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O fenômeno da Transformação Digital (TD) se manifesta nos processos organizacionais e nos modelos de negócio impulsionado por empresas e pessoas expostas a nove domínios do ambiente corporativo: estrutura econômica global e local; conjuntura setorial; estratégias corporativas; objetivos e metas; estrutura de ativos e sistemas de informação legados; processos internos e externos; estrutura e conhecimento organizacional; mix tecnológico disponível; e estratégia de dados.
A disciplina de Governança encontra-se no domínio das Estratégias Corporativas. Neste contexto cabe ao Conselho de Administração (CA) a formulação de Diretrizes e Plano estratégicos, bem como zelar pelas práticas de gerenciamento de riscos que assistem a diretoria executiva durante a implantação e condução das estratégias. Este paper propõe uma reflexão sobre o papel do CA diante de alguns dos elementos de riscos que afloram no contexto da TD.
Tomemos o cenário quando o CA estabelece a Diretriz Estratégica de engajamento na jornada de TD. Uma das práticas para a incorporação desta diretriz na agenda estratégica das organizações é por meio dos modelos de negócio baseados em plataformas digitais (MPD), que produzem e distribuem valor por meio de interações (Efeitos de Rede) entre seus stakeholders, facilitando a troca de bens, serviços ou de algum tipo de moeda social. Quando o desdobramento desta Diretriz implica num Plano Estratégico que prescreve um MPD, a responsabilidade executiva da Diretoria deve encontrar no CA o conhecimento necessário ao exercício diligente e tempestivo do monitoramento e controle.
RISCOS CORPORATIVOS
No âmbito da implementação da estratégia, a concepção, estruturação, lançamento e condução do MPD estão expostas a riscos inéditos, que merecem a atenção do CA. Ao ocuparem-se dos riscos da execução de estratégias baseadas em MPD, CA e Comitês encontrarão ao menos dez elementos que merecem especial atenção, conforme apresentado a seguir:
(i) Valor: a perenidade do MPD sujeita-se à produção continuada de valor para todos os stakeholders. No caso do MPD da SAP, categorias não-mutuamente exclusivas agrupam clientes (grandes, pequenos, tradicionais, inovadores, estratégicos) e empresas parceiras (soluções de software, parceiros de canais, integradores e desenvolvedores de tecnologia). Cada grupo gera valor para o MPD ao produzir Efeitos de Rede relevantes. Por outro lado, eles também têm demandas específicas a serem atendidas. A identificação da Proposta de Valor para cada stakeholder exige o engajamento com partes internas e externas à Diretoria. O CA atento identificará imperfeições neste processo exigindo, sempre que necessário, estudos que apoiem as propostas de valor sugeridas.
(ii) Acesso: a definição sobre quem deve participar do ecossistema é uma decisão central na concepção do MPD. Por exemplo, ao deliberar pelo desenvolvimento de um marketplace, é preciso decidir sobre a participação de concorrentes, que pode ser vital para a atração dos consumidores. Ademais, a presença dos concorrentes dará visibilidade, entre outros, dos detalhes do portifólio dos competidores, de suas estratégias de pricing e das tendências de demanda. O processo de escolha dos stakeholders que participarão do MPD, bem como os potenciais riscos e conflitos decorrentes, deve ser acompanhado criteriosamente pelo CA.
(iii) Efeitos de Rede: todo MPD deve incentivar as interações entre stakeholders que geram valor, e mitigar as indesejáveis. Por exemplo, quando um passageiro do UBER solicita um veículo, é desejável que ele seja encontrado pelo motorista. O aumento das viagens canceladas por não localização do passageiro, o UBER implantou a funcionalidade que permite a troca de mensagens entre motorista e passageiro. Cabe ao CA reconhecer os principais Efeitos de Rede e acompanhar seus controles de relevância, performance e perenidade.
(iv) Distribuição do Valor: o valor gerado no MPD deve ser distribuído na proporção da contribuição e das expectativas de cada stakeholder. No caso de um aplicação no transporte hidroviário de cargas, é possível reduzir os custos de manutenção ao conectar os fornecedores envolvidos nos serviços realizados em barcaças ancoradas nos portos fluviais distantes dos grandes centros urbanos. As demandas pelos serviços alimentam a plataforma digital e os fornecedores se coordenarem a ponto de enviar um único time para todas as manutenções – a economia resultante é compartilhada entre as partes interessadas. O processo de distribuição do valor criado pode afetar o relacionamento com fornecedores, clientes, canais de vendas, investidores e acionistas. Cabe ao CA escrutinar a estrutura do MPD e avaliar o impacto para a sua perenidade.
(v) Comportamentos: as interações entre stakeholders no MPD são de cinco tipos, dois deles obrigatórios: acesso e engajamento. A plataforma deve estar sempre disponível, de maneira simples e rápida. Como este acesso, usualmente via internet, ocorre mediante o compartilhamento de dados pessoais, existem implicações legais e regulatórias, podendo expor a empresa a riscos reputacionais e financeiros. Adicionalmente, mecanismos de estímulo à produção dos primeiros Efeitos de Rede, incentivam o engajamento emocional e transacional entre os stakeholders. Os demais comportamentos (customização, conexão e colaboração) são estimulados conforme necessidade. A customização é típica de relações B2C, quando se busca a personalização de experiências. A conexão é promovida quando há contato direto entre os stakeholders do MPD, como no caso do motorista e passageiro do UBER. Já na colaboração, os dados gerados pelas partes interessadas são fundamentais para o funcionamento do MPD - é o caso do Waze. Quando a Diretoria detalhar o Plano de Ação, a combinação destes comportamentos impactará os processos internos e externos, expondo a marca e influenciando o relacionamento com consumidores, investidores, proprietários e demais agentes de mercado. Cabe ao CA compreender o impacto no negócio do fomento aos comportamentos digitais, bem como monitorar sua adequada execução.
(vi) Dados: as plataformas digitais sempre operam a geração, captura, tratamento e utilização de dados, utilizados em decisões nos vários níveis da organização. Os dados podem ter origem em processos, produtos, serviços ou pessoas. Sensores em equipamentos industriais capturam dados de processo para que algoritmos de Inteligência Artificial prevejam paradas da operação. Equipamentos agrícolas (produtos) geram dados durante a operação no campo, e alimentam o desenvolvimento dos futuros modelos. Os registros das vendas (serviços) em marketplaces são tratados para identificar regras de associação entre os itens de um pedido, operar modelos de precificação dinâmica e sugerir itens adicionais pouco antes do consumidor concluir a compra. As pessoas geram dados em suas interações digitais, como durante o uso da internet, no perfil de consumo em um marketplace ou pelo sinal de geolocalização do celular. A estratégia de dados, combinada com a arquitetura do MPD, com as soluções tecnológicas adotadas e com a cultura dos stakeholders, define em grande parte o grau de exposição aos riscos de segurança cibernética. Ao compreender que a estratégia de dados pode apontar a empresa para diferentes direções e perceber suas nuances, o CA contribui para que as deliberações da Diretoria estejam em linha com as Diretrizes Estratégicas.
(vii) Arquitetura: a etapa de design do MPD é crucial para a composição de um ambiente de negócios capaz de entregar valor aos stakeholders. A arquitetura da plataforma tem a ver com o “como” o modelo funcionará. No caso do iTunes, o formato multihoming reúne múltiplos fornecedores - outras estratégias incluem o piggybacking (WhatsApp), a integração funcional (Google), diversidade (AppleStore) ou sistemas de recomendação (Netflix). Cada escolha envolve riscos tecnológicos, legais, cibernéticos, de competição, de pessoas, cabendo ao CA monitorá-los e, no limite, deliberar sobre a aprovação da estratégia recomendada pela Diretoria.
(viii) Conflitos: a operação de um MPD abriga stakeholders com interesses complementares e, não raro, com expectativas conflitantes e até antagônicas. É o caso da presença simultânea dos representantes de diferentes canais de comercialização: representantes comerciais, distribuidores e canais de venda direta. A capacidade de antever conflitos e estabelecer regras de mitigação, contingenciamento e resolução está entre as atribuições da Diretoria. O CA deve se certificar da existência e aplicação de tal governança.
(ix) Soluções Tecnológicas: O CA atento observará se a Diretoria queimar etapas e adquirir soluções tecnológicas, antes definir proposta de valor que deve ser entregue. A tecnologia surge como um habilitador que viabiliza o modelo de negócios e sua aderência à proposta de valor é vital ao sucesso da execução da estratégia. Adicionalmente, o CA deve incentivar o conhecimento organizacional mínimo sobre os principais benefícios e aplicações das soluções de mercado mais amadurecidas. Enquanto a Diretoria seleciona as ferramentas que instrumentam o MPD, o CA acompanha o processo, com apoio dos órgãos de assessoramento. Por exemplo, em grandes projetos de RPA (Robotic Process Automation), recomenda-se o acompanhamento do Comitê de Pessoas. Outras iniciativas constituintes do Plano de Ação elaborado pela Diretoria, tais como DeFi (Decentralized Finance), Blockchain, Metaverso, Gêmeos Digitais, Criptomoedas, Segurança Cibernética, Realidade Aumentada ou varejo omnicanal, numa lista não exaustiva, pode ser conveniente o engajamento dos comitês de Gerenciamento de Riscos, Finanças, Estratégia, Inovação ou de Auditoria.
(x) Lançamento: o relacionamento institucional pode oferecer um caminho estrategicamente vantajoso ao planejar o lançamento de um MPD, como quando a Adobe conseguiu que os formulários de declaração de imposto de renda nos EUA fossem enviados em formato PDF, acompanhados de um plugin da versão Acrobat Reader. Esta abordagem, denominada seeding, permitiu alcançar milhões de pessoas rapidamente, com a credibilidade de uma instituição federal (IRS). Diferentes formatos de lançamento incluem táticas como micro-market, producer evangelism, big-bang e marquee-user, entre outras. Cabe ao CA e seus órgãos de assessoramento dominar a fluência digital necessária para interpretar o impacto destas decisões e, eventualmente, contribuir no amadurecimento do cenário selecionado.
CONCLUSÕES E REFLEXÕES
Diante do imperativo da formulação de Diretrizes Estratégicas que endereçam os desafios próprios da Transformação Digital (TD), camada adicional ao exame clássico do ambiente corporativo, os modelos de negócio baseados em Plataformas Digitais (MPD) se destacam na composição do Plano Estratégico. Neste contexto, o gerenciamento de riscos encarrega-se de uma nova cepa de ameaças e o Conselho de Administração (CA) diligente ocupa-se de decisões na fronteira do conhecimento.
De forma mais ampla, não circunscrita ao formato das plataformas, a TD fomenta o pleno acesso aos dados para o principal, o agente e partes relacionadas - mas não mitiga os vícios subjacentes à Teoria da Agência. A supressão circunstancial da assimetria de informação empodera o principal, redesenha os jogos de poder, e apenas modifica os paradoxos do conflito de agência. O CA zeloso e responsável, cuidará para adquirir a fluência digital necessária ao exercício de seu papel de preservação e criação de valor para a empresa, superando os desafios estratégicos aparentes e aqueles encobertos pela estrutura e política organizacional.
Alexandre Oliveira
é Conselheiro de Administração com foco em Estratégias e Riscos da Transformação Digital. Membro da Comissão de Estratégia do IBGC, da Agroven (Smart Money for AgTechs) e CEO da Cebralog Consultoria. Doutorando em IA nas Decisões Corporativas (Unicamp), pós-graduado Negócios Digitais (MIT) e em Finanças (Unicamp). Mestre em Supply Chain (Cranfield University).
oliveira.a@cebralog.com