Em março de 1980, me tornei aluno de Engenharia de Produção na Universidade Federal de Santa Catarina. Ali pude ter contato com algo que me despertou enorme curiosidade: o computador. Falo no singular, pois naquela época a universidade contava com apenas dois computadores, e os alunos de graduação só tinham acesso ao mais antigo. Para poder “conversar” com aquela máquina, era preciso perfurar cartões de papel. De lá até aqui, já se passaram 43 anos, e quatro momentos me parecem profundamente emblemáticos nesse caminho.
O primeiro é uma entrevista que o então jovem Bill Gates deu no programa David Letterman Show de 1995. Gates enfatiza, a um cético entrevistador, o incrível potencial da internet, e prevê como aquela ferramenta que ainda estava em estágio inicial iria transformar a vida das pessoas. Se você ainda não viu, pode facilmente encontrar o vídeo naquela internet que Gates defendia.
O segundo momento foi a vitória de uma disputa travada em 1997 entre Garry Kasparov, então campeão mundial de xadrez, e o computador Deep Blue da IBM, projetado especificamente para jogar xadrez. Apesar de todas as acusações de que a IBM teria trapaceado, nada conseguiu ser provado.
Mesmo sendo extremamente complexo, o xadrez é muito mais simples que o Go, um jogo de tabuleiro para dois jogadores criado na China há mais de 2.500 anos. Go é considerado um dos jogos mais complexos do mundo devido ao seu vasto número de movimentos e possibilidades estratégicas. Estima-se que o número de configurações possíveis no Go seja maior do que o número de átomos no universo observável – cenário que tornaria virtualmente impossível, para uma máquina, vencer a genialidade dos seres humanos.
No entanto, em 2016, a máquina venceu. O terceiro momento que destaco foi a vitória do AlphaGo, programa de computador desenvolvido pela DeepMind Technologies, sobre o campeão mundial Lee Sedol. Esse histórico desafio é retratado no ótimo documentário AlphaGo, dirigido por Greg Kohs, disponível no YouTube.
O quarto momento emblemático do avanço da computação foi o lançamento do ChatGPT. Disponibilizado em 30 de novembro de 2022, ele já é o aplicativo de crescimento mais rápido da história da internet e, em minha opinião, marca a descoberta do potencial da inteligência artificial (IA) pelo grande público. Embora esteja se popularizando agora, o campo de estudo da IA já existe há mais de meio século. Mesmo sem saber, nós temos feito uso cotidiano dessa tecnologia há pelo menos uma década.
O termo inteligência artificial foi usado pela primeira vez na década de 1950 por John McCarthy. Na década de 1980, a evolução dos computadores e o desenvolvimento de redes neurais e algoritmos de aprendizado de máquina mudaram o cenário da IA. As redes neurais foram projetadas para imitar a maneira como o cérebro humano processa informações, enquanto os algoritmos de aprendizado de máquina podem aprender com os dados e melhorar as respostas ao longo do tempo.
Na década de 2010, os algoritmos baseados em redes neurais artificiais se encontraram com os grandes bancos de dados, ou big data, permitindo que os programas de IA aprendessem com as enormes quantidades de informações disponíveis. Hoje, a inteligência artificial já é usada em uma ampla gama de aplicações, desde saúde até finanças.
Penso que o potencial de transformação no nosso modo de vida pela IA é muito maior do que o da própria internet. Quando os avanços previstos na computação quântica se entrelaçarem de forma profunda com os modelos de inteligência artificial e com as redes de comunicação ultrarrápidas, a forma como vivemos sofrerá transformações radicais.
Nas finanças, a IA vem sendo usada para detectar fraudes, fazer aconselhamento financeiro, tomar decisões de investimento e desenvolver estratégias de negociação de ativos. Como as novas tecnologias costumam ser caras, os early adopters costumam ser aqueles que mais têm dinheiro. Assim, é natural que a IA seja mais utilizada na rica e supercompetitiva indústria de fundos de investimentos.
O uso da inteligência artificial não é novidade na indústria de gestão, já ocorre há bastante tempo. Primeiro vieram os "quants", ou investidores quantitativos, que usam dados e algoritmos para escolher ações e fazer negociações de curto ou curtíssimo prazo. O Two Sigma, um fundo quantitativo em Nova York, vem experimentando essas técnicas desde sua fundação em 2001. O Man Group, uma empresa britânica com um grande braço quantitativo, lançou seu primeiro fundo de aprendizado de máquina em 2014. A AQR Capital Management de Greenwich, Connecticut, começou a usar a IA na mesma época. De lá para cá, a inteligência artificial começou a ser amplamente usada na indústria de gestão, inclusive, no Brasil.
Apesar da expansão, não se trata de um caminho tranquilo. Há pelo menos três grandes empecilhos para a utilização da IA na gestão financeira. Em primeiro lugar, existe um natural receio dos donos do dinheiro em confiar nas máquinas. Assim, mesmo que muitos fundos utilizem programas robôs para apoiar a execução das suas estratégias, não são todos que reconhecem utilizar esse suporte.
Aqui, é importante separar o suporte da total delegação da gestão a uma inteligência artificial. Para exemplificar, vamos retomar a polêmica em torno da vitória do Deep Blue sobre Garry Kasparov. Na época, a acusação era de que teria havido interferência humana nas decisões do jogo. Para considerarmos que algum fundo é gerido pela IA, teríamos que admitir que todas as decisões são tomadas de forma autônoma sem nenhuma interferência humana, o que é difícil de pensar que exista na indústria de gestão neste momento. Uma das atuais características da inteligência artificial é ter “alucinações”, ou seja, gerar informações totalmente falsas – em um sistema de gestão, isso poderia gerar efeitos desastrosos. Então o que temos hoje são fundos geridos com utilização de sistemas de IA.
Nesse cenário, se um fundo baseado em aprendizado de máquina pode ser barato para administrar, costuma ser difícil de vender. Afinal, poucas pessoas entendem os riscos envolvidos, e quem se aventura nesse campo precisa gastar muito para explicar aos clientes o que as máquinas estão fazendo. Com a disseminação da IA, essa barreira tende a diminuir.
Um segundo ponto intranquilo na utilização da inteligência artificial na gestão financeira envolve a própria natureza das variáveis. Enquanto é muito fácil estabelecer uma competição direta entre um campeão mundial de xadrez ou de Go e um robô, é muito difícil saber quem está ganhando na disputa entre máquinas e humanos no mercado financeiro.
Um terceiro ponto é que, enquanto as competições de xadrez e Go foram travadas entre um humano e um computador, na indústria de fundos elas podem ser travadas entre duas IA diferentes, que podem sofrer a interferência de gestores humanos.
Entre desafios e possibilidades, a introdução da inteligência artificial na multimilionária indústria da gestão tem sofrido avanços e retrações ao longo do tempo. É mais um cabo de guerra entre humanos e máquinas. O fato é que a competição vem ficando cada vez mais difícil para os gestores humanos. A força bruta das máquinas provavelmente vai tomar cada vez mais espaço. Elas venceram Kasparov, elas venceram Lee Sedol, provavelmente vencerão o mercado.
Em cada momento que vejo uma máquina derrotando um humano, me sinto angustiado e triste. Porém, me consolo com a ideia de que máquinas são projetadas por humanos geniais.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br