Enfoque

REFLEXÕES SOBRE A IRRESPONSABILIDADE CORPORATIVA

Registro, com enorme satisfação, que alcancei a maioridade civil como participante dos seminários da ABRASCA sobre relatórios anuais: de 1997 a 2017, foram 2 seminários (1997 e 1998) e 19 edições do Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual (de 1999 a 2017). Ou seja, exatamente 21 anos, sem uma única falta!

Há um segundo evento que, com o mesmo júbilo, quero pôr em destaque: em 27/11/2017 o IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa comemora seu 22º ano de fundação. Idealizado por um grupo de cerca de 20 pessoas convidadas e comandadas pelo primeiro presidente da entidade, Bengt Hallquist – um sueco-brasileiro com experiência de mais de 50 conselhos de administração no Brasil e no mundo --, o IBGC orientou-se, desde a fundação, pelo propósito de tornar-se referência em governança corporativa. Hoje, ao ensejo dos 22 anos de vida, mostra ter convertido em realidade a missão que se propôs; conta, no histórico de suas mais importantes iniciativas, a institucionalização das profissões de conselheiro de administração e conselheiro fiscal, que se destacam hoje pelo selo de “conselheiro certificado pelo IBGC”.

Não será exagero, portanto, associar o início da governança corporativa no Brasil ao aparecimento do IBGC, que foi seguido de iniciativas no mesmo campo adotadas pela Abrasca, Bovespa, CVM, por grandes empresas e por escolas de administração.

A governança corporativa tem uma característica bem definida: ela pode ser vista como o estágio seguinte à gestão empresarial, conceito que gosto de reduzir a uma equação bem simples: governança corporativa = gestão empresarial no estado da arte + princípios éticos. Ou seja, a governança não substitui, não revoga, não desconsidera o enorme esforço desenvolvido, durante os anos 1900, por autores consagrados, empresas pioneiras e pelas melhores escolas de administração, para que as técnicas de gerenciamento administrativo e operacional das empresas chegassem ao seu atual estágio de amadurecimento. Ao contrário, a governança corporativa parte dos sólidos alicerces cimentados pela gestão empresarial para promover a ciência da administração ao nível da ética e passar a encarar as empresas sob a ótica mais ampla de seu relacionamento com a sociedade. Em resumo, a existência de uma boa gestão empresarial é condição indispensável para que se alcance uma boa governança corporativa.

As boas práticas de governança corporativa do IBGC estão condensadas em seu Código das Melhores Práticas, já na quinta edição, e derivam dos 4 princípios éticos que estão presentes e inalterados desde a primeira edição: transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Amplamente comentados e largamente disseminados, esses princípios ainda oferecem margem para alguns comentários mais específicos, como os que me atrevo a fazer em seguida.

Transparência
Defendo que um dos conceitos centrais da governança corporativa é o de “stakeholders”, entendido como “tomadores de risco” e não como “partes interessadas” ou “partes envolvidas” – que pecam pela passividade. “Partes interessadas” pode referir-se a sócios de uma empresa ou aos torcedores de um time de futebol. Já “stakeholders” envolve a ideia de que os relacionamentos habituais de clientes, fornecedores, credores, empregados e governos com a empresa valem por uma assunção de risco, ou seja, se a empresa vai bem, os stakeholders vão bem mas se a empresa vai mal, eles também vão sofrer. Veja o exemplo dos governos, em qualquer nível: ao conceder a licença para funcionar a qualquer empresa, a expectativa é de recebimento de receitas para o orçamento público e de uma contribuição para o desenvolvimento econômico, por meio de criação de empregos, abertura de mercados no exterior, apoio à pesquisa etc. Se a empresa se torna deficitária, a receita via impostos desaparece, haverá dispensa de pessoal que vai bater às portas do seguro-desemprego, ou seja, exatamente o contrário do esperado pelo governo. Isso nos autoriza a ver a empresa como uma grande parceria e, nessa perspectiva, a função mais importante da transparência é oferecer aos stakeholders as informações de que eles necessitam para avaliar o risco que estão assumindo. Por outro lado, a ausência de franqueza nas informações divulgadas, como os conhecidos relatórios cor-de-rosa de capa a capa, podem despertar no leitor mais esclarecido dois tipos (ambos indesejáveis) de dúvida: i) estarão escondendo alguma coisa? ii) será que desconhecem o que de errado está acontecendo na empresa?

Equidade
Convém esclarecer desde logo que estamos falando de igualdade de direitos, não de pessoas. O primeiro aspecto a considerar é que, nas empresas, esse princípio impõe o respeito aos direitos dos sócios minoritários e vale como uma barreira a que os detentores do controle tomem decisões lesivas aos não controladores. Na questão, hoje extremamente valorizada, do capital humano, o princípio se corporifica no uso da meritocracia quando se cuida de admissão, promoção ou remuneração. A admissão exclusivamente por concurso público é um exemplo convincente dessa boa prática chamada equidade. Ofensas gravíssimas a esse princípio são representadas por quaisquer formas de discriminação como, por exemplo:

Mulheres
Pesquisa, divulgada pela revista Exame, feita pela Korn Ferry, mostra que só 5% das empresas pesquisadas têm uma mulher na presidência e que 45% não têm nenhuma na diretoria. Em alguns países europeus, a presença de mulheres nos conselhos de administração se obrigatória por lei. Há algumas formas de discriminação mais sutis como, por exemplo, o caso de meus 8 netos (7 homens e 1 mulher); mesmo que fossem 7 mulheres e 1 homem, eu só poderia me referir ao conjunto como “meus netos” porque a concordância é imposta pelo sexo forte...

Negros
Segundo pesquisa divulgada pela revista Veja, de 22/10, no Brasil os negros: são mais pobres, têm padrão de vida inferior, são menos instruídos, morrem mais cedo, são menos representativos, vão mais para a cadeia e são mais vítimas de violência. Basta lembrar-nos de que, com o fim da escravidão, os negros ficaram literalmente “desempregados”, porque os fazendeiros, agora em face da necessidade de pagar, preferiam contratar imigrantes (italianos, japoneses etc.). Em consequência do êxodo dos ex-escravos em direção às cidades, onde não eram bem-vindos, foi criada uma lei que punia vadiagem (não ter emprego) com cadeia. Chamou-se a essa iniciativa “branqueamento” das cidades e ela explica por que, até hoje, os negros são clara maioria nas populações presidiárias.

Prestação de contas
Para entendê-la bem devemos recorrer ao conceito de “mandato”: quem é eleito ou escolhido para determinada tarefa tem o dever de prestar contas a quem o escolheu – e este tem o direito de exigir prestação de contas de quem ajudou a eleger. Se passarmos a exercer, como eleitores, esse direito com relação aos políticos que elegemos, seguramente estaremos promovendo uma grande melhoria na administração pública. Basta acessar o site do Senado, ou da Câmara de Deputados, ou qualquer outra entidade legislativa para encontrar o nome e e-mail de todos eles. Como o maior temor de todos os políticos é perder votos, não tenhamos dúvidas de que as interpelações serão respondidas. Fora do campo da política, se restringirmos as nossas doações às organizações filantrópicas ou mesmo religiosas que prestam contas aos doadores dos valores recebidos, estaremos contribuindo para depurar um sistema em que o apelo às emoções ainda fala mais alto. Não sou indiferente a cenas de sofrimento, mas quero ver também o boletim financeiro da entidade.

Responsabilidade corporativa
Chegamos aqui ao precioso tema do papel das empresas na sociedade moderna. Sabemos que são elas as entidades com maior poder de influência nos rumos de uma sociedade agora em mais acelerado processo de mutação. Afinal de contas, são as empresas que geram o maior número de empregos, que oferecem a maior parcela no sustento dos órgãos governamentais, que impulsionam o progresso da ciência por meio de generosas verbas para a pesquisa, que complementam ou substituem os programas governamentais de educação e saúde sabendo que um melhor ambiente de trabalho significa maior produtividade. Ademais, não devemos esquecer que a empresa moderna é o resultado do trabalho de vários capitais, não só do financeiro, como era a crença dominante décadas atrás: levamos em conta, hoje, os capitais humano, social, de relacionamento, intelectual, manufaturado e – por que não? – o político. Se não cabe falar mais na hegemonia do capital financeiro, também não faz mais sentido imaginar que as empresas tenham “donos”. Nas redes de varejo, por exemplo, o capital de relacionamento é o mais importante, porque os outros não pesam tanto quanto a clientela fiel; ou, no caso de hospitais ou escritórios profissionais, será o capital humano o que vai predominar.

Se estamos falando de responsabilidade corporativa, devemos também falar de irresponsabilidade corporativa, que é o tema central deste artigo. Como se caracteriza esse tipo de irresponsabilidade? De múltiplas maneiras, dentre as quais:

1. o mau uso do poder de influência, especialmente o político. Nos Estados Unidos existe uma tal de American Rifle Association, com mais de 10 milhões de participantes e com recursos anuais da ordem de US$ 300 milhões. Seu objetivo – muito bem sucedido até aqui – é manter o povo convencido de que deve exercer seu direito de possuir armas que garantam sua defesa pessoal e, com isso, manter a indústria de armas entre as mais rentáveis do país. Se, como já aconteceu várias vez, algum “serial killer” entra em uma escola e mata professores e alunos, a ARA virá a público logo em seguida para proclamar que isto aconteceu porque as vítimas estavam desarmadas. Resultado: aumentam as vendas! Em um dos casos mais recentes, a polícia encontrou mais de 40 armas de grande poder de fogo na casa do criminoso;

2. a oferta de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, com destaque para o campo da alimentação; a própria matriz energética mundial, ainda dominada por óleo e carvão, é um exemplo eloquente desse tipo de irresponsabilidade, mormente numa época em que as fontes alternativas já se tornaram mais vantajosas até em termos de custos;

3. a chamada “obsolescência programada”, que reduz intencionalmente a vida útil de vários produtos industriais, dos quais os telefones celulares são um exemplo convincente; compare isso com um produto de quase 40 anos de idade mas de uso bem difundido até hoje: a calculadora HP 12 C;

4. estímulo ao desperdício para incrementar consumo: o que é um “alto padrão de vida” se não um estilo de vida marcado por excessos de todos os lados? Trabalhamos como doidos para ganhar mais e para gastar sempre mais, a partir da estranha crença de que para ser bom tem que ser caro. E quanto mais caro, melhor! Lembro-me de uma das capas recentes de uma revista de grande circulação, em que uma figura curiosa de mulher proclamava possuir em seu closet nada menos do que 365 bolsas de alto luxo. Li também uma estatística relativa aos Estados Unidos mostrando que cerca de US$ 750 bilhões são desperdiçados no sistema de saúde por receitas médicas não convertidas em compras, isto é, simplesmente jogadas no lixo;

5. agir como fator de concentração da renda. A mesma revista que citei há pouco divulgou uma pesquisa envolvendo 5 bilhões de adultos detentores de uma fortuna de US$ 280 trilhões . Vejam o resultado: 85,7% desse tesouro pertencem a 8,7% dessas pessoas; 11,6% pertencem a 21,9% dos pesquisados e, por fim, somente 2,7% desse dinheirão vão para os restantes 3,5 bilhões (69,6%); e não é difícil explicar de que maneira empresas estão contribuindo para esse desequilíbrio: basta lembrar um caso, Gini Rometty, CEO da IBM, que tem um ganho médio de US$ 33 milhões por ano, para entender o resto.

6. cumplicidade com o poder público para criar “vantagens competitivas”: este é um assunto que, no Brasil de hoje, dispensa maiores comentários: está aí a Lava-Jato que não me deixa mentir...

7. ignorar as grandes mudanças por que está passando nosso mundo na era do conhecimento e da informação. Vamos cuidar desse aspecto com especial atenção.

As grandes mudanças em curso
1. as novas gerações têm ideias próprias que podem, pacificamente, provocar a diluição das chamadas “elites” – o que não se conseguiu até hoje, nem no campo político nem no militar, com o emprego da força ou com mudanças de regime político;

2. os riscos embutidos nas redes sociais, dos quais o recente suicídio de um reitor – provocado por ofensa à sua reputação pessoal – é um exemplo gritante;

3. À medida que, ao longo da história, fomes, pestes e guerras vão desaparecendo e a medicina consegue livrar-nos de outras formas mais recentes de epidemias, de moléstias contagiosas, entre outras, a vida se prolonga e as pessoas alteram profundamente seus hábitos de consumo, especialmente no que diz respeito à alimentação, fugindo da “faixa de Gaza”, isto é: gorduras, açúcar, sal e álcool” (bons vinhos não incluídos...); será razoável imaginar que bilhões de pessoas continuarão, por prazo indeterminado, confundindo preços com qualidade?

4. O desenvolvimento dos países vai depender cada vez mais do progresso das cidades que, como unidades menores, são mais facilmente administradas por sistemas de maior participação das respectivas populações; já existem, no mundo, muitos exemplos de cidades com qualidade de vida bastante superior à média do país; não esquecer, porém, que nessa visão, qualidade de vida é medida por “alegria de viver” e não pelo nível de riqueza;

5. A situação de liderança global, existente desde o final da segunda grande guerra (1945) e exercida pelos Estados Unidos, está dando lugar a um compartilhamento de poder político, econômico e até militar. Em 1997, a China respondia por 7% do PIB mundial; em 2017 esse número subiu para 18%; no mesmo período, a participação dos Estados Unidos caiu de 20 para 15%. Comparando as taxas atuais de crescimento anual desses dois países, temos 6,6% para o primeiro e menos da metade disso para o segundo, o que nos dá a certeza de que a situação de hegemonia atual não se perpetuará;

6. No atual quadro de comunicação global, não é mais possível manter parcelas enormes da população totalmente alheias ao que se passa no resto no mundo. Com isso, o fator “tamanho da população” cresce de importância, o que é muito bom para o Brasil com seus 205 milhões de habitantes. A consequência previsível é que a maioria (em números) vai ser a maioria (em poder), pela primeira vez na história, com todas as repercussões que isto possa representar, especialmente para essa figura desgastada da “classe dominante”.

7. Como consequência, a escala de prioridades nos investimentos públicos deve mudar radicalmente: virão em primeiríssimo lugar as necessidades básicas da população, o que aliás, já faz parte de várias Constituições, a começar pela nossa (v. Art. 227, que usa a expressão insofismável de “absoluta prioridade” para definir as responsabilidades da família, da sociedade e do Estado); não é concebível que ainda se fale em fome e miséria absoluta de milhões de pessoas;

8. Finalmente, graças aos melhores níveis de educação e de comunicação, o BEM vira notícia e um “novo normal” se instala, proscrevendo o degradante noticiário de crimes e corrupção justificado pelo que “vende mais”.

Para concluir
Os principais problemas de nossa época estão bem diagnosticados e há abundância de recursos para resolvê-los: só nas taxas de desperdício e nos paraísos fiscais há trilhões de dólares que se tornarão cada dia mais disponíveis à medida que o Bem vira notícia e as novas gerações adotam novas posturas quanto à vida e à riqueza (sei do que falo, porque minha família está na quinta geração..).

As empresas, mais uma vez, poderão contribuir muito poderosamente:

a) valorizando cada um dos capitais nelas atuantes e não apenas o financeiro;

b) acompanhando de perto e preparando-se para cada uma das megatendências já identificadas, entre as quais convém destacar o compartilhamento de objetos de uso e a simplificação do estilo de vida – sinônimos de maior sabedoria e menor desperdício;

c) defendendo seus legítimos interesses econômicos mas, ao definir prioridades, submetendo-os à ética do bem comum;

d) proclamando ao mundo empresarial e também ao político que, com o fim do sigilo, da cumplicidade confiável, da certeza de impunidade e com as admiráveis melhorias nos sistemas de controles, privados ou coletivos, a corrupção se tornou um jogo muitíssimo perigoso!!

NOTA: Palestra proferida por Lélio Lauretti, em 23/11/2017, no evento de entrega do 19º Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual, no auditório da B3 em São Paulo. 

Lélio Lauretti
é consultor e expert em Relatórios Anuais - foi o criador e o 1º presidente da Comissão Julgadora
do Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual.
lauretti@osite.com.br


Continua...