O mercado de capitais recentemente foi surpreendido com a notícia de um corte substancial no orçamento de 2022 para a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
Como tive a honra e o privilégio de ser o primeiro presidente da CVM e definir seus primeiros passos com um colegiado composto por profissionais de diferentes segmentos do mercado, tivemos a preocupação de delinear com muita clareza os objetivos do novo órgão regulador sancionado pela Lei 6385 de 1977.
O objetivo foi criar uma estrutura que desse condições para parcela relevante de nossa poupança pudesse ser direcionada para o mercado de valores mobiliários que enfrentara uma crise dramática desde 1971 a 1973 em Bolsa, gerando enormes prejuízos para os investidores.
Entre os fatores que foram levados em consideração para explicar o que havia sucedido no mercado, imperava a necessidade da criação de um órgão regulador especializado, voltado a disciplinar o mercado, buscando trazer de volta a confiança aos investidores.
Ressalte-se também a Reforma da Lei das S/A, 2627 de 1946, desatualizada com instrumental legal em defesa da proteção ao investidor em ações. A Lei 6385 de 1976 preocupou-se com a criação de instrumentos para mobilizar recursos para companhias que quisessem usar o mercado.
Uma vez estruturada a Comissão, tivemos a preocupação de priorizar providências que atendessem a imprensa, que queria respostas imediatas da CVM, mas entendíamos ser fundamental uma estrutura implementada que atendesse essa demanda, mas com efeito duradouro. A Comissão deveria estar fundamentada num tripé, priorizando a regulação, onde a questão do desenvolvimento do mercado e a educação do investidor fossem também contempladas. Posteriormente, resolvemos dividir com o mercado essa função, criando o CODIMEC com a participação de corretores de valores, bancos de investimento e das companhias abertas que em 1989 descontinuou suas atividades.
Na estruturação operacional, vários princípios foram cuidadosamente definidos e pacientemente explicados aos órgãos de comunicação para entender o gradualismo da implementação da autarquia.
Editamos alguns folhetos que abaixo seguem sumarizados:
CVM – O que é, estrutura, objetivos, como atua e quem é quem – onde sublinhávamos que o colegiado não teria funções operacionais reservadas aos superintendentes das diferentes áreas criadas, tais como superintendência administrativa; de normas contábeis e de auditoria; relações com o mercado e intermediários, relações com investidores; jurídica e fiscalização externa. A superintendência de desenvolvimento se reportaria diretamente ao colegiado, assim como a corregedoria administrativa (ombudsman) e assessoria econômica e de comunicação.
Outro documento fundamental foi o CVM – Políticas de divulgação de informações – livreto de 51 páginas que descreve detalhadamente em diferentes capítulos desde os princípios da divulgação de informações, registros para negociação em Bolsa e Balcão, registro de emissões primarias e secundárias, operações especiais, pronta divulgação das informações relevantes e combate ao insider trading.
Devo mencionar um documento que se mantém íntegro, o da Regulação do Mercado de Valores Mobiliários: Fundamentos e Princípios, bússola fundamental para todos aqueles ligados ao funcionamento do mercado. Nele, demos grande ênfase a autorregulação, divulgação de informações, qualificação para exercício de atividades no MVM e conduta de intermediários. Com mais de 45 anos esse documento não perdeu sua contemporaneidade.
Finalmente, cabe destacar Políticas de Recursos Humanos, peça também fundamental para o funcionamento do órgão. São 36 páginas com detalhamentos e especificidades de um órgão que, começando do zero deveria ser modelo entre as autarquias que operavam nos segmentos ligados ao setor público.
Tendo em vista discussões recentes a respeito do órgão regulador trazidas à baila pelo corte orçamentário, salientamos os seguintes itens:
Posteriormente foi definido que os funcionários teriam dedicação exclusiva e tempo integral dedicados a autarquia.
Como se observa desde os princípios básicos de sua constituição, a CVM entendeu que deveria ter uma política salarial onde seus técnicos deveriam ter seu valor reconhecido de forma compatível com os demais profissionais do mercado.
Antecipamos que ao longo do tempo as demandas regulatórias do mercado iriam se ampliar e precisávamos ter um corpo funcional que estivesse motivado, atualizado e remunerado de forma a plenamente cumprir suas funções.
O que aconteceu nesse longo período de 46 anos superou em muito as expectativas iniciais, pois entre outros fatores a internacionalização do mercado, acrescente sofisticação dos usuários e intermediários, novos produtos financeiros aumentaram a necessidade do órgão regulador capacitado em sua plenitude para o seu desempenho.
Não são realizados novos concursos há mais de 10 anos, necessário para completar seu corpo funcional, como os salários também não guardam relações com o que inicialmente fora estabelecido na área de recursos humanos. Além do mais, a digitalização e ‘lacto sensu’, a revolução na tecnologia da informação, impôs novos desafios, mais presentes do que nunca.
Hoje os desafios para a CVM são bem maiores do que em 1977, e os assuntos envolvendo o “xerife” do mercado de capitais têm apelo maciço. O Brasil reúne 3 milhões de investidores em ações e 4,2 milhões com contas abertas em corretoras de valores nos últimos 3 anos. Nos últimos 12 meses, 1,5 milhão de pessoas passaram a operar nesse mercado. Metade dos brasileiros da classe A e 30% da B investem em produtos financeiros, segmento em que as aplicações destinadas diferentes produtos financeiros têm crescido substancialmente.
É essencial, para a segurança desses investidores, que a CVM tenha condição plena de fiscalizar o que se passa entre os agentes econômicos, disciplinar eventuais falhas e desenvolver regras nessas novas frentes. Está em jogo, sem exagero, a credibilidade do mercado, como a questão das criptomoedas.
Assim, foi muito mal-recebida a decisão, sem qualquer justificativa plausível, do Governo Federal em efetuar um corte de mais de 50% no orçamento previsto para manutenção das atividades do órgão regulador. Vale ressaltar que a CVM gera receita com as cobranças de taxa de fiscalização. Parte desses recursos deveriam estar custeando e cobrindo suas despesas. No entanto, tem sido destinada diretamente ao Tesouro Nacional. Aquele tributo com destinação vinculada não poderia ser usado em outras finalidades, mas acaba sendo utilizada a caixa única do Tesouro, que contraria não somente a lei como a própria instituição.
O mercado de capitais tem cumprido sua parte. As emissões de papéis no ano passado somaram R$ 722.2 bilhões, o maior montante em um único ano, de acordo com a própria CVM. Somente o mercado de dívida cresceu 98% na comparação com 2020. Quanto ao futuro, todas as sirenes estão ligadas.
É essencial, para a segurança desses investidores, que a CVM tenha condição plena de fiscalizar o que se passa entre os agentes econômicos, disciplinar eventuais falhas e desenvolver regras em novas frentes. Está em jogo, sem exagero, a credibilidade do mercado.
Roberto Teixeira da Costa
Economista, foi o primeiro presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários e é conselheiro emérito e fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).
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