O efeito “nitroglicerina” do caso Ghosn nos processos e modelos de Governança Corporativa japonês e latino europeu
Um dos casos em andamento mais emblemáticos no mundo corporativo é o protagonizado pelo executivo franco-brasileiro-libanês Carlos Ghosn. Com repercussão internacional pela complexidade dos conflitos de agência envolvidos, além de colocar os modelos atuais de governança em cheque mais especificamente o japonês e o latino europeu, eleva o conflito corporativo entre as montadoras Nissan, Mitsubishi e Renault às esferas da Governança dos Estados Nação: Japão, França e Líbano até agora.
Carlos Ghosn nasceu em Guajará-mirim (Rondônia) em 1954. Seis anos depois, em 1960, mudou-se para Beirute (Líbano) e na década de 1970 foi para França onde se formou em engenharia pelas universidades École Polytechnique, em 1974, e pela École de Mines, em 1978. Iniciou sua carreira na multinacional Michelin, fabricante de pneus tornando-se diretor de operações da América do Sul em 1985 com 30 anos voltando a residir no Brasil na cidade do Rio de Janeiro. Em 1989, mudou se para Greenville nos Estados Unidos tornando-se diretor executivo da multinacional naquele país. Em 1996 aceitou a vice presidência da companhia automobilística Renault que vivia uma crise financeira . Com as mudanças implementadas no grupo, Ghosn começou a ser conhecido no meio, além de ganhar o apelido de “Le Cost Killer” (o matador de custos).
Ghosn foi o principal responsável por costurar o acordo entre a Renault e a Nissan, em 1999. Ele também levou o mérito por recuperar a empresa japonesa, que estava à beira da falência e com uma dívida bilionária. No ano de 2005 se tornou o CEO da Aliança Renault-Nissan. Em sua gestão o grupo adquiriu parte da japonesa Mitsubishi e da russa AvtoVAZ. Um dos principais méritos como executivo foi ter investido em carros elétricos, considerado por ele mesmo o futuro do setor automobilístico. Em 2006, a revista Forbes o definiu como “o trabalhador mais assíduo na altamente competitiva indústria automobilística”.
Sua passagem pelas empresas japonesas foi marcada por estrondoso sucesso, e era venerado como o herói que salvou a montadora Nissan da bancarrota. Apesar do estilo “cost killer” que na Nissan significou a demissão de 21 mil trabalhadores, redução drástica de fornecedores e fechamento de fábricas não lucrativas, Ghosn alcançou em pouco tempo os resultados prometidos e conquistou de forma única admiradores e fama que o tornaram personagem de mangá (histórias em quadrinhos japonesas), tema de diversos livros e inspirou a criação de um "bentô", como são chamadas as marmitas no Japão.
A história do executivo nascido em Rondônia, de sangue libanês por parte de pai e nigeriano pelo lado da mãe, inspirou o desenhista Takanobu Toda e a roteirista Yoko Togashi a criarem uma série para a revista de mangá Big Comic Superior. Ghosn foi um dos raros estrangeiros a assumir o topo de uma corporação no Japão - além de sua competência tinha como um de seus trunfos no ambiente corporativo ser poliglota, fluente em português, espanhol, italiano, francês e inglês, além de ter bom conhecimento do japonês.
Em novembro de 2018, sob alegações de má conduta financeira: crimes financeiros e enriquecimento ilícito, Ghosn foi preso pela justiça japonesa. Ele passou 100 dias em prisão preventiva e foi solto após pagar uma fiança milionária, uma das maiores já aplicadas no Japão. Pouco tempo depois, foi preso novamente pagando outra fiança e em abril de 2019, passou a cumprir prisão domiciliar sob rígidas condições - era monitorado constantemente pela polícia, teve seus passaportes apreendidos e só podia conversar com sua esposa, Carole Ghosn, com autorização da Justiça japonesa.
Em 29 de dezembro de 2019, em um roteiro de deixar qualquer produtor de Hollywood de boca aberta protagonizou uma fuga quase impossível de Tóquio para Beirute no Líbano. Nesta cidade concedeu no último dia 8 de janeiro, uma entrevista coletiva se posicionando como inocente, explicando o porquê fugiu e recheou de detalhes a forma como estava sendo tratado pela justiça japonesa.
Mostrando uma postura firme, transparente e competente respondeu as perguntas dos jornalistas internacionais no idioma em que eram elaboradas ou seja respondeu em 4 idiomas: inglês, francês, árabe e português passando o recado que queria: “Não fugi da justiça. Escapei da injustiça e da perseguição política. Não poderia ficar refém de um sistema judicial fraudulento em que se presume a culpa, em que os direitos humanos básicos são negados”.
Independente dos próximos capítulos desta saga, salta aos olhos a complexidade dos conflitos de agência envolvidos nesta trama. Definindo conflito de agência de forma bem prática e didática, podemos dizer que são conflitos entre agentes econômicos interessados na gestão e nos resultados de uma empresa. Tem se o agente principal que são os donos ou acionistas que contratam os gestores (agentes executores) esperando que estes tomem as decisões no dia a dia baseadas naquilo que for melhor para empresa no longo prazo. O conflito existe quando o gestor, o agente executor toma decisões baseadas no seu próprio interesse em detrimento aos da empresa. O foco de um sistema de Governança Corporativa é a harmonização desses conflitos atendendo as expectativas dos acionistas e todos os outros múltiplos interesses dos stakeholders da empresa.
O herói de mangá japonês Carlos Ghosn foi delatado por um executivo estrangeiro do departamento jurídico da Nissan, suspeito de envolvimento em um possível esquema com residências particulares em diversos países usadas pelo executivo e que estão sob investigação das autoridades. Prática nova na legislação japonesa, que passou a vigorar a partir de junho de 2019 naquele país como sistema de colaboração para acusados de crimes de colarinho branco e evasão fiscal.
Chama atenção neste ponto, os prováveis conflitos envolvendo tanto os próprios executivos da Nissan como os conflitos entre os gestores das empresas japonesas e francesa . São prováveis também os conflitos de agência entre os setores automobilísticos francês, japonês e mundial. Os estudiosos de Governança Corporativa sabem que uma das razões de qualquer conflito de agência é a inexistência do agente perfeito, teoricamente conhecido Axioma de Jensen e Meckling onde o oportunismo dos agentes é a mola mestre. Este oportunismo é também o ponto central da Nova Economia Institucional, Williamson 1996, que reforça a outra razão dos conflitos de agência, o Axioma de Klein: a inexistência do contrato completo. O oportunismo existente entre os agentes ex-antes e ex-post a assinatura de um contrato.
Focando novamente em Ghosn que era o principal executivo das três grandes montadoras, que participava e definia a estratégia de cada uma das empresas e da aliança tripla formatada, que cláusulas - de que contrato e de que empresas - deixava claro os limites de sua atuação, quem definia sua remuneração, quem o controlava, a quem prestava contas efetivamente do que fazia? Perguntas cujas respostas esperamos que venham à tona no desenrolar desta saga.
Das acusações que lhe são imputadas, e que se forem verdadeiras, fortalece a figura do gestor oportunista em sua maioria, em algumas outras temos evidências de que possa ter agido também como acionista oportunista, e para complicar um pouco mais, por conta do advento da fuga de Tóquio para Beirute começa a ganhar força a tese de armação e perseguição política. Os próximos capítulos podem qualificar melhor do que estamos realmente tratando.
Finalizando a linha de raciocínio sob a ótica dos conflitos de agência, esta saga fortalece uma das novas teorias em desenvolvimento pelos estudiosos e capitaneada pela Universidade de Oxford, considerada como forte tendência: a teoria de múltiplos agentes na perspectiva da Governança Corporativa. Enquanto na tradicional teoria, comentada e exemplificada acima, o foco se concentra nos agentes principal e executor, como parceiros oportunistas e nas relações de contratação, a teoria de múltiplos agentes traz a tona também o oportunismo dos Conselhos e dos acionistas institucionais que podem se engajar em ações maliciosas e prejudiciais aos negócios. Dentro deste novo foco amplia-se o papel e responsabilidade dos gestores que podem tomar a defensiva do negócio contra as ações oportunistas dos múltiplos agentes.
Analisando agora sob o ponto de vista dos modelos de Governança Corporativa, o professor José Paschoal Rossetti e eu em nossa obra Governança Corporativa: Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências descrevemos no capítulo seis, seis modelos efetivamente praticados no mundo: anglo-saxão, japonês, alemão, latino europeu, latino americano e chinês. O caso Ghosn expõe peculiaridade de dois destes modelos: o Latino Europeu representando o que é mais percebido em empresas da França, Portugal, Espanha e Itália e o modelo de especificidade única que é o japonês. As figuras abaixo sintetizam as principais características definidoras dos dois modelos.
Características dos modelos japonês e Latino europeu
CARACTERÍSTICAS DEFINIDORAS | MODELO JAPONÊS |
1. Financiamento predominante | Debt |
2. Propriedade e Controle | Concentração com cruzamentos – Keiretsu |
3. Propriedade e Gestão | Sobrepostas com a presença dos Kansayaku |
4. Conflitos de Agência | Entre Credores e Acionistas |
5. Proteção legal a minoritários | Baixa ênfase |
6. Conselhos de Administração | Atuantes e foco em estratégia |
7. Liquidez da participação acionária | Em evolução |
8. Forças de controle mais atuantes | Internas |
9. Governança Corporativa | Em evolução. E política de Estado desde 2015 |
10. Abrangência dos modelos de Governança | Alta |
CARACTERÍSTICAS DEFINIDORAS | MODELO LATINO EUROPEU |
1. Financiamento predominante | Indefinida: Debt e Equity |
2. Propriedade e Controle | Concentrada familiar |
3. Propriedade e Gestão | Sobrepostas |
4. Conflitos de Agência | Majoritários x Minoritários |
5. Proteção legal a minoritários | Fraca |
6. Conselhos de Administração | Pressões para maior eficácia |
7. Liquidez da participação acionária | Baixa |
8. Forças de controle mais atuantes | Internas migrando para externas |
9. Governança Corporativa | Ênfase em alta |
10. Abrangência dos modelos de Governança | Mediana |
Fonte: Rossetti & Andrade, 2014 adaptada e atualizada pela autora
No modelo Japonês, Governança Corporativa passou a ser política de Estado a partir de 2015 e destacamos de forma geral três características básicas:
1. A orientação stakeholder;
2. A gestão consensual;
3. A forte presença dos bancos nas corporações, dada a origem predominante do capital (debt).
Possui como especificidades a existência dos Keiretsu e dos Kansayaku kai. Os Keiretsu são as participações cruzadas entre as empresas japonesas e os Kansayaku, são os conselheiros fiscais espalhados por toda a empresa com o objetivo de fiscalizar os departamentos e se necessário for, autuar pessoas e processos. A gestão se sobrepõe à propriedade e o modelo não está precipuamente voltado para conflitos de agência. O foco dos conselhos, geralmente bem numerosos, é a estratégia corporativa. Como antecipamos anteriormente a legislação corporativa japonesa introduziu em 2019 a prática da delação premiada para os crimes de colarinho branco.
Já no modelo Latino Europeu a fonte predominante de financiamento não é bem definida. As diferenças entre o modelo Latino Europeu e os modelos Anglo-Saxões e o Nipo-Germânico são grandes. A propriedade é concentrada e é expressivo o número de grandes corporações familiares ou controladas por grupos consorciados. Conflitos de agenciamento ocorrem por fraca proteção a minoritários. As forças externas de controle são menos atuantes – e é baixo o enforcement. Geralmente, as presidências do Conselho de Administração e da Diretoria Executiva são justapostas, mas é crescente e alta (54%) a presença de outsiders independentes no órgão colegiado. Por pressões ativistas, o modelo tende a abrir-se mais a interesses múltiplos.
O titã da indústria automobilística, Carlos Ghosn tinha como estratégia a fusão entre Nissan e Renault com Conselho único e operações independentes em cada país. Estratégia ousada para ambos modelos que colocou em cheque a diversidade cultural e institucional da França e Japão. A dificuldade em harmonizar estas diferenças abriu espaço para os conflitos de altíssima complexidade aparecessem e a trama se desenrolasse através de capítulos únicos e surpreendentes.
A saga está longe de terminar, o objetivo de Ghosn com a fusão das montadoras foi implodido e o impacto de sua saída do comando das três empresas está sendo bem negativo para cada uma delas. O sistema judiciário japonês está sendo duramente exposto fazendo emergir dúvidas sobre a segurança jurídica e legal de investidores e executivos estrangeiros atuarem no ambiente corporativo japonês. Os contratos das alianças e parcerias estratégicas transnacionais passam a ser questionados exigindo criatividade nos novos processos de takeover (aquisição hostil) e na elaboração das poison pills (pílulas de veneno), cláusulas estatutárias de difícil remoção.
Como estrategista de altíssima qualidade, Ghosn está explorando de forma muito eficiente, na sua exposição pessoal, um dos pilares da boa governança que é de difícil lida para os japoneses: a transparência. Um país onde o sacrifício, a resiliência e a discrição pessoal são valores cultuados pela Nação e onde as empresas respondem em primeiro lugar a governança do Estado Japonês tendo como foco principal a manutenção e a garantia do bem comum.
Não podemos nos esquecer que a honra é um dos princípios básicos dos códigos de conduta das organizações japonesas, e neste caso a honra do poder judiciário da nação japonesa foi posta em julgamento sob o ponto de vista ocidental. Como se desdobrarão daqui para frente, os outros valores da boa governança pelos atores e sistemas envolvidos: a prestação de contas a sociedade, a conformidade legal e o senso de justiça?
Como efeito explosivo da nitroglicerina, o herói de mangá japonês e titã dos automóveis - Carlos Ghosn conscientemente ou não, em sua defesa tem provocado uma reação exotérmica, ou seja uma reação química cuja energia é transferida de um meio interior para o meio exterior, aquecendo o ambiente através de uma explosiva liberação de calor, aumentando a entropia (a desordem) deste ambiente. Com sua fuga do Japão foi incluído mais um ator explosivo na trama, o Estado do Líbano cujos reais interesses ainda estão por serem explicitados.
Em fevereiro deste corrente ano, a Nissan apresentou uma denúncia a um tribunal civil japonês exigindo de Ghosn o pagamento de 10 bilhões de ienes, o equivalente a 90 milhões de dólares com o objetivo de recuperar uma parte significativa dos danos provocados por sua conduta inapropriada e atividades fraudulentas. Anteriormente e em direção oposta Ghosn, no final de 2019, já tinha processado a montadora por demissão improcedente. Do que realmente estamos tratando: Gestor oportunista? Acionista oportunista? Múltiplos agentes oportunistas?? Falhas contratuais?
Acompanhar a saga Ghosn sob o ponto de vista técnico, prático e conceitual de Governança é um exercício real, pulsante, surpreendente, complexo, com nuances estratégicos, temperado com ousadia, picardia, audácia, ardil e muito perigo, onde detalhes poderão ser fatais e determinantes para as estruturas de governança dos modelos impactados. A questão que fica no momento é qual dos atores envolvidos terá a competência de conter o efeito explosivo desta nitroglicerina transformando-a numa dinamite e controlando o seu poder de destruição. Aguardemos os próximos capítulos desta saga e suas respectivas tacadas!
Adriana de Andrade Sole
é engenheira eletricista, pós graduada em Gestão de Negócios e Engenharia Econômica, Conselheira certificada de Administração pelo IBGC desde 2010. Agraciada em 2008 pelo Ministério das Relações Exteriores com a medalha Centenário da Imigração Japonesa que simboliza o reconhecimento pela contribuição prestada para o aprimoramento das relações com o Japão, bem como para a inserção da comunidade japonesa no Brasil e da comunidade brasileira no Japão. Fundadora do canal do youtube e blog “Governança Já”. Especialista, professora, palestrante e consultora em temas ligados a Governança Corporativa, Compliance, Riscos e Códigos de Conduta. Pesquisadora da Fundação Gorceix, co-autora dos livros Governança Corporativa: Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências; Código de Conduta: A Ponte entre a Ética e Organização; e de uma série de artigos técnicos sobre Governança Corporativa.
adrianasole@globo.com