tivesse comprado um quadro do artista. "Na vida, às vezes fazemos maus negócios”, afirmou ela ao completar 120 anos.
Se com as artes ela não teve sorte, com o apartamento a história foi diferente. Sr. Raffray morreu em 1995 aos 77 anos sem nunca ter tomado posse do imóvel. Quando finalmente a idosa morreu, em 4 de agosto de 1997, o apartamento passou para a viúva do advogado que tinha honrado os pagamentos mensais após a morte do marido. O valor pago foi duas vezes o valor real do imóvel.
Infelizmente minha avó não teve a sorte da sra. Calment. Ela faleceu dois anos após a minha proposta, aos 93 anos. O negócio da venda do apartamento não foi concretizado, pois felizmente o dinheiro dela não tinha acabado. No entanto, a simples expectativa do negócio, e a certeza de que não teria que abandonar sua casa nem depender das filhas, deu a ela tranquilidade financeira no ocaso da vida.
Imóvel de moradia, a última fronteira
85% das famílias chefiadas por pessoas com mais de 70 anos moram em imóveis próprios. Esse dado, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), é muito positivo. Mas, infelizmente, parte significativa destes idosos não se preparou adequadamente para a aposentadoria. Gastos com medicamentos, plano de saúde e exames aumentam nessa fase da vida, enquanto a renda tende a diminuir. Minha avó e a sra. Calment tiveram alguém próximo para ajudar a resolver a situação. Mas para muitos resta apenas vender a casa em que moram para continuar se sustentando.
Uma solução que está disponível em vários países desenvolvidos é a hipoteca reversa, ou reverse mortgage. No Estados Unidos, o acesso a esse tipo de hipoteca é permitido a pessoas com mais de 62 anos. A casa em questão deve ser a principal moradia do interessado e dívidas de financiamentos anteriores devem estar quitadas.
Com a hipoteca reversa, a pessoa pode trocar o valor da casa por uma renda mensal. É uma forma de complementar a aposentadoria. O idoso abre mão de deixar uma herança aos descendentes, mas evita depender dos filhos e netos ainda em vida. O banco recebe o retorno sobre o investimento quando a pessoa morre ou precisa abandonar a casa. Nesse caso, a casa é transferida ao banco, que vende o imóvel para recuperar seus investimentos.
Os jovens normalmente têm boa renda e pouco patrimônio. Assim os bancos emprestam, mediante uma hipoteca, dinheiro para que os jovens adquiram suas residências. Se tivessem que guardar todo o dinheiro antes de comprar a casa não teriam onde morar durante a fase de acumulação. Muitos idosos, ao contrário, têm um imóvel mas não têm renda suficiente. Então a hipoteca reversa utiliza os imóveis como forma de gerar renda sem obrigar os idosos a abandonarem suas casas.
Diferente dos financiamentos normais, na hipoteca reversa é como se o banco, ou fundo de investimentos, fosse comprando o imóvel lentamente, com pagamentos de uma renda mensal. Se a renda for paga por um prazo fixo, ela é direcionada aos herdeiros em caso de morte do morador e o imóvel passa a ser do banco na data estipulada. Já se o idoso optar por receber a renda enquanto viver, ela se extingue no momento em que a pessoa morre, ocasião em que o banco receberá o bem hipotecado. Enquanto vive no imóvel, o antigo proprietário é obrigado a pagar os impostos e o seguro residencial.
Uma simples solução
Mesmo parecendo complicado, o negócio é bastante simples para todos os envolvidos. O proprietário está vendendo a casa e comprando o direito de morar nela por um tempo ou por toda a vida. No caso de escolher morar até o fim da vida, o banco vai trabalhar com uma previsão de quanto tempo ele vai viver, com base nas tábuas atuariais.
Se viver menos, o banco ganha. Se viver mais, o banco perde. A diferença entre o preço de venda e o custo dos aluguéis futuros é direcionada para a compra de uma renda mensal vitalícia – o que já é comum nos planos PGBL ou VGBL no Brasil.
A hipoteca reversa constitui mecanismo natural de alavancar o consumo dos idosos, com impactos macro e microeconômicos significativos. Muitas pessoas em idade avançada detêm grande parte de sua riqueza financeira concentrada no imóvel em que moram, porém, ficam privados do consumo e muitas vezes passam a depender dos filhos caso queiram continuar a residir nele.
Os filhos são privados do direito da herança, porém, aliviam o ônus financeiro de ter que dar suporte aos pais na velhice. Mas para que esta modalidade de negócio entre em operação no país é essencial que seja definido o marco legal, com características regulatórias bem definidas que evitem disputas judiciais capazes de tornar a atividade não atrativa para o setor financeiro.
Um mercado de hipoteca reversa também poderia dar origem a fundos de investimentos especializados neste tipo de financiamento. Haveria ainda o surgimento de mercado de seguros específico para hipoteca reversa capaz de abarcar os riscos inerentes a esse produto.
Com a hipoteca reversa é possível transformar o ativo imobiliário em renda para os idosos e resolver um grave e silencioso problema social. Para que esse instrumento útil e moderno tenha sucesso no Brasil é fundamental que haja um esforço coordenado entre o poder público e os órgãos reguladores do mercado de capitais brasileiro.
Felizmente alguns legisladores estão estudando este assunto com objetivo de propor leis que balizem a atividade no Brasil.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br