A tecnologia no mercado de capitais foi um dos temas discutidos durante o Web Summit Rio 2023, realizado no mês passado, de 1 à 4 de maio, no Rio de Janeiro. Considerado o maior evento de tecnologia e inovação do mundo, o encontro reuniu durante quatro dias mais de 21 mil pessoas diariamente de 91 países diferentes, sendo 40% mulheres. Foram 400 palestrantes, 974 startups e 506 investidores participando do encontro no Riocentro. Com ingressos esgotados, a primeira edição do evento fora da Europa foi palco de debates sobre ciências de dados, educação, comércio eletrônico, futuro do trabalho, alterações climáticas, meios de comunicação, entre outros tópicos. A expectativa da prefeitura é movimentar R$ 1,2 bilhão na economia carioca até 2028, com as seis edições previstas.
Ao longo das últimas décadas, a tecnologia tem sido uma importante aliada das empresas nos mais diversos setores da economia, contribuindo para processos mais eficientes e pela redução de custos. Essa revolução começou no fim dos anos 1990, com a chegada do e-commerce e o interesse de gigantes como a Amazon e o eBay pelo sistema. À época, muitas empresas lançaram ações na Bolsa de Valores e novos modelos de negócios foram criados.
Já nos anos 2000, a discussão era em torno do home banking. À época, havia um medo generalizado em relação à segurança das transações bancárias pela internet. Quase 30 anos depois, sabemos que não só a tecnologia, mas a conectividade transformou o comércio mundo afora e já não há mais a mesma preocupação em relação à segurança bancária no universo virtual. Agora, novas tecnologias prometem revolucionar novamente a economia, com soluções inovadoras e, muitas vezes disruptivas, transformando as rotinas do mercado de capitais e ampliando as formas de investir recursos, permitindo a diversificação de carteiras e a mitigação de riscos para investidores nacionais e estrangeiros.
“Cada vez mais tecnologia é importante em absolutamente tudo. Está presente em tudo, na nossa forma de viver e trabalhar e não podia ser diferente no mercado de capitais”, comenta o economista Ricardo Amorim. Ele considera que o primeiro impacto está na própria forma de buscar financiamento para as empresas. “A tecnologia pode ser usada para chegar numa base mais ampla potencial de investidores”, afirma. O segundo aspecto, elenca o economista, está em manter a comunicação ativa. Está cada vez mais fácil manter contato com a base de investidores de uma forma mais estreita e a tecnologia possibilita isso porque ela dá escala à mensagem que está sendo disseminada. “Há um outro aspecto, que é em termos relativos, ao longo dos últimos anos um movimento onde as empresas de tecnologia passaram a receber parcelas maiores dos investimentos e representar participação cada vez maior nas Bolsas mundo afora”, complementa Amorim.
O uso da tecnologia no mercado de capitais contou com debates e destaque em estandes como o da B3, a Bolsa de Valores brasileira, da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais), de bancos e diversas startups. Segundo especialistas presentes no evento, o Brasil, está na vanguarda da digitalização e a educação financeira é pilar fundamental para o aumento de investidores no mercado de capitais nacional.
Aos poucos, a tecnologia já vem contribuído para a democratização dos investimentos. Para se ter uma ideia, entre 2018 e 2022, o número de investidores em renda variável no Brasil saltou de 800 mil para cerca de 5 milhões e a modernização dos sistemas de capitais têm garantido maior capacidade de escala e contribuído com o suporte necessário para a entrada de mais investidores no mercado. “Além disso, melhorias na experiência do cliente facilitaram a entrada de novos investidores. Vale mencionar também as ações de educação financeira que têm preparado as pessoas para a realização de investimentos, e a tecnologia faz com que mais pessoas consigam ser impactadas”, avalia Marcos Albino Rodrigues, superintendente de arquitetura de TI, governança e inovação (CTO) da B3.
De fato, a transformação digital tem se inserido no mercado de capitais de diversas maneiras. Entre elas, cita Rodrigues, a metodologia de trabalho, com frameworks ágeis, times multidisciplinares trabalhando em conjunto, melhorias de processos para que a entrega seja mais contínua sem afetar a resiliência, e investimento em tecnologias como nuvem, dados, inteligência artificial, APIs, microsservicos, entre outras. “Com o uso de novas tecnologias como computação em nuvem que nos permite ter escala e resiliência, além do uso de inteligência artificial, cada vez mais o mercado de capitais tende a trabalhar melhor o perfil individual de cada cliente e assim ofertar melhores produtos para o investidor”, considera o representante da B3. Além disso, no aspecto de ESG (Ambiental, Social e Governança Corporativa), a tecnologia também permite diversas iniciativas desde um consumo mais eficiente de energia até preparo educacional usando inteligência artificial para que as pessoas aprendam a investir melhor.
Para os profissionais de RI, por sua vez, os avanços tecnológicos tendem a otimizar processos e a potencializar a tomada de decisão estratégica das empresas brasileiras. “Diminuir tempos e distâncias na circulação de dados e informações é fator crítico para a excelência de programas de RI de companhias abertas ou fechadas”, diz André Vasconcellos, CFO e DRI da Rio Securitização e diretor adjunto-RJ do IBRI (Instituto Brasileiro de Relações com Investidores).
Para Amorim, que mediou um dos painéis do Web Summit Rio, o uso de tecnologia no processo de captação por parte dos RIs ainda está engatinhando em relação a como ela é usada em todas as outras funções. “Uma mudança marcante que aconteceu em outros setores foi que no pós-pandemia a possibilidade de ter reuniões mais frequentes via teleconferência se tornou uma realidade. E, com isso, você tem um mercado mais globalizado. Antes precisava visitar os investidores e isso criava dificuldade, tinha barreira maior para ter uma base de captação mais ampla e global. Isso caiu. O mercado de capitais ficou mais globalizado por conta de uma evolução tecnológica”, destaca Amorim.
TENDÊNCIAS
Algumas das tendências já estão sendo observadas e adotadas pelo mercado de capitais e foram discutidas durante o Web Summit Rio. Marcelo Billi, superintendente de comunicação, certificação e educação de investidores da Anbima, considera que dois grandes temas foram prioritários nas discussões durante o evento e que devem ser também tendência daqui para frente. “A gente viu a inteligência artificial invadir todas as conversas e pautar as reflexões que estavam sendo feitas durante o evento”, diz Billi ao destacar ainda as discussões envolvendo diversidade. As novidades não param por aí, destaca ele. “Outro tema com viés no nosso mercado foi a criptoeconomia, estratégia de investimento que está em período de reflexão. Vimos lá uma discussão mais estrutural das ferramentas, tecnologia e uso das criptomoedas e do blockchain”, comenta ao lembrar que o próprio Banco Central está discutindo a moeda digital.
Vale lembrar que no fim do mês passado, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, revelou que a moeda digital deverá ser lançada até 2024. Em entrevista á GloboNews, ele disse que os bancos brasileiros estão empolgados com a novidade. “A moeda digital é um processo onde o banco bloqueia um depósito e emite um token, ou seja, emite um certificado digital em cima daquilo. Os bancos estão muito entusiasmados com a ideia da moeda digital porque vai ajudar a digitalizar o processo bancário”, disse Campos Neto à época.
Três tipos de ativos devem ser tokenizados pelo Banco Central: a moeda brasileira (real), os depósitos bancários e os títulos públicos federais. “Tem uma ebulição no nosso mercado em torno das possibilidades da tecnologia blockchain no mercado como um todo e, na prática, a gente está num período que todo mundo está descobrindo essa tecnologia e testando para várias coisas”, diz Billi.
Além da inteligência artificial e blockchain, o Banco do Brasil também está de olho e investindo em cloud, sistema que permite, ao implementar algo em nuvem, conectar mais parceiros, conforme conta Pedro Bramont, diretor de negócios digitais & open finance do BB. Com dois estantes no Web Summit, o executivo aponta que realizou mais de 12 reuniões com startups. “Foi um evento muito rico e parrudo para o Brasil”, avalia. Para Bramont, a tecnologia contribui para democratizar o acesso ao mercado de capitais e os assistentes virtuais podem oferecer recomendações interessantes. “E o blockchain é fundamental porque permite fracionar algo e comercializar para várias pessoas”, comenta.
A investidora-anjo argentina Claire Diaz-Ortiz, participante do evento, destacou a importância do Web Summit como uma das maiores conferências de tecnologia e um grande construtor de ecossistemas. “Acredito que o movimento para criar eventos em mercados emergentes será um dos momentos mais decisivos no futuro para a conferência. Isso ocorre porque nos mercados emergentes temos menos opções para eventos presenciais de alta qualidade em torno de startups, do lado de fundadores e financiadores de tecnologia”, destaca Claire, que é também autora, capitalista de risco e uma das primeiras funcionárias do Twitter, contratada para liderar a inovação social. Mesmo considerando a importância do tema, ela reforça que a tecnologia e a inovação não são nada sem o trabalho das pessoas, e um dos pontos fortes de muitas culturas no sul global é a capacidade de priorizar as pessoas em detrimento da produtividade. A América Latina está bem posicionada para assumir a liderança em mostrar que as melhores empresas se constroem a partir de relacionamentos de qualidade. “Como capitalista de risco e autora, e trabalhando em um novo livro sobre mulheres fundadoras e financiadoras, amei a participação de tantas mulheres fundadoras no Web Summit (as taxas de participação das mulheres foram de cerca de 40%)”, diz.
DESAFIOS
A implementação de tecnologia no mercado de capitais passa por alguns desafios e o principal deles deve ser o da privacidade. “Todas as tecnologias estão embasada em dados e uso de dados. Então, tem que ter políticas claras para entender e educar os funcionários porque compartilhar dados de maneira descuidada pode implicar em muitos riscos”, alerta Billi. “Outro aspecto é de inclusão. Ficou muito mais fácil acessar essas máquinas para pessoas que já estão incluídas, que já tem acesso à internet, celular, mas como é que se educa as pessoas?”, questiona o representante da Anbima. Para ele, a tendência é que o gap digital e educacional deve ficar ainda mais evidente.
Para André Vasconcellos, “as múltiplas oportunidades apresentadas no Web Summit Rio reforçam que os conceitos da ‘nova economia’, bem detalhada no best-seller de Diego Barreto (Nova Economia: Entenda por que o perfil empreendedor está engolindo o empresário tradicional brasileiro), é uma realidade mundial que implica em medidas urgentes e efetivas no cenário nacional. Vale ressaltar que o emprego de inovações racionais aos desafios do futuro permite derrubar custos de transação, além de oferecer mais eficiência e transparência aos sistemas de precificação”.
Ele afirma que a crescente sofisticação tecnológica no contexto empresarial impõe, de fato, novos desafios e também novas oportunidades não só para os profissionais de RI, como também para todos os executivos envolvidos no amplo ecossistema do mercado financeiro. O próprio crescimento dessa complexidade operativa no mercado de valores mobiliários abre novas oportunidades de negócios, uma vez que demanda ainda mais investimentos em tecnologias que possibilitem gerir de modo minimamente eficiente e seguro as operações financeiras transacionadas.
FUTURO
“A Bolsa do futuro garantirá a capacidade de receber cada vez mais novos investidores dada a modernização tecnológica que está sendo realizada”, diz Marcos Rodrigues, da B3. Ele cita como exemplos a Clearing de Câmbio e a Nova Depositária na Nuvem. “Cada vez mais teremos produtos de dados sendo ofertados para os nossos clientes, pois é um pilar de novos negócios que perseguimos. Outro pilar de atuação é no tema ESG, buscamos uma empresa que contribui para os aspectos de ambiente, sociedade e governança, cobrando de nós mesmos ações que mitiguem as desigualdades sociais usando tecnologia para alavancar estas frentes”, complementa. Ele reforça que os benefícios da tecnologia são diversos e cita a maior capacidade para receber negociações sem impactar os clientes, maior velocidade para entrega de novos produtos, operação mais eficiente e segura, além de produtos mais alinhados às necessidades das pessoas. “Podemos citar também a conectividade, capaz de aproximar o ecossistema e gerar oportunidades de novos negócios e soluções”, afirma.
A tecnologia permitiu à Laqus a criar um modelo de negócios. A fintech de tecnologia, especializada em tesouraria e gestão de risco, garante o acesso das empresas ao mercado de capitais. Em junho de 2021, a Laqus obteve a homologação junto à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para atuar como Central Depositária de Recebíveis do Agronegócio (CRA), sendo a única companhia além da Bolsa de Valores paulista autorizada a operar neste mercado, conforme explica o COO da empresa, Carlos Roveran. “O nosso propósito é simplificar relação entre investidor e emissor no mercado de capitais, que tem uma relação complexa e pouco tecnológica. Fomos descobrindo a necessidade das empresas não financeiras (os emissores) e construindo ferramentas para fazer a gestão financeira do que eles fazem”, conta Roveran.
“O futuro terá a tecnologia impulsionando cada vez mais a democratização do mercado financeiro, garantindo que o cliente esteja no centro de suas decisões e seja auxiliado por ferramentas como inteligência artificial para ter insumos mais eficientes para tomadas de decisão”, afirma Rodrigues, representante da B3.
De acordo com ele, o Brasil tem um mercado competitivo no cenário mundial quando o assunto é tecnologia e inovação. “Temos em nossas mãos tecnologias de ponta e estamos evoluindo cada vez mais para estarmos à frente”, destaca. “Na B3, além dos projetos de modernização, temos diversas iniciativas na frente de inovação, por exemplo, os projetos Mandacaru.dev e Pantanal.dev, que são parcerias nas quais nos conectamos com Universidades federais e conseguimos ter maior contato com os jovens em período de formação, além, de estimularmos a entrada deles no mercado de trabalho. Temos também iniciativas como Hackatons para explorar uso de inteligência artificial e o próprio uso de ChatGPT em soluções internas”, conta. “Além disso, a colaboração que vemos hoje em comunidades opensource tem acelerado em muito a evolução de tecnologias, desta maneira, os profissionais de TI cada vez mais trabalharão em conjunto para disponibilizar tecnologias que transformem a experiência do usuário em algo que seja personalizado, único e de fácil acesso”, conclui o representante da B3.
CVM: FISCALIZAÇÃO
Em 2019, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) viu a necessidade de reestruturar sua área de fiscalização e criou uma superintendência de Supervisão de Riscos Estratégicos. “A área nasceu na ideia de aprimorar o processo de fiscalização da casa, que antigamente era manualizado e passava por diversas áreas”, explica Vera Lucia Simões, superintendente de Supervisão de Riscos Estratégicos (SSR), ao lembrar que o projeto estratégico de ter uma CVM Tech, reforçando a questão da tecnologia nas áreas também de fiscalização tem surtido efeito. A supervisão de liquidez de fundo deixou de ser manualizada para se tornar informatizada. Com isso, o analista que conseguia acompanhar apenas cerca de cinco fundos por mês, agora consegue varrer toda a base da instituição. “Aliado ao conhecimento técnico da CVM, os servidores da área de inteligência em supervisão de riscos estratégicos se especializaram também na área de tecnologia e passamos a repensar como alguns temas são supervisionados na CVM”, complementa Vera Lucia.
Jorge Alexandre Casara, gerente de Inteligência em Supervisão de Riscos Estratégicos, explica que a sua área não faz um trabalho de TI, mas que tem uma equipe com característica peculiar que entende do mercado e também de programação e ciência de dados. “Eles sabem usar os dados para gerar insight e inteligência por trás da supervisão”, diz Casara. Os resultados já começam a ser medidos. “A última estatística antes da reformulação da área, que tinha o dobro do tamanho que tem hoje, contabilizou 133 inspecionados e 39 processos administrativos no total. Veio, então, a reformulação e em 2022, só a fiscalização feita pela minha área, entregou 935 inspecionados em 30 processos concluídos de ponta a ponta. Essa alavancagem em número de processos e na quantidade de inspecionados está ligada ao uso de tecnologia”, considera Vera Lúcia ao lembrar que a tecnologia proporciona mais eficiência no trabalho, mas não elimina a necessidade da ação humana.