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Se fizermos uma retrospectiva comparando a dinâmica da evolução dos sistemas de Governança do Estado e Corporativa brasileira perceberemos um descompasso grande entre elas com diferentes impactos nos setores público e privado. Termos um entendimento claro da situação real brasileira atual é condição “sine qua non” para analisarmos nossos atuais desafios.
Tomando como marco inicial de nossa análise o ano de 1995, quando o Presidente Fernando Henrique assumiu o poder executivo brasileiro , trazendo com ele a “Reforma do Estado” liderada por Bresser Pereira, focando naquela época a Governança da Administração Pública. E, no setor privado fomos testemunhas da criação do Instituto Brasileiro de Conselhos de Administração (IBCA) tendo como objetivo fortalecer a atuação dos conselhos de administração – órgão de orientação, supervisão e controle nas empresas. , O quadro 1 sintetiza os eventos principais que marcaram cada uma destas Instâncias no Brasil de 1995 a 2020.
Quadro 1: Retrospectiva Brasil 1995-2020 - Marcos principais da Governança Corporativa e Governança Pública
Governança Corporativa Setor Privado |
Governança Pública Setor Público |
1995 - Criação IBCA : Instituto Brasileiro de Conselhos de Administração. | 1995 - Pres. Fernando Henrique assume com a bandeira da Reforma do Estado capitaneada por Bresser Pereira |
1999 - OECD : Princípios da Governança Corporativa para as empresas dos países membros e IBCA se transforma em IBGC. | 1999 - Reforma do Estado perde foco e força |
2001 - Lei Sarbanes Oxley -EUA: formalização dos sistemas mundiais de Governança Corporativa e das Instancias de Auditoria como sistema de fiscalização e Controle. Monitoração e Foco na Diretoria Executiva. 2001 - Criação dos Níveis diferenciados de Governança : Nivel1, Nível 2 e Novo Mercado | 2001 - Reforma da Lei das S.A |
2008 - Lei Dodd Frank- EUA : formalização da instancia de compliance no sistema de fiscalização e controle das empresas mundiais. Foco e Monitoração no Conselho de Administração e seus Conselheiros. | |
2013 - Lei 12.846: Lei de Compliance formalizando a equipe de compliance nos sistemas de fiscalização e controle das organizações brasileiras | |
2016 - Atualização dos Princípios de Governança Corporativa da OCDE e da maioria dos códigos nacionais de Governança. Brasil lança o Código Brasileiro de Governança Corporativa | 2016 - Lei 13.303- Lei da Governança das Estatais e empresas de capital misto |
2020 - Coronavírus- Sobrevivência empresarial | 2020 - Coronavirus- ESG - Saúde como foco principal |
Fonte: criação da autora
Enquanto a Reforma do Estado foi perdendo força e foco com o passar dos anos, as preocupações com governança corporativa se ampliaram no mundo inteiro e foram traduzidas em 1999, no que Andrade e Rossetti (2014) consideram como um dos marcos mundiais sobre o assunto, os Princípios de Governança Corporativa da OCDE- Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, organização econômica intergovernamental formada por 37 países membros. Neste mesmo ano, o IBCA se transforma em IBGC Instituto Brasileiro de Governança Corporativa acompanhando a evolução e se tornando referência nacional sobre o tema.
Na virada do século, especificamente em 2001, fomos impactados duramente pelas megas fraudes e pelo ataque terrorista às torres gêmeas dos EUA. As megas fraudes americanas provocaram o lançamento da Lei Sarbanes Oxley, conhecida como o pesadelo dos executivos americanos, influenciando os sistemas mundiais de governança através da exigência e formalização das estruturas de Governança Corporativa e a institucionalização nestas, das instâncias de Auditoria: Interna, Independente e Comitê de Auditoria. Neste mesmo ano assistimos a criação dos nossos níveis diferenciados de Governança Corporativa: Nivel 1, Nível 2 e Novo Mercado, na Bolsa Brasileira.
Em 2008, os modelos de governança mundiais foram impactados novamente por outra crise americana, a financeira e pela lei Dodd Frank , lei que visou a regulação do sistema financeiro dos EUA. Como conseqüência desta lei, a função de Compliance, passou a ser cobrada nos sistemas de fiscalização e controle de Governança em todos os modelos existentes e os Conselhos de Administração passaram a ser o holofote a ser monitorado.
Acompanhando este movimento vimos o setor publico brasileiro lançar em 2013 a Lei 12.846 , a nossa Lei de Compliance, conhecida como Anticorrupção, que além de responsabilizar as organizações de forma geral sobre qualquer descumprimento legal , responsabiliza também os administradores: Conselheiros e Executivos- destas instituições aumentando o grau de exposição civil e criminal dos mesmos em relação a potenciais comportamentos irregulares ou ilegais pessoais e de seus colaboradores.
A partir de 2014 com os eventos estarrecedores da Operação Lava Jato os setores publico e privado brasileiro estiveram expostos na arena mundial trazendo a triste constatação de que tínhamos nos tornado o benchmarking mundial em corrupção no quesito capilaridade deste esquema. Não satisfeitos em esgarçarmos a teia social e institucional brasileira , conseguimos exportar o jeitinho brasileiro de corrupção para 28 países.
Enquanto a OECD atualizava os seus princípios de Governança Corporativa forçando a atualização de todos os códigos de Governança nacionais existentes á partir de 2016,o Brasil lançava a Lei 13.303, nosso marco da Governança Corporativa para as empresas públicas e de capital misto. Em 2017, lançamos o seu Código Brasileiro de Governança Corporativa para as empresas listadas.
A partir de 2018 , começamos a experimentar impactos embora pequenos mas positivos no nosso posicionamento nos rankings mundiais.
De acordo com o Banco Mundial , pesquisa de Daniel Kaulfmann, a Governança do Estado brasileiro comparativamente aos países da OECD, América Latina e Caribe é pontuada abaixo da média mundial de acordo com a tabela abaixo:
Tabela1: Pontuação da Governança do Estado Brasileiro pelo Banco Mundial em 2020
Fonte: http://info.worldbank.org/governance/wgi/#home
Importante pontuarmos nesta Tabela 1, que a menor nota referente ao ano passado diz respeito a Estabilidade política e das Instituições legais e regulatórias.
E se analisarmos o Histórico desta pontuação, percebemos na nossa Governança de Estado a mesma dinâmica do “vôo de galinha” característica da nossa economia: vamos na direção certa, não conseguimos segurar e manter os impactos do vôo e caímos, o que claramente é evidenciado na Tabela 2 abaixo, especificamente na sua ultima linha.
Tabela 2: Histórico da pontuação da Governança do Estado Brasileiro pelo Banco Mundial.
Fonte: http://info.worldbank.org/governance/wgi/#home
Sob o ponto de vista de competitividade nacional,percebemos que apesar do ligeiro avanço no ranking da competitividade do WCY 2020, já levando em consideração os impactos do Coronavirus em todos os 63 países pertencentes a este ranking, o Brasil permanece entre as nações menos competitivas do mundo. O gráfico abaixo atesta esta situação:
Gráfico 1: Evolução da competitividade brasileira no WCY 2020
O Brasil no World Competitiveness Yearbook 2020
Fonte: https://nucleos.fdc.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Relat%C3%B3rio_Analise_IMD-2020.pdf
Neste mesmo ranking se analisarmos os fatores e subfatores de competitividade dos últimos dois anos fica claro o impacto do descompasso entre as práticas dos setores público e privado. Enquanto o desempenho econômico, a eficiência governamental e a infraestrutura tiveram uma variação de 1 grau positivo em 2020 relativamente a 2019, a eficiência empresarial obteve uma variação positiva de 10 pontos, o que é demonstrado através da Tabela 3. Isso evidencia o diferente senso de urgência e de resposta do nosso mundo corporativo em relação ao nosso setor público.
TABELA 3: O Brasil nos fatores e subfatores de Competitividade (2019-2020)
Fonte: https://nucleos.fdc.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Relat%C3%B3rio_Analise_IMD-2020.pdf
E, se avaliarmos os fatores chave para a competitividade da economia brasileira , analisando a evolução dos mesmos no período de 2011 a 2020 , percebemos que a competência do governo e o regime tributário brasileiro são os fatores de mais baixa pontuação nestes fatores como demonstrado no gráfico abaixo:
Gráfico 2: Fatores Chave para a competitividade da economia brasileira. FDC 2020
Fonte: https://nucleos.fdc.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Relat%C3%B3rio_Analise_IMD-2020.pdf
Complementando esta visão , de acordo com as agencias de rating somos posicionados há alguns anos como País de grau especulativo bb - . Isso significa que de um país de grau de investimento que era possível investir com os cuidados necessários , passamos a ser País de grau especulativo com pouca segurança jurídica e institucional em termos de investimento.
A competência do governo está sendo duramente checada por uma sociedade civil em rede interconectada , amedrontada por uma pandemia e diuturnamente agredida pelo poder de uma mídia que privilegia e foca o domínio da mediocridade. Esta sociedade civil tem exigido não só a legalidade das ações governamentais mas também a legitimidade de suas ações.
Estávamos todos nesta sintonia entendendo e minimizando os efeitos do Coronavirus e da Governança Global nas nossas vidas, nas nossas empresas e mercado de capitais , quando nos deparamos com problemas vergonhosos e estarrecedores na estrutura de Governança em várias empresas listadas nos nossos níveis diferenciados, notoriamente empresas do Novo Mercado, o Nivel mais elevado e exigente em práticas comparáveis as melhores do mundo em governança corporativa.
Enquanto Empresas brasileiras listadas passaram a ser comparadas com a Enron americana, debandadas de Conselheiros de Administração em exercício começaram a ser frequentes a partir do segundo semestre de 2020. Enquanto os nossos órgãos reguladores assistiam inertes a esta situação , falhas estruturais nos sistemas de governança eram expostas de forma sistemática na nossa mídia corporativa. Os conflitos de agência explodiram no nosso contexto corporativo , destruindo sistematicamente e cirurgicamente o valor de muitas de nossas empresas.
Chegamos em 2021 impactados por todo este contexto e de uma forma inusitada e ousada conseguimos acrescentar práticas novas e de alta criatividade ,diferenciando a temporada das Assembleias Gerais deste ano.
Sobre Assembléia Geral de acordo com Andrade &Rossetti (2014) - Assembléia Geral: Órgão soberano de qualquer sociedade. Sua soberania só é limitada pelas normas da lei e por condições estabelecidas no Estatuto Social. É de sua competência privativa deliberar sobre matérias de alta relevância:
A estrutura de poder efetivamente exercida em qualquer empresa emana dessa Instância. Os acionistas são agentes outorgantes da estrutura de poder. Todos os demais órgãos do ambiente de governança são constituídos por agentes aos quais os acionistas outorgam poderes. É nesta instância que o jogo corporativo para os próximos dois anos é definido.
As Assembléias Gerais em 2021de importantes empresas brasileiras se tornaram o palco circense dos conflitos de agência explícitos entre acionistas majoritários e minoritários onde os pilares da boa governança brasileira amparados pelas nossas leis , principalmente as Leis 12.846 e 13.303 começaram a ser chacoalhados , numa espécie de teste insano medindo a resiliência e a integridade de nossas empresas neste período pandêmico. Especificamente, considerada marco brasileiro na Governança de empresas públicas e de capital misto, que teve como premissas básicas a tentativa de blindar as empresas do uso político e reduzir brechas para corrupção depois de escândalos como o Petrolão, assistimos estas mesmas premissas da Lei 13.303/16 serem jogadas na esgotosfera política.
Como explicar esses reveses nas instâncias da Governança do Estado e Corporativa Brasileira? Como explicar a insistente dinâmica do vôo de galinha em nossa Economia e sistemas de governança?
No meu entendimento , o conceito da “banalidade do mal” desenvolvido pela filósofa judia de origem alemã, Hannah Arendt (1906-1975) explica boa parte deste complexo contexto.
Hannah Arendt, consagrou-se uma das mais influentes filósofas políticas do século XX, desenvolvendo conceitos inovadores e corajosos sendo altamente criticada naquela época por ter levantado questões sobre a ação cruel que conduziu ao holocausto grande parte da etnia judia , a qual fora sacrificada sem explicações. A teoria da “Banalidade do mal” lançada por ela no seu livro Eichmann em Jerusalém : um relato sobre a banalidade do mal, se tornou um desafio ameaçador a toda e qualquer sociedade e cultura.
Este livro trata do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém , um oficial da SS responsável por organizar a logística para a “solução final”, plano nazista para a exterminação dos judeus na Alemanha e seus territórios ocupados naquela época. As reflexões de Hannah são decorrentes de seu acompanhamento presencial neste Julgamento quando suas observações e percepções levantaram a questão do “quão comum” seria Eichmann, no cumprimento das ordens recebidas e de quão desprovido ele era de senso de pensamento crítico, no sentido do mesmo não questionar o que estava fazendo. Em Israel, ela percebeu algo que ninguém imaginava. Eichmann não era um monstro cruel e antissemita convicto. Ele era tão medíocre que seria incapaz de ser um monstro. Eichmann era apenas uma pessoa buscando ascensão por meio de um sistema totalitário e teria entrado para a Gestapo para ganhar dinheiro. Em seu livro, Arendt ressalta que ele era tão medíocre que nem conseguiu subir para uma patente alta na hierarquia militar.
Esta obra causou polêmica, sobretudo entre a comunidade judaica, que acusou Arendt de ter minimizado o mal cometido por Eichmann e por nazistas como ele. A partir desta percepção Hannah Arendt defende que ,como resultado da massificação da sociedade contemporânea , se criou uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais, razão porque aceitam e cumprem ordens sem questionar. Eichmann, foi simplesmente um exemplo de como pessoas comuns são capazes de praticar o mal ilimitado. E nesta esteira o mal torna-se banal. Não é considerado mais como algo surpreendente, fruto de mentes doentias, mas como um aspecto da sociedade, onde pessoinhas comuns o praticam. Hannah Arendt, ousou analisar o mal não pelo viés moral, mas pelo viés político.
Além desta análise causou polêmicas ,quando provou que o nazismo teve a força que teve, porque judeus e instituições judaicas se submeteram a causa “nazi” cumprindo suas diretrizes sem questionar ou utilizando do argumento de que isso diminuiria a perseguição, o que foi sintetizado na expressão:
“Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”. Hannah Arendt
Podemos perceber como a banalidade do mal , tem estado presente e é real em todos os sentidos da vida e em todos os lugares deste mundo globalizado e interconectado, afligindo minorias e fracos.
Só dentro deste racional , encontramos explicação por ter nos tornado o benchmarking mundial em corrupção em termos de capilaridade... décadas fortalecendo um esquema de relacionamento espúrio entre os setores público e privado. Quantos servidores e gestores privados deixaram de se posicionar ao se depararem com situação de pouca qualidade moral e ética , por achar simplesmente que não era importante e que não valia a pena a exposição? E o quanto esta percepção e postura ainda é comum , sobrevive e é defendida nas atuais estruturas corporativas e governamentais brasileiras?
Apenas a banalidade do mal explica o efeito manada percebido na temporada de Assembléias 2021, quando boa parte dos Conselheiros de Administração atualmente em exercício e competentes não se posicionaram contra a tentativa brutal de retrocesso as boas práticas de governança corporativa herculeamente conseguidas nas ultimas décadas.
E, só e somente só ,o Conceito da banalidade do mal em sua essência consegue explicação plausível para as ultimas decisões da mais alta corte brasileira.
A Covid 19, tem transformado a preservação da vida em um objetivo político, uma demanda pública ,preocupação central das políticas públicas que pretendem funcionar como ilhas de previsibilidade no oceano de incertezas. Um novo tipo de confiança começa-se a estabelecer em torno de um poder coletivo que tenta contingenciar a imprevisibilidade dos tempos . A presença recorrente do conceito da banalidade do mal nos debates públicos, a mediocridade exposta nos discursos específicos, o retrocesso jurídico exponencial experimentado nos últimos meses tem ampliado a angústia popular quanto a imprevisibilidade do mundo e o apreço pelo valor inestimável da vida.
A banalidade do mal se faz presente nas entranhas da Governança do Estado e Corporativa brasileira colocando em risco a sustentabilidade de nossas empresas e Instituições ampliando o gap em relação aos Princípios de Governança Corporativa do G20 e da OCDE, versão 2016 , que postula como papel atual das empresas o de serem promotoras de mercados transparentes e justos, assim como alocadoras eficientes de recursos e garantidoras da integridade destes mercados e do Estado de Direito e como papel dos Conselhos “Garantir a orientação estratégica da sociedade, o controle eficaz da equipe de gestão e impõe a responsabilização do Conselho perante a sociedade e seus acionistas”.
Empresas como promotoras do Estado de Direito e Conselhos de Administração responsáveis perante a sociedade e acionistas por tudo o que acontece nas Empresas.... quão distante desta realidade e destas boas práticas nos encontramos hoje!
Adriana de Andrade Solé
é Conselheira da SCGÁS, da Editora Fórum e certificada pelo IBGC. Membro do GGC Brasil: Grupo de Governança Corporativa Brasil. Engenheira Eletricista, Autora, Professora, Palestrante e Consultora em Governança Corporativa.
adrianasole2021@gmail.com