A capacidade de adaptação e inovação é o traço distintivo que determina a sobrevivência de uma espécie. A história da vida na Terra é repleta de exemplos de organismos que, ao longo das eras, evoluíram e se adaptaram para enfrentar desafios em constante mutação. Desde as primeiras formas de vida unicelulares até as complexas criaturas que povoam nosso planeta hoje, a capacidade de se adaptar ao ambiente e desenvolver novas soluções, desempenhou um papel crucial na contínua existência da vida.
Da mesma forma, a evolução da inteligência artificial (IA) representa uma notável manifestação dessa capacidade de adaptação e inovação. Os modelos de IA têm se tornado cada vez mais sofisticados, capazes de realizar uma multiplicidade de tarefas de forma autônoma. Eles podem gerar automaticamente textos, códigos de programação, diagnósticos médicos, imagens, vozes, música, vídeos e muito mais. Esta versatilidade torna a IA uma ferramenta poderosa e acessível para uma ampla gama de aplicações.
Essa evolução merece ser celebrada, pois representa um avanço significativo para a sociedade. A inteligência artificial está redefinindo a maneira como trabalhamos, aprendemos, nos comunicamos e exploramos o mundo. Mas seu impacto transcende o simples aumento da eficiência em tarefas cotidianas. Ela abre portas para novas possibilidades e cria um cenário onde qualquer pessoa, com as ferramentas e conhecimento adequados, pode gerar quantidades quase infinitas de produtos e informações. Isso estimula a criatividade, fomenta a inovação e aumenta a produtividade em setores que abrangem desde a indústria até a arte e a ciência.
Não obstante, a ansiedade compartilhada por muitos ao tentar compreender o impacto que as novas tecnologias têm sobre as atividades humanas, tende a reduzir essas discussões ao pressuposto de que: “máquinas inteligentes farão coisas extraordinárias para melhorar a vida das pessoas, tornando o trabalho humano obsoleto, criando, assim, uma distopia sem emprego”. Embora válida, essa asserção simplifica um fenômeno muito mais complexo.
Há, entretanto, uma reação em curso. Em um mundo de abundância gerada por máquinas, os serviços e experiências centrados no ser humano se tornarão cada vez mais raros, valiosos e, portanto, desejáveis. Para alguns, o desdobramento desta dinâmica resultará no surgimento de um novo item de luxo, com edição limitada: o ser humano.
Imagine a automação de restaurantes, por exemplo. À medida que robôs e algoritmos cuidam da preparação e servem nossas refeições, o desejo por um personal chef, com sua criatividade culinária e toque pessoal, se torna ainda mais valorizado. A comida torna-se uma expressão artística, uma experiência única e inigualável.
Nas escolas, mesmo instituições de elite com amplo acesso à tecnologia, buscam-se professores humanos para proporcionar aos alunos uma educação centrada no indivíduo, pois reconhecem que a conexão entre educador e aluno vai além da mera transferência de conhecimento. Educação engloba empatia, orientação personalizada e estímulo ao pensamento crítico. É uma experiência humana profunda que não pode ser facilmente replicada por máquinas. Um bilionário do Vale do Silício, cujo nome permanece anônimo, contratou um marceneiro para ensinar seus filhos a construir brinquedos de madeira. Essa prática ancestral de transmitir habilidades manuais e artísticas de geração em geração é uma demonstração do valor intrínseco da experiência humana no processo de aprendizagem.
Essas reflexões nos lembram que o trabalho humano é inerentemente singular, enquanto as máquinas são associadas à repetição e à padronização. Os seres humanos têm a capacidade única de se adaptar a situações inusitadas, uma habilidade frequentemente entendida como "eficiência de amostragem." Aprendemos rapidamente, mesmo com poucos dados, enquanto os modelos de inteligência artificial necessitam de vastas quantidades de informação para treinar.
A Governança Corporativa, tradicionalmente voltada à supervisão e direção estratégica das organizações, enfrenta agora um novo paradigma com a crescente incorporação da inteligência artificial no ambiente de negócios e nas relações humanas. Esse cenário dinâmico demanda uma adaptação das práticas de governança para garantir o desenvolvimento, implementação e uso responsável dessas tecnologias, mantendo simultaneamente a integridade e o equilíbrio nas relações humanas.
A supervisão diligente dos algoritmos de apoio à decisão introduz uma nova camada de complexidade à gestão de riscos - a compreensão dos critérios de treinamento e a identificação de vieses -, exigindo que os órgãos de governança estejam capacitados para avaliar e mitigar possíveis impactos adversos.
Da mesma forma, o desenvolvimento de habilidades digitais, a redefinição de papéis e responsabilidades, e a promoção de uma cultura que valorize a inovação ética, demandam vigilância e orientação constantes dos agentes de governança. A governança deve ser um agente catalisador para garantir que a IA seja uma ferramenta facilitadora e não um substituto para a interação humana significativa. Isso implica equilibrar a eficiência operacional, proporcionada pela automação, com a preservação da empatia, da comunicação efetiva e da colaboração entre os membros da organização.
Por fim, e não menos importante, a inclusão de representantes especializados em IA nos Conselhos de Administração torna-se necessária. Esses profissionais podem oferecer insights valiosos sobre as potencialidades e limitações da IA, orientando as estratégias organizacionais de maneira mais bem informada.
O futuro de nossa civilização estará inexoravelmente entrelaçado com a inteligência artificial, mas uma coisa é certa: a experiência humana continuará sendo um luxo insubstituível. A singularidade, criatividade, capacidade de adaptação e a transmissão de conhecimento entre pessoas são elementos intrínsecos à humanidade e continuarão a ser valorizados em um mundo cada vez mais automatizado.
Enquanto celebramos o progresso da inteligência artificial, não podemos negligenciar a importância de preservar e valorizar aquilo que nos torna humanos.
Nossas experiências únicas, nossa capacidade de adaptação e nossa habilidade de criar, educar e inspirar uns aos outros são riquezas que não podem ser igualadas por máquinas.
Andriei Beber
é Conselheiro de Administração, Professor dos Programas de Formação Executiva da FGV e Instrutor dos cursos de formação de Conselheiros do IBGC.
andriei@andrieibeber.com.br