Quando eu tinha 10 anos perdi meu pai em um acidente de carro. Minha mãe, muito jovem, ficou com três filhos homens para criar, dos quais eu sou o mais velho. Naturalmente, ela tinha medo do inevitável momento em que eu iria dirigir um automóvel.
Só fui tirar minha carteira me aproximando dos 20 anos, graças ao apoio de uma tia querida e muito importante em minha formação. Talvez por ter começado a dirigir tarde, ou por obra do acaso, sou péssimo motorista. Aquele que é chamado popularmente de barbeiro.
Meu primeiro carro foi um Opala já com bastante uso. Quem é de minha geração sabe que a estabilidade nunca foi o forte daquele carro. Um dia, fazendo uma curva, o veículo saiu rodando desgovernado e parou aparentemente intacto em um canteiro. Só quando consegui fazer com que minhas pernas parassem de tremer, pude ligar o velho Opala, que saiu dando pulos estranhos. Na oficina descobri que os pulos eram resultado da suspensão totalmente danificada. Aqui, peço licença a você leitor para deixar meu Opala quebrado em banho-maria e entrar realmente no assunto deste artigo.
No dia 26 de abril estava lendo a Folha de São Paulo, quando me deparei com a foto da Thaís Araújo na coluna da Mônica Bergamo. Thais, com uma honestidade que me emocionou profundamente, falou do seu momento e de sua casa durante o confinamento resultante da pandemia do COVID-19.
Tomo a liberdade de transcrever aqui partes da sua fala: “De uma coisa eu sei que não preciso: de uma casa deste tamanho. Mesmo. – Quando a gente comprou a casa, ela dizia respeito às nossas vitórias. Era a concretude das nossas conquistas. De dois negros que venceram pelo trabalho, pelo estudo, pela dedicação, num país que tudo estava ao contrário pra gente. E a gente queria dividir tudo isso com a nossa família, com nossos amigos, receber todo mundo aqui. – Quando compramos, andamos pela casa inteira. Na área de serviço, o Lázaro dizia ‘eu saí daqui’. A mãe dele foi empregada doméstica. Ele chorava, eu chorava. – Mas o símbolo das nossas conquistas não precisava ser uma casa. A gente não precisa disso tudo”.
Muitas pessoas cometem o mesmo erro da Thaís Araújo e do Lázaro Ramos, poucos têm a coragem de assumir o erro de forma tão honesta.
Na obra “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, o Pequeno Príncipe pergunta à raposa o que quer dizer "cativar". A raposa responde que cativar significa criar laços, passar a ter necessidade do outro. Depois de algumas passagens a raposa profere uma das frases mais conhecidas do livro: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”
Na primeira versão para o português, Marcos Barbosa traduz o verbo apprivoiser, que significa domesticar ou domar por cativar, e o advérbio toujours por eternamente, o que resultou na conhecida frase: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
A frase denota uma crítica ao individualismo e nos coloca como responsáveis por aqueles de quem nos aproximamos. Eu vou me apropriar dessa conhecida expressão dos relacionamentos para falar de economia e de nossas relações de consumo. Somos responsáveis pelos bens que conquistamos, não eternamente, mas enquanto os temos, levando em conta que tudo aquilo que possuímos também nos possui.
Quem é dono de um carro de luxo se torna responsável por ele, quem é dono de uma casa imensa é encarregado de cuidá-la, quem é dono de uma bela joia é responsável pelo seu zelo. Ter uma imensa fortuna pode trazer muitas facilidades na vida, porém é certo que ela também nos trás imensa responsabilidade.
Essa relação pode parecer óbvia, entretanto, nem sempre percebemos quando estamos assumindo esses compromissos. Parece que somos programados geneticamente para querer sempre mais, uma casa maior, um carro melhor, mais zeros em nossas contas bancárias.
Quanto mais bens temos, mais responsáveis somos, mais obrigações temos com nossos bens, mais horas eles nos cobram. Talvez a parada que estamos tendo que encarar pela necessidade de isolamento, resultante da pandemia, possa nos levar a uma reflexão. Quais são nossos bens que melhoram, de fato, nossa vida? Quais de nossos bens nos cobram um preço que deixou de fazer sentido?
Eu gosto muito de fazer ciclo turismo e um dos momentos mais delicados de uma viagem é definir a carga que vai nos alforjes; se coloco muitas coisas, a pedalada vai consumir muita energia e pode até acabar com o prazer. Se colocar muito pouco, é possível sofrer desagradáveis restrições pelo caminho.
Acredito que deveríamos dar tanta atenção para os bens que adquirimos em nossa vida como a atenção que dou ao montar meus alforjes na bicicleta. No entanto o que governa a vida da maioria das pessoas é ter sempre mais, quanto mais melhor.
Agora voltando ao meu velho Opala, depois dele tive alguns outros carros velhos que se tornavam ainda piores porque eram usados como automóveis de trabalho em minha fábrica de reciclagem de plástico. Muito rapidamente eles assumiam um odor de peças usinadas misturado a óleo diesel e outros desagradáveis aromas que nunca consegui definir.
Quando vendi minha fábrica fui até uma concessionária Volkswagen para ver o carro dos meus sonhos, um Gol GTI; saí para fazer um test drive e na mesma curva em que tinha rodado com meu velho Opala o vendedor me falou: “acelera, você merece este carro!”. Minhas pernas começaram a tremer, e a possibilidade de colocar quase toda a poupança conquistada em seis anos de trabalho duro nas mãos de um motorista tão inapto como eu me pareceu absurda.
Quando entreguei o carro na concessionária e peguei meu velho Fiat 147 comecei a pensar nas razões que me levavam a querer aquele carro. Não era pelo carro em si, pois nunca gostei de dirigir. O que aquele carro significava era a concretude do que parecia ser o sucesso financeiro de um menino que perdeu o pai e passou por grandes dificuldades financeiras. Aquele carro que eu pretendia comprar não era um carro, era um colar que eu poderia usar e mostrar aos outros como fruto de meu sucesso.
Felizmente consegui dizer não a tempo e não empenhei minhas reservas em um falso símbolo de sucesso. Apesar de ter feito a melhor escolha no episódio do carro, alguns anos mais tarde, quando construí a minha casa, incorri no erro do quanto mais melhor. Hoje me percebo, assim como Thaís, morando em uma casa maior do que preciso.
Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br