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As oito faces da Transformação Digital
Muitos empresários, executivos ou consultores entendem a Transformação Digital como empregar computadores para reduzir custos dos métodos tradicionais de produzir bens ou prestar serviços. Na verdade, ela abrange toda a economia, na medida em que a redução de custos computacionais, o compartilhamento e o amplo acesso às tecnologias digitais aceleraram todo um processo de transformação de organizações e mercados. Assim, se antes era preciso concentrar recursos para ter eficiência de coordenação, hoje, em muitos casos, isso é resolvido por um “App”. O resultado é uma drástica mudança na forma como se projeta, produz, e distribui um produto ou serviço. Organizações inteiras estão sendo completamente reescritas para continuarem sendo relevantes e competitivas. O digital nos negócios agora não é mais para otimização, mas para transformação.
Em entrevista exclusiva à Revista RI, Eduardo Peixoto, chief design officer, do CESAR, centro de inovação sediado no Porto Digital em Recife (PE) e que conta com regionais em Sorocaba, Curitiba e Manaus, explica como a Transformação Digital deve ser vista.
Ao todo, são oito perspectivas que devem estar no radar das empresas: Pessoas e Cultura, Consumidores, Concorrência, Inovação, Processos, Modelos de Negócio, Dados e Tecnologias. O CESAR acaba de lançar um índice para avaliar a preparação de empresas brasileiras dos mais diversos setores econômicos para a era digital. A seguir, acompanhe a entrevista com Eduardo Peixoto, expert em Transformação Digital.
RI: Como nós podemos definir a Transformação Digital?
Eduardo Peixoto: Na verdade, Transformação Digital é uma mudança na forma de competição das empresas no mercado. É o amadurecimento de tecnologias que facilitaram as transações e as comunicações, habilitando as empresas a competirem de uma forma mais eficiente. A Transformação Digital, na verdade, começa lá atrás, com a Internet, ou mesmo antes, quando nos referimos ao surgimento do circuito integrado. Essas tecnologias amadureceram no sentido de se tornarem mais confiáveis - seu custo reduziu bastante, e ao mesmo tempo elas se tornaram mais fáceis e conhecidas, com aplicações mais importantes na área de negócios. Estamos falando de digitalização, de poder de computação e de armazenamento mudando as coisas. De 1995 para cá, com o advento da Internet é que a tecnologia começa a entrar nos negócios de uma forma muito mais incisiva. Então, o modo como as empresas se relacionam com os colaboradores e com os consumidores mudou completamente. A Internet possibilitou trazer o consumidor para o centro da atenção das empresas.
RI: Qual a principal mudança?
Peixoto: Coloca-se a individualidade do consumidor à frente. As empresas passam a customizar aquilo que produzem para seus clientes. De uma forma geral, quando a gente fala de Transformação Digital, não podemos olhar apenas para um aspecto. As empresas maduras devem olhar para a Transformação Digital em pelo menos oito níveis: Pessoas e Cultura, Consumidores, Concorrência, Inovação, Processos, Modelos de Negócio, Dados e Tecnologias.
RI: Por que “Cultura e Pessoas” à frente?
Peixoto: Porque, por conta da tecnologia, as pessoas olham as coisas e pensam de forma diferente. Os interesses são diversos e isso acontece não só com alguns colaboradores de uma empresa, mas também com os consumidores. Olhe, por exemplo, para um banco que não é digital, muitos dos consumidores desse banco não estão preparados para uma Transformação Digital, mas, ao mesmo tempo, se ele não a fizer, vai perder a chance de atrair novos consumidores. Os colaboradores desse banco devem estar atualizados com as tecnologias de hoje.
RI: Fala-se que o consumidor se tornou o centro econômico...
Peixoto: Depois de ver a questão cultural, é preciso se voltar para o consumidor. Enquanto os consumidores mais antigos precisam de uma determinada atenção, os mais novos logo exigem personalização e customização. Eles exigem uma experiência que só o digital entrega, porque nasceram quando o digital já era presente. Uma pessoa hoje com 24 anos, conviveu com o iPod quando tinha apenas dez. Quando eu era estagiário não existia nem micro ainda. Isso provoca uma diferença gigante de como as empresas se relacionam com os consumidores.
RI: Como tudo isso muda o cenário de competição entre as empresas?
Peixoto: As tecnologias também permitem empresas de diferentes setores competirem no mesmo segmento em que você está. Hoje é muito difícil a empresa conseguir traçar as fronteiras de um determinado negócio. Elas estão diretamente competindo com você, por conta das tecnologias digitais. A tecnologia é habilitadora do processo inteiro. Ela permite que as empresas operem de uma forma diferente, como a Netflix, que inicialmente distribuiu DVD pelo correio, para depois criar um catálogo digital e distribuir vídeos via Internet. Ela começou competindo com as locadoras; hoje, mais do que isso, está competindo com os grandes estúdios, pois também está produzindo conteúdo. A internet tornou esse mercado acessível e a distribuição de filmes muito mais cômoda. A Netflix também se tornou hoje o maior competidor da TV a cabo: conseguiu até colocar um botão no controle das TVs. Não há nenhum botão de TV a cabo, não é? Então a competição é diferente e não respeita mais as fronteiras tradicionais.
RI: E aí vem a inovação...
Peixoto: O próximo eixo é a inovação, que muda completamente. Empresas competiam de dentro para fora: elas desenhavam, produziam e jogavam no mercado. Quem vendia era o marketing, mas os engenheiros desenhavam isso sem conversar com ninguém. As empresas buscavam apenas o ganho de escala e lançavam os produtos no mercado. A Internet gerou a facilidade de capturar as necessidades do mercado, pois a comunicação agora vem em duas frentes. Em 2004, com a Internet, começam a existir os modelos de inovação co-criados, onde se começa a envolver o usuário na criação. As empresas passaram a olhar para aquilo que o cliente deseja e se voltaram para o modelo contínuo de inovação. Os produtos hoje são lançados de forma inacabada e isso é aceitável. O piloto automático do carro, por exemplo, está aprendendo enquanto o usuário dirige. O sistema de direção do carro está sendo recriado o tempo inteiro com o uso de informações. O Google começou no final da década de 90 com um modelo que era chamado de permanente Beta. O Gmail e todos os aplicativos foram lançados de forma inacabada justamente por conta desse modelo voltado para o usuário. Assim, o produto pode ser melhorado sempre. Esta é uma nova forma de inovar que passa por processos contínuos que incluem as tecnologias e as plataformas digitais. Envolve não só o relacionamento com os consumidores, mas com o público interno e com os fornecedores.
RI: Como os modelos de negócios são impactados pelos dados?
Peixoto: Uma forma mais eficiente da gestão é impactada por essa visão nova em relação aos processos. Aí vem a parte dos dados. Existem empresas que têm dados, mas fazem pouco uso deles ou não conseguem capturar o seu valor. Nem sabe que tipo de dados têm. A revista The Economist trouxe recentemente uma matéria que define os dados como o novo petróleo. Eles existem em abundância e são gerados o tempo inteiro, porém, poucas organizações sabem gerar ou capturar valor a partir dos dados que possuem. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) traz uma certa segurança. A gente vai ser “limitado”, no bom sentido, para navegar neste cenário. Isso é necessário.
RI: Como a LGPD vai impactar o processo de Transformação Digital das empresas?
Peixoto: Não havia nenhuma regulamentação sobre o uso de dados. Por exemplo, um iPhone ou um Android está cheio de sensores. Então, o dono da plataforma sabe quanto tempo você fica olhando para este telefone. Talvez isso não seja muito relevante, mas ele sabe também quantos passos você vai dar por dia, a que horas vai dormir, se você está dirigindo ou não. Para quem tem um cartão de crédito dentro do celular, ele sabe também o que você compra e suas preferências. O que ele pode fazer com todos esses dados? Pode criar novos serviços para trazer mais receita, de forma a ter vantagens competitivas. Nosso rastro digital é gigante, e não havia limites para as empresas tirarem proveito dessas pegadas. Até então, a empresa podia fazer o que ela bem quisesse após o aceite na política de privacidade - que ninguém nunca lê porque é gigante ou quando lê, não entende. O usuário simplesmente concorda. Agora com a LGPD, não será mais simples assim. É preciso seguir a regulamentação para evitar os problemas de violação dessa lei. As empresas que têm dados, mesmo não fazendo nada com eles, correm o risco de serem hackeadas e as informações vazarem. A outra questão é usar esses dados de forma indevida. Por exemplo, ao saber que horas você vai dormir, se você vai a uma academia de ginástica, ou não, e quantos passos dá por dia, é possível ter uma ideia do perfil de sua saúde. Aí eu posso montar um plano de saúde para você a partir dessas informações que eu tenho. Mas será que eu tenho autorização para fazer isso? Até então não havia nenhum tipo de legislação neste sentido. Isso estava acertado somente entre a empresa e o consumidor. É aí que vem uma regulação que coloca limites. Empresas que entendem a importância dos dados e os utilizam tendem a ter um cuidado maior com os dados que elas capturam. Antes elas capturavam tudo o que era possível e um pouco mais. A legislação vai acabar com a corrida pelo ouro nos moldes do velho oeste. As empresas vão ter mais cuidado com os dados, com seu uso e com a forma como elas os capturam. A informação não é dela, é do usuário.
RI: Como fazer a Transformação Digital?
Peixoto: A primeira coisa que fazemos em qualquer processo de transformação é um diagnóstico em cima dos oito eixos que citei. Ninguém começa a fazer um regime sem subir na balança primeiro para saber quantos quilos precisa perder, porque as chances de dar certo são menores. Este diagnóstico conta com 42 perguntas. Cada um dos eixos é pontuado e ao final o respondente recebe um relatório da percepção do colaborador com relação à empresa avaliada. É importante ressaltar que para ter o resultado de uma empresa, é preciso ouvir mais de uma pessoa: dependendo do tamanho da organização, a pesquisa pode requerer de 20 a 50 respostas para mostrar a situação da empresa no momento. A partir deste diagnóstico, são desenhadas as ações de Transformação Digital que podem acontecer em cima dos oito eixos - ou elas podem se voltar mais para determinados aspectos onde a organização está mais vulnerável, seja no segmento de consumidores, dados ou modelos de negócios, e certamente vai passar por ações de cultura e pessoas. Esta é a maior barreira, independente do setor que a gente está olhando. Dos levantamentos que estamos fazendo, é possível perceber que nenhuma transformação acontece sem que trabalhemos cultura e pessoas.
RI: Qual o motivo de o eixo “Cultura e Pessoas” ser o principal desafio?
Peixoto: Nós estamos olhando para o cenário de empresas maduras, com 20 anos ou mais. Boa parte das pessoas que estão nestas empresas é pré-Internet comercial: cerca de 75% do capital humano é formado por pessoas com mais de 25 anos de idade. São poucos nativos digitais. Então, primeiro há um choque de cultura. As pessoas se acostumaram a fazer as coisas de uma determinada maneira e têm uma experiência de consumo diferente da geração que está entrando agora no mercado de trabalho. Já temos um conflito geracional aí, o que dificulta o processo de transformação. Isso é normal ou natural. Soma-se a isso o fato de que a maioria das pessoas que está ingressando no mercado de trabalho agora, é nascida digital e conhece as tecnologias que habilitam a Transformação Digital não quer ir para uma empresa tradicional. Se pegarmos um recém-formado que conhece de Inteligência Artificial, IoT, Big Data, e perguntarmos: quer trabalhar num banco digital ou tradicional, recebendo o mesmo salário? É fácil saber a resposta. Isso dificulta ainda mais o processo de transformação da empresa madura.
RI: Há a questão operacional também...
Peixoto: Sim. Temos por exemplo a indústria automobilística, que é centenária. Grande parte das pessoas que atua nesta indústria não é de Tecnologia da Informação: é formada por engenheiros mecânicos ou de produção. Não são pessoas que entendem de segurança da informação, de análise de dados, de IoT. As pessoas que entendem disso não estão ligadas diretamente ao produto, mas sim à área de TI, que processa o backoffice. Isso se torna um problema. Essas empresas não atraem profissionais de TI que conhecem estas tecnologias naturalmente. Para quebrar a barreira da transformação, é preciso atrair e reter este público novo. São eles que serão os consumidores, entendem da tecnologia e vão proporcionar a transformação. É um processo difícil. Por isso que o principal é trabalhar Cultura e Pessoas dentro da empresa. Esta é a chave de um processo bem-sucedido de Transformação Digital.
RI: Como está o grau de Transformação Digital das empresas brasileiras com relação ao resto do mundo?
Peixoto: Não é possível precisar desta forma. É preciso analisar empresa por empresa e setor por setor. Lançamos o Índice de Transformação Digital há pouco mais de três meses e temos capturado informações como um todo. Primeiramente, focamos no setor automotivo. Neste segmento, a resposta que recebemos é que no Brasil, cerca de 70% das organizações acreditam que estão buscando ser uma empresa transformada digitalmente. Entretanto, o caminho ainda está muito longe disso. Há incorporações tecnológicas importantes no produto, no entanto estas empresas não mudaram a forma como inovam, como trabalham com seus consumidores, como competem entre elas e com outros setores.
RI: Dá para afirmar que os empresários brasileiros têm consciência da importância de fazer a Transformação Digital?
Peixoto: Também acredito que esta avaliação deve ser feita setor a setor. Eu diria que os segmentos mais tecnologicamente avançados sabem bem desta necessidade, mas ainda não entendem a profundidade da transformação que está acontecendo de uma forma geral. Há setores que foram mais impactados e que estão correndo atrás do prejuízo, como o varejo, que está avançando muito rapidamente. Já o setor financeiro está em evolução total. Um setor que acho que terá uma movimentação muito grande de Transformação Digital é o de seguros. Estes segmentos talvez estejam mais atentos para o que está acontecendo. Ainda precisamos de dados mais detalhados de todos os setores.
RI: Qual o papel do profissional de RI neste contexto?
Peixoto: O RI não é nada menos do que um porta-voz do que está acontecendo dentro da empresa. Se a companhia está investindo em Transformação Digital, acredito que ele deveria reforçar a comunicação nesta direção porque os investidores vão se sentir mais confortáveis ao verem a empresa colocar dinheiro agora para capturar no futuro. Como investidor, eu prefiro aplicar em uma empresa que está dando total transparência a seu processo de Transformação Digital do que em outra que não está se mexendo.
RI: Como a Transformação Digital afeta o mercado de capitais?
Peixoto: Não é possível dizer o quanto os investidores já estão considerando o processo de Transformação Digital no valuation das empresas. Mas eu tenho certeza de que, quando eles valorizam um banco digital com 5 milhões de clientes em mais de R$ 1 bilhão, têm uma expectativa de que este banco terá um ganho rápido e entendem que ele é muito mais competitivo do que aqueles que já estão instalados. É provável que as empresas tradicionais, assim que comecem a trabalhar a questão digital e dar visibilidade ao processo, também apresentem valorização.
RI: A questão é que a Transformação Digital é feita de erros e acertos...
Peixoto: Tudo é questão de comunicar o plano. Agora parte disso é estratégico. Então, depende de cada empresa o quanto ela vai abrir do seu planejamento de Transformação Digital. No fundo, Transformação Digital é competição. Uma empresa não vai colocar dinheiro em um processo de transformação se não estiver vendo a possibilidade de ganhar mercado, de aumentar sua competitividade ou até mesmo, o mais importante, de se manter no mercado atual - que está em transformação. Acredito que os investidores verão com bons olhos a divulgação de um plano de Transformação Digital. Agora o quanto a empresa deve abrir ou comunicar, é uma decisão individual. Até porque se a empresa abre seu plano completamente, o efeito surpresa dele é reduzido.
Oito eixos da transformação digital
1) Pessoas & Cultura: é a perspectiva do ser humano em relação às mudanças na era digital, tanto no papel de líder-autor das transformações como no de instrumento nas novas configurações das sociedades e dos negócios, com foco em práticas de inovação e empreendedorismo transformador dentro das organizações;
2) Consumidores: a vida em rede e o novo ecossistema de comunicação mudaram a forma de nos relacionarmos. A jornada do consumidor, o marketing digital, branding e e-branding são essenciais para entender, capturar e satisfazer o novo consumidor digital;
3) Concorrência: na era digital, as fronteiras da competição já não são mais as mesmas. Mesmo as empresas mais diligentes e preparadas podem sofrer com ataques de competidores mais ágeis, inesperados e assimétricos;
4) Inovação: a inovação tem outros métodos e processos. Saímos de um mundo onde as empresas desenhavam e lançavam sozinhas seus produtos no mercado para um mundo de cocriação e de contínua experimentação. A regra é aprender rápido! E inovar continuamente;
5) Processos: procurar entender como as empresas se envolvem digitalmente com fornecedores e estão propensas a usar software para gerenciar suas operações internas, otimizar o uso de ativos físicos e os relacionamentos com clientes e fornecedores;
6) Modelos de Negócios: as tecnologias digitais são ferramentas que permitem acessar novos mercados e encontrar novas maneiras de crescer. Modelos de negócios assimétricos são os principais agentes de disrupção de negócios estabelecidos. Entender e modelar novos modelos de negócios a partir da jornada da Transformação Digital é essencial para a sobrevivência das organizações;
7) Dados: são de extrema relevância para a estratégia e tomada de decisões das organizações atuais. Mas poucas sabem como extrair valor deles e, ao mesmo tempo, assegurar os direitos intelectuais em ativos digitais, a privacidade e a segurança dos consumidores;
8) Tecnologias: por fim, para ter sucesso na era digital, as organizações precisam ir além de conhecer as tecnologias digitais (como IoT, Big Data e Inteligência Artificial) e se empoderar delas, pois constituem a força da competição.