Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nove em cada dez empresas do País são familiares. Estas são responsáveis por aproximadamente 65% do PIB nacional e 75% dos empregos. Considerada sua importância socioeconômica, é preocupante constatar os riscos à sua perenidade inerentes aos seus processos sucessórios. Dentre as de médio porte, 46,9% estão na primeira geração, 43% na segunda e apenas 10,1% na terceira.
Alguns dos motivos da dificuldade na transição geracional estão usualmente ligados ao não alinhamento dos sócios sobre questões essenciais do negócio e sua estratégia; disputa pelo poder; ausência de líderes qualificados; falta de regras de entrada e saída dos sócios; ausência de acordos formais; dentre outros. Diante de tais complexidades, a sucessão deve ser encarada como uma questão estratégica e que requer profissionalismo, planejamento, comprometimento, cuidados individuais e coletivos.
Não se trata de um evento isolado na trajetória empresarial, que possa ser resolvido circunstancialmente, mas sim de um processo intergeracional orientado por uma visão de longo prazo. Esse olhar mais holístico e amplo ajuda a fazer a transição entre as gerações, bem como a profissionalização do negócio por meio da entrada de profissionais externos nos casos em que a família empresária opta por este caminho.
A sucessão é um movimento de transição no qual diferentes gerações da família empresária atuam e tomam decisões sobre os negócios, sobre a propriedade e sobre os caminhos que serão trilhados pela empresa a partir de um dado momento. Essas diferentes gerações podem englobar fundadores, pais, filhos, netos, primos, tios, sobrinhos e até mesmo agregados familiares. Portanto, trabalhar um olhar amplo sobre a empresa e a família é essencial para que o evento da sucessão aconteça de maneira satisfatória. O professor John Davis e Renato Tagiuri, por meio do Modelo dos Três Círculos, nos convidam a refletir sobre a empresa familiar sob a ótica da família, da propriedade e da gestão – de modo que possamos vislumbrar todas as intersecções dessa multiplicidade de relações.
Se a governança familiar é essencial no processo de sucessão, a governança corporativa, por sua vez, exercerá um papel de alicerçar a organização e definir regras materializadas, por meio de documentos societários que assegurarão a perenidade do negócio.
A governança corporativa e seus cinco princípios – Transparência, Equidade, Responsabilização (Accountability), Sustentabilidade e Integridade –, contidos na 6ª edição do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC, quando aplicados ao ambiente da empresa familiar, propiciarão melhor alinhamento de interesses entre os núcleos familiares e mitigação de conflitos entre as partes interessadas, além de melhorarem o desempenho organizacional, sua reputação e retorno econômico. Às vezes, no processo de sucessão, a família pode optar por uma cisão, pela venda da empresa e pela entrada de novos sócios, dentre outras possibilidades. Independentemente do caminho a ser seguido, a governança corporativa poderá suportar a tomada de decisão de modo a garantir a longevidade da empresa e, por conseguinte, da família empresária.
As empresas de controle familiar que implementam práticas de governança corporativa e delineiam processos a partir de seus princípios apresentam um pouco mais de facilidade para enfrentar os desafios decorrentes de um processo de sucessão. Além disso, aquelas que se interessam por etapas como a abertura de capital, por exemplo, e que pretendem se debruçar na construção de relações com seus investidores e demais partes interessadas precisam estar dispostas a realizar um planejamento cuidadoso, que leve em conta a preparação dos familiares para desempenharem o seu principal papel: o de sócios. É por meio do exercício desse papel que eles poderão zelar pelo legado e o patrimônio representado pela empresa.
Uma reflexão importante nas transições geracionais versa sobre não se limitar à avaliação de aspectos técnicos, como questões jurídicas, fiscais, financeiras e operacionais, devendo ser considerados, também, os elementos socioemocionais, que levam em conta as relações entre os membros da família proprietária, as características culturais, suas crenças e costumes, os anseios individuais e o dilema da troca de comando. Não é sem razão que famílias que compartilham valores se mostram mais preparadas para a sucessão e o enfrentamento de adversidades na empresa.
É preciso, ainda, criar estruturas que diferenciem para os controladores a governança familiar da governança corporativa. Há uma série de aprendizados nesta diferenciação. A governança familiar, como o próprio nome indica, atua no âmbito da família, abordando a relação desta com seus membros, com a propriedade, com a empresa e com partes interessadas. Ela também se dedica a fomentar a sintonia e atuações pautadas numa visão de longo prazo e na perpetuação do legado de valores e do patrimônio econômico-social.
Por sua vez, a governança corporativa atua no âmbito dos negócios. É o sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável para a organização, para seus sócios e para a sociedade em geral. Esse sistema baliza a atuação dos agentes de governança e demais indivíduos de uma organização na busca pelo equilíbrio entre os interesses de todas as partes, contribuindo positivamente para a sociedade e para o meio ambiente.
Empresas familiares que já adotam modelos eficazes de governança corporativa têm melhores possibilidades de êxito nas sucessões, profissionalização e abertura de capital. Para se ter ideia, levantamento da KMPG divulgado no ano de 2021 mostrou uma tendência das empresas familiares em se preocuparem mais com governança corporativa. Cerca de 58% das empresas mapeadas no estudo com esse perfil aumentaram investimentos em inovação, e seu interesse em governança se relaciona com o plano de abertura de capital.
Articular a sucessão e os inúmeros desafios de uma empresa familiar, de fato, não é tarefa fácil, mas é missão essencial para gerar e proteger o valor que se espera das empresas na atualidade. Em março de 2024, o IBGC organizará o primeiro Fórum Nacional de Governança da Família Empresária, evento exclusivo para este público, que visa justamente proporcionar um espaço para diálogo e reflexão sobre as questões que impactam esse contexto tão desafiador.
Para finalizar, em meio às reflexões sobre sucessão, recorro novamente à 6ª edição do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC, para reforçar a importância do propósito, já que é ele que direciona a estratégia e fundamenta a cultura da organização. Segundo o Código, o propósito serve como bússola para um processo decisório mais estratégico, ético e inspiracional – inclusive, para que o legado e a razão de existir da organização viva e reviva sempre, conectando os negócios, suas causas, suas pessoas e o meio ambiente.
Gabriela Baumgart
é presidente do Conselho de Administração do IBGC.
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