Quando o Conselho de Administração da Linx estabeleceu contrato que traz restrições à atuação dos acionistas, inclusive prevendo penalidades que limitam a decisão da Assembleia, temos demonstração de que não se trata de business as usual. Em situações em que uma parte interessada busca expedientes para se apropriar de parte do valor da empresa em detrimento dos demais acionistas, há a configuração de um Prêmio de Controle indevido. A existência de diferentes relações de troca para uma mesma classe acionária fere princípios consagrados de Governança Corporativa e que foram contratualmente firmados no âmbito do Novo Mercado da B3, abrindo precedente perigoso que será muito deletério para o mercado de capitais brasileiro.
O mercado brasileiro se deparou recentemente com mais uma proposta de reestruturação societária com a oferta de incorporação da Linx pela StoneCo. Os pontos críticos do caso dizem respeito à imposição de restrições à deliberação dos acionistas da empresa alvo, à construção de mecanismos não equitativos na distribuição da oferta entre acionistas, e ao contexto de conflitos de interesse (não mitigados) oriundos da multiplicidade de papéis exercidos pelo principal executivo da empresa.
Trata-se de duas empresas do setor de tecnologia que buscam sinergias em suas operações. A Stone, empresa brasileira que atua como credenciadora no competitivo mercado de cartões, fez seu IPO em 2018 e optou por fazer sua listagem fora do Brasil. A Linx, classificada como uma Corporation pela ausência de controlador definido e listada no segmento do Novo Mercado da B3, provê softwares de gestão para empresas de varejo.
Quando o Conselho de Administração da Linx estabeleceu contrato que traz restrições à atuação dos acionistas, inclusive prevendo penalidades que limitam a decisão da Assembleia, temos demonstração de que não se trata de business as usual. Nesses processos, os acionistas devem receber tratamentos equânimes, não podendo ser alijados da decisão sobre o mérito dessas operações.
Restrição ao direito de voto
O contrato foi realizado em condições que lançam dúvidas sobre a alçada decisória do Board, especialmente quando impõe cláusulas inovadoras que geram incertezas sobre sua legitimidade, uma vez que alcançam direitos soberanos dos demais acionistas na decisão sobre a operação. O documento teve ainda o condão de dificultar, ou mesmo impedir, que fossem analisadas propostas alternativas que eventualmente trariam condições mais vantajosas à empresa, sobretudo pelo fato de que a empresa Totvs, conforme informações divulgadas, sinalizava interesse na apresentação de proposta alternativa, o que ocorreu horas depois.
A determinação de cláusula de multa colocou os acionistas no corner, retirando graus de liberdade do poder de decisão sobre a operação. Nos termos de troca originalmente apresentados, a proposta para incorporação da Linx foi avaliada em cerca de R$6 bilhões, posteriormente ajustada para aproximadamente R$6,3 bilhões. Em perspectiva, a chamada multa compensatória por eventual desistência foi estabelecida em R$ 605 milhões*, representando algo em torno de 10% do valor do negócio. (*) Valor posteriormente alterado para cerca de R$435 milhões quando de ajuste da proposta pela Stone.
Prescrições feitas pelo Takeover Panel e pelo Comitê de Aquisições e Fusões (CAF), em linha com melhores práticas de governança corporativa, apontam na direção de que a decisão a respeito da aceitação de uma operação de reorganização societária deve ser deslocada aos acionistas, não podendo os administradores da companhia ou qualquer outra parte envolvida na operação tomar medidas que visem a frustrar a soberania da decisão assemblear.
Takeover Panel é reconhecido orgão independente do Reino Unido, criado em 1968, que gere um Código com princípios de melhores práticas e mecanismos de supervisão de operações de reestruturações societárias entre empresas. Segundo a lei societária do Reino Unido, desde 2006, todas as operações dessa natureza precisam ser analisadas pelo órgão antes de irem ao mercado. A CEE adotou, nessa mesma época, esse tipo de instituição, com diferentes formas de organização em cada país, mas com o mesmo espírito de imposição de boas práticas às reestruturações societárias.
O Comitê de Aquisições e Fusões (CAF) é entidade de autorregulação para ofertas públicas de aquisição de ações e reorganizações societárias envolvendo companhias brasileiras listadas. Foi criado sob a inspiração do Takeover Panel
Os administradores, portanto, devem agir de modo a não criar obstáculos à deliberação dos sócios, particularmente quando se considera a existência de intersecções nas diferentes competências de algumas partes interessadas, sob pena de serem levantados questionamentos indesejados sob a ótica do conflito de interesses.
A Lei Societária Brasileira (ver §2º do Art. 252 da Lei 6.404/1976) absorveu esses princípios ao estabelecer que em situações de incorporação de ações do capital social ao patrimônio de outra companhia, a empresa alvo deve convocar uma assembleia-geral para que os acionistas tomem suas decisões. Assim, ao receber uma oferta dessa natureza, exercendo seu dever de diligência em busca da defesa dos interesses da companhia e demais stakeholders, o Conselho de Administração deve avaliar a proposta e se manifestar sobre a operação, estabelecendo recomendação decisória (aprovação ou rejeição), para posterior apreciação dos acionistas em assembleia geral.
É comum nesses casos que sejam também apontados comitês independentes ad hoc para auxiliar o Board no processo, mas dada a celeridade do processo, inclusive com a divulgação de fato relevante durante o pregão, essas opções, provavelmente, nem puderam ser consideradas.
Conflitos de Interesse
Os bons manuais de Governança citam como princípio de boa prática a separação entre o papel do gestor e o do membro do Board, sendo que existem na literatura bons argumentos para essa segregação. No caso da Linx, percebemos que o CEO não só atua no Conselho, mas que também é acionista relevante. Isso extrapola situações de livro texto ao materializar não um tipo de conflito, mas também aquele que advém da segregação necessária entre acionistas e gestores. O caso se agrava quando elementos de benefícios particulares estão presentes, ficando evidente a necessidade de mitigação de um triplo conflito (Gestor, Conselheiro e Acionista).
Na proposta, os três acionistas fundadores fariam jus à substancial remuneração adicional de R$215 milhões em contrapartida à vedação de competição no futuro, considerada essa uma condição imposta pelo ofertante para que a transação fosse concretizada.
Nessa linha, a decisão sobre uma incorporação que inclui cláusulas de non- compete e proposta de contrato de trabalho gera situação de teste de independência em função dos múltiplos chapéus exercidos na companhia. Assim, não somente nos termos do art. 156 (conflito na condição de administrador da companhia), mas também nos termos do art. 115, §1º, da Lei 6.404/76, os acionistas de referência da Linx que fariam jus a recebimento de remunerações excepcionais, que no final do processo obtém relações de troca mais vantajosas, devem ser impedidos de votar na assembleia que deliberará acerca da incorporação pela Stone. Nessa interpretação, ficam os sócios fundadores conflitados a estabelecerem compromisso de voto contratual.
Prêmio de Controle e Benefícios Particulares
Isso significa que o pagamento de benefícios indiretos ou a adoção de relações de troca que gerem assimetrias entre os acionistas da companhia alvo, ou quaisquer outros atos que levem à mesma condição, incluindo construções jurídicas não convencionais, devem ser interpretados como formas aptas para impor a restrição de direitos dos acionistas. É inquestionável e inegociável o fato de que ações de uma mesma classe, e em condições de equilíbrio, devem receber propostas idênticas em processos de incorporação.
Em situações em que uma parte interessada, em geral algum acionista com posição relevante ou que exerça o controle da companhia, busca expedientes para se apropriar de parte desse valor adicional em detrimento dos demais acionistas há a configuração de um Prêmio de Controle indevido. Se houver o pagamento de um prêmio a apenas um grupo teremos um precedente perigoso e indesejado no país, especialmente por se tratar do mais alto nível de listagem da bolsa brasileira, que a princípio deveria garantir tratamento equânime a todos os sócios. Agir de forma diferente é nocivo ao mercado local pela maneira como a operação foi desenhada.
Finalmente, sob a ótica de Stewardship, é importante resgatar que os demais acionistas mantêm responsabilidades como sócios para cobrarem posicionamentos da empresa com relação ao exercício do direito de voto em assembleia. Pela visão dos elementos apresentados, não parece haver critérios objetivos no caso que justifiquem a imposição de restrições ao voto assemblear por meio de cláusulas contratuais heterodoxas, em especial pelo fato de que há conflitos de interesses não devidamente mitigados. Tampouco deveria ocorrer desalinhamento entre investidores em condições de equilíbrio, de modo que a existência de diferentes relações de troca para uma mesma classe de ações conduz ao entendimento de que se trata de Prêmio de Controle não compartilhado entre todos os acionistas, o que fere princípios consagrados de Governança Corporativa e que foram contratualmente firmados no âmbito do Novo Mercado da B3, o que certamente será muito deletério para o mercado de capitais brasileiro.
Nota: Texto originalmente publicado na série “Opinião Amec”
Fábio Henrique de Sousa Coelho
é presidente-executivo da Amec - Associação de Investidores no Mercado de Capitais.
fabio.coelho@amecbrasil.org.br