A crise COVID-19 tem apresentado às empresas e demais organizações grandes desafios de curto, médio e longo prazos, que impactam sua governança corporativa e, de forma mais ampla, a gestão das operações organizacionais. Várias perguntas sobre a pandemia per se ainda seguem sem resposta neste momento em que escrevemos, tais como: quando será possível retornar à mobilidade anterior? Será preciso esperar semanas, meses, anos? Haverá a necessidade de novos períodos de distanciamento social, além do inicial? A ciência conseguirá achar um atalho científico para uma nova vacina, segura e eficaz, sem passar pelos protocolos tradicionais?
Estas e outras perguntas, em diferentes formatos, estão nas mentes de muitas pessoas, já que a pandemia é um evento global, que veio no bojo da globalização dos tempos contemporâneos, a qual alcança escala jamais imaginada durante as grandes navegações – e mesmo há alguns anos. E existem muitas perguntas mais específicas, em várias áreas de conhecimento e setores econômicos, sobre o que se tem chamado de novo normal. Como será esse novo mundo que não compreendemos bem, já que a pandemia ainda está em curso e parece longe de ser um capítulo do passado?
Exemplos ajudam a tornar dúvidas mais explícitas, especialmente se baseados em novas perguntas. Exemplifiquemos, primeiramente com a Economia e consideremos a paralisação de muitas atividades, que já elevou substancialmente o desemprego e a falta de trabalho daqueles que não têm carteira assinada. O que será feito a respeito se houver a necessidade de vários períodos de isolamento? Países têm adotado mecanismos para não permitir que milhões de pessoas passem fome; eles seguirão sendo usados? Se positivo, como? E quanto ao elevado endividamento esperado de vários países, empresas e pessoas físicas? Como tal questão será enfrentada, especialmente quanto aos seus impactos sobre a atividade econômica, já fortemente combalida pela paralisação em várias frentes? Em que medida os estados nacionais intervirão para evitar a morte de grandes, médias e pequenas empresas?
Passemos, a seguir, ao Direito: como as regras do jogo formais – Constituição Federal, leis e outros dispositivos legais – estão sendo e continuarão sendo afetados pela crise COVID-19? Novos direitos sociais poderão ser considerados legalmente mais importantes do que certos direitos individuais existentes?No que se refere ao direito à mobilidade, isto é, de o cidadão ir e vir, o que advirá? E com respeito a restrições de cunho mais delongado à mobilidade de cidadãos entre países, que possam encarecer atividades internacionais? Quando houver uma vacina segura e eficaz, as pessoas serão obrigadas a tomá-la, em benefício da coletividade? Espera-se que queiram se vacinar, mas seres humanos costumam ser mais complexos do que supõem as visões sobre sua racionalidade.
A nosso ver, entramos em uma outra fase da história da humanidade. Não, os historiadores não criaram uma Idade Pós-contemporânea, já que ainda estamos, oficialmente, na Idade Contemporânea, iniciada em 1789 com a queda da Bastilha na França, um dos marcos mais importantes da história da Europa Ocidental e da humanidade. Entretanto, diante de uma pandemia disseminada pelo Planeta e com tantos impactos sobre as atividades humanas, não resta dúvida de que entramos em uma fase nova e ainda desconhecida. Ainda que haja vários sinais importantes sugerindo mudanças na vida e no trabalho, algumas das quais comentadas em edições recentes desta Revista RI.
Mesmo diante de tantas incertezas e perguntas importantes sem respostas, neste artigo, propomo-nos a fazer uma breve reflexão sobre governança corporativa em tempos de COVID-19, com visão de curto, médio e longo prazos. Esperamos que esta seja uma contribuição para que os leitores possam refletir sobre o momento presente e sobre o que muitos de nós podemos fazer para lidar com o presente e criar o futuro.Assim sendo, indagamos: como a governança corporativa deve enfrentar a crise COVID-19 no curto (final de 2020), médio (final de 2022) e longo prazos (após)?
Para ajudar a responder à questão anterior, ouvimos seis executivos de grandes empresas, em dois momentos, procurando imaginar quais seriam os grandes temas de uma agenda de enfrentamento da crise COVID-19. No primeiro momento, identificamos quatro: princípios, prontidão, priorização e comunicação. Posteriormente, emergiram modelo de negócio & estratégia e o modelo de gestão. Não há priorização entre esses seis temas, já que todos foram percebidos com a mesma relevância. Vejamos, a seguir, a síntese do que os profissionais ouvidos consideram sobre esses temas, segundo nosso entendimento.
1. Princípios
A crise COVID-19 coloca os integrantes do conselho de administração, fiscal e da diretoria executiva frente à necessidade de firmeza em relação aos princípios éticos organizacionais. Os executivos destacaram a importância dos princípios de governança corporativa – transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa bem como de outros considerados válidos pelos dirigentes das organizações. Esses princípios são vistos como uma espécie de farol que guia as organizações em um oceano revolto.
Variadas foram as situações citadas, a curto, médio e longo prazos, nas quais o apego aos princípios ajuda nas decisões corporativas. No curto prazo (2020), algumas posturas éticas foram consideradas fundamentais, tais como:
Para o médio e longo prazos, identifica-se, além das posturas anteriores, a necessidade de reforçar a redação dos princípios, enfatizando-se a responsabilidade social e o comprometimento com uma nova ordem, mais justa e correspondente a um mundo melhor. A percepção é que a responsabilidade corporativa criará inspiração para fazer as perguntas certas sobre vários temas, bem como para criar respostas aderentes ao que necessita ser feito para um futuro com mais solidariedade e menor desigualdade social.
2. Prontidão
No que diz respeito à prontidão, o curto e o médio prazos emergem como primeira necessidade, especialmente o primeiro. Os integrantes da Alta Administração – conselheiros de administração e diretores executivos – devem estar integralmente disponíveis para ajudar a organização a tomar decisões e a viabilizar medidas necessárias.
Adicionalmente, a Alta Administração deve garantir a prontidão de todos os líderes e profissionais críticos para suas decisões, tanto na preparação das mesmas quanto em sua implementação. Eventuais substitutos devem ser previstos para os casos em que os titulares não puderem ajudar.Todos os líderes organizacionais devem estar de prontidão.
A prontidão de curto prazo não se refere apenas a decisões da cúpula organizacional, mas também à saúde de todos os colaboradores, da base ao topo, durante a pandemia. A tempestividade na busca do nível zero de contaminação de colaboradores, ainda que pareça utopia, deve ser a meta.
Saber tratar com tempestividade as emergências diversas que podem surgir, entre físicas, psicológicas e de outras ordens, é fundamental. Nem todos os colaboradores em condição de isolamento social podem reagir bem a essa condição, muito importante para evitar contaminação. É preciso criar protocolos responsáveis, acompanhar caso a caso e aprender com o processo.
Adicionalmente, racionalidade e criatividade, dos quais tratamos nas duas mais recentes edições desta coluna na Revista RI, despontam como elementos imprescindíveis de curto prazo para que se possa enfrentar o momento. As organizações precisam das ideias de várias pessoas para que possam atravessar o oceano revolto.
No que tange ao médio e longo prazos, a prontidão emerge como preocupação em relação à evolução da pandemia e à necessidade de continuidade do modus operandi acima citado.Ou quanto à hipótese de novos períodos de isolamento social, sendo preciso contar com essa possibilidade. Se ocorrer, espera-se que seja sem as atribulações do primeiro momento da crise COVID-19. Há, de fato, preocupação sobre o médio e longo prazos, ainda que o curto prazo ocupe, em um primeiro momento, bem maior atenção.
3. Priorização
No que tange à priorização do que deve ser feito e dos projetos a serem implementados, a gestão de riscos emerge como ferramenta básica para identificar e elencar o que precisa ser feito de pronto ou mais adiante. Nesse sentido, é preciso clareza sobre riscos que podem, em um cenário extremado, encerrar a existência da organização. Aliás, organizações melhor estruturadas na gestão de riscos – e na gestão de crises, uma gestão de riscos com maior nível de criticidade – tendem a ter melhor desempenho na travessia do oceano revolto.
Há várias formas de classificar os riscos incorridos por uma organização, mas em tempos de crise COVID-19, há dois que emergem com maior força: os riscos operacionais e os financeiros. Os primeiros estão associados às operações, à segurança e à cadeia produtiva. Além da saúde física e mental dos colaboradores (prioridade zero), é preciso pensar na cadeia na qual a organização está inserida, sendo necessário precisar quais atividades não podem parar, sejam estas continuadas à distância ou presencialmente. Quanto aos riscos financeiros,a frase cash is king, clássica de Finanças Corporativas, é absolutamente apropriada à crise COVID-19.
A priorização está profundamente relacionada à seara financeira, a curto, médio e longo prazos, ainda que o foco inicial seja o curto prazo. É preciso proteger receitas e buscar dilatar cronogramas de despesas, usando prerrogativas que as regras legais permitirem, renegociando contratos com clientes, fornecedores, provedores de capital e, se preciso for, contratando dívidas,sempre com boa dose de racionalidade.
Adicionalmente, práticas como projeções financeiras e revisão permanente de cenários de médios a conservadores são altamente recomendadas. Raciocinar com cenários otimistas, diante de tantas incertezas, mesmo torcendo pelo melhor, não parece recomendável. O planejamento econômico-financeiro das organizações, mais do que nunca, se torna crucial como grande ferramenta que assegurará o acerto nas decisões de priorização.
Por fim, em tempos de crise COVID-19, a contribuição organizacional para a sociedade, definida na esfera dos princípios, também precisa ser tratada como prioritária. Há grande necessidade de ajuda a muitas pessoas – várias das quais não têm como se sustentar ou se proteger contra a crise – e é preciso decidir-se quanto às lógicas da filantropia e da responsabilidade social (ajuda mais associada à cadeia produtiva e às atividades da organização), conforme dito antes. A longo prazo, a lógica certamente é a da responsabilidade social.
4. Comunicação
No que tange à comunicação de curto e médio prazos, a crise COVID-19 muda a dinâmica da comunicação de praxe entre o conselho de administração, o conselho fiscal e os executivos das organizações. Quando existe normalidade, tal comunicação se dá disciplinadamente, consoante cronogramas de reuniões entre tais instâncias, com substancial formalização.
Entretanto, a crise exige uma dinâmica diferente, coerente com o momento, permitindo, de modo tempestivo, avaliações e decisões com eficácia. As reuniões da Alta Administração se tornam menos formais e, aliás, devem contar, sempre que pertinente, com a participação de profissionais que possam ajudar a tomada e a operacionalização de decisões, entre profissionais da organização e/ou consultores externos.
Ainda no que concerne aos curto e médio prazos, a Alta Administração deve garantir também comunicação de boa qualidade com todos os públicos stakeholders. A comunicação com ação com esses públicos precisa ser cuidadosa, mas também tempestiva, já que em vários momentos, não será possível esperar, ou esperar demais.
E quanto à comunicação de longo prazo? Esta é uma pergunta interessante, pois os executivos ouvidos acreditam que ela será afetada. Um bom nível de formalização das reuniões da Alta Administração não deixará de ser importante, mas, ao mesmo tempo, o passado pré-crise COVID-19 talvez não retorne, tal como era antes. A Alta Administração das empresas evoluirá para um nível de maior interação e preocupação com os curtos e longos prazos em sua comunicação futura.
Uma executiva fez um alerta, que vale para o curto, o médio e o longo prazos: é preciso que as lideranças da organização atentem ao bom uso de redes sociais e de aplicativos para dispositivos móveis e fixos, orientados à criação de grupos. A palavra impensada expressa em um dado momento, que cause a impressão de desrespeito à vida ou às boas práticas profissionais, pode assombrar líderes organizacionais por longo tempo.
5. Modelo de negócio& estratégia
Antes de comentar a visão dos executivos ouvidos sobre este ponto, cabe fazer uma distinção entre modelo de negócio e estratégia, pois esses conceitos são distintos. De modo resumido, um modelo de negócio é a descrição da lógica de criação e entrega de valor ao cliente por um fornecedor. É por meio do modelo de negócio que o empreendedor-fornecedor entende a fonte do lucro e do retorno sobre o capital investido; porém, a partir da ótica de quem estiver disposto a adquirir os produtos e serviços que ele oferece. E ele oferece mais do que esses itens, já que cada produto ou serviço tem benefícios importantes subjacentes. Exemplificando: quem adquire um automóvel, adquire, no fundo, atributos como mobilidade, praticidade, conforto, segurança, status e muito mais.
Quanto à estratégia, esta descreve o caminho de sucesso para que a organização consiga cumprir sua missão e alcançar a visão estabelecida por seus sócios e dirigentes. Se o modelo de negócio determina que a fonte de valor dos clientes de um empreendedor-fornecedor de automóveis corresponde aos atributos acima citados, a estratégia preconiza que para o negócio crescer até que alcance a liderança de mercado em, por exemplo, até 10 anos, será necessário um elenco de projetos estratégicos.
Naturalmente, boas estratégias requerem bons modelos de negócios, para serem bem-sucedidas. O modelo de negócio, nesse sentido, para a estratégia, pode ser percebido como uma espécie de plataforma, com base na qual estratégias serão construídas, implantadas e acompanhadas. Ao mesmo tempo, más estratégias podem prejudicar, na prática, bons modelos de negócio e isso ocorrerá se, em sua implementação, o valor percebido pelos clientes, expresso nos atributos intangíveis supracitados, declinar.
Feita esta distinção, observa-se que o momento, segundo os executivos ouvidos, é de revisão profunda dos modelos de negócios e das estratégias das organizações. O chamado novo normal implicará modificar ou descontinuar negócios, além de iniciar novos negócios. Dificilmente os negócios instalados passarão incólumes pela crise COVID0-19. E o novo normal implicará também novas estratégias, novos caminhos de sucesso para negócios existentes ou novos.
Discussões sobre modelos de negócios e estratégias podem ser feitas com focos de curto, médio e longo prazos, mas, para os executivos ouvidos, o foco foi o médio e longo prazos. Eles sugeriram que as organizações mantenham uma equipe à parte, em paralelo, para refletir sobre o pós-crise COVID-19, sob orientação e monitoração dos dirigentes. Estes, por seu turno, devem estar em status de prontidão para esse desafio. A sugestão provavelmente reflete o que várias organizações têm feito neste momento.
Dada a grande densidade de conteúdo associada a esses temas, vale a pena retornar aos modelos de negócios e às estratégias em artigo futuro
6. Modelo de gestão
Por fim, há que considerar o modelo de gestão que não deve ser confundido com o modelo de negócio e cujo conceito temos tratado à exaustão nesta seção.
Os executivos por nós ouvidos acreditam que os modelos de gestão mudam com a crise COVID-19. Primeiramente, a curto e médio prazos, por meio do uso intenso de tecnologias, visando criar jornadas de trabalho digitais para parte das atividades empresariais, ao lado de jornadas físicas para a outra parte. Ponto de atenção: nem todos os colaboradores se adaptarão com a jornada digital em bases permanentes, mesmo com o apelo de uma possível maior convivência com a família, e apenas o tempo mostrará como equilibrar preferências.
Em segundo lugar, vislumbra-se, para o longo prazo, a revisão dos princípios éticos, inicialmente mencionada. No primeiro caso, com maior ênfase em responsabilidade social e comprometimento com uma nova ordem, com a construção de um mundo melhor.
Em terceiro lugar, as pessoas por nós ouvidas, em referência à governança corporativa, acreditam que várias práticas vêm mudando a curto prazo e seguirão mudando, a médio e longo prazos, como por exemplo, a comunicação no contexto da Alta Administração.
Ao mesmo tempo, a crise não pode nem deve ser usada para deixar de respeitar os quatro princípios básicos de governança: transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa. Para os executivos ouvidos, a crise COVID-19 e seus desdobramentos não podem servir como desculpa para reduzir a qualidade do sistema de governança, mas devem ser usadas para – ao contrário – melhorá-la, tornando-a mais ágil, focada no futuro e valorizando tanto a visão de curto, quanto a de médio e longo prazos.
O artigo da edição anterior explorou longamente a crise COVID-19, à luz dos conceitos de Orquestra Societária e Modelo de Gestão Sustentável (MGS), que temos desenvolvido nesta Revista RI desde março de 2014, e recomendamos sua leitura. Cremos que a crise COVID-19 evidencia a necessidade de que os modelos de gestão contenham o gene da resiliência e acreditamos que esse gene esteja presente na Orquestra e no MGS. Resiliência, mais do que nunca, é preciso. Talvez ela deva, inclusive, ser um princípio organizacional claramente expresso.
Finalizamos este artigo desejando aos nossos leitores e às suas famílias muita paz e saúde nesta travessia chamada crise COVID-19. Que todos nós possamos seguir contribuindo com ideias e práticas para a construção de um mundo melhor.
Cida Hess
é economista e contadora, especialista em finanças e estratégia, mestre em contábeis pela PUC SP, doutoranda pela UNIP/SP em Engenharia de Produção - e tem atuado como executiva e consultora de organizações.
cidahessparanhos@gmail.com
Mônica Brandão
é engenheira, especialista em finanças e estratégia, mestre em administração pela PUC Minas e tem atuado como executiva e conselheira de organizações e como professora.
mbran2015@gmail.com