Opinião

DO LIXO AO LUCRO? UMA NOVA ESTRATÉGIA NACIONAL E NOVIDADE NA CVM

Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e cumprir com o Acordo de Paris demandam maior mobilização de recursos financeiros para certos temas e setores. Ainda que em uma velocidade mais lenta que a necessária, já é possível notar mudanças relevantes.

O mundo investe mais em fontes renováveis que em fósseis desde 2016, segundo a Agência Internacional de Energia. Os setores de Infraestrutura e Transportes também se destacam, respondendo por cerca de um quinto dos investimentos globais de combate às mudanças climáticas (CPI, 2024). Já saneamento e gestão de resíduos ainda são temas com menores cifras climáticas, respondendo por cerca de 5% apenas. No Brasil, o primeiro vem crescendo, especialmente pelos investimentos a partir do Marco Legal de Saneamento. Já os resíduos e a economia circular como um todo ainda aparecem como o “primo pobre” nessa agenda.

Em um cenário com poucas perspectivas de mudança, duas novidades podem ajudar, apesar de suscitarem dúvidas sobre sua efetividade. Em junho, o governo federal lançou a Estratégia Nacional de Economia Circular, que propõe a criação de ambiente normativo, articulações entre órgãos de governo e outros atores, e instrumentos financeiros para fomento ao tema.

Falando em incentivos financeiros, a segunda novidade foi a o anúncio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em julho, ao criar a classe de cotas específica: títulos e fundos de renda fixa poderão ter cotas Prorecicle para ativos originados em projetos que estimulem principalmente a reciclagem. Os fundos Prorecicle, na realidade, já haviam sido criados pela Lei nº 14.260/2021 de Incentivos à Reciclagem, porém sem efetiva implementação. O movimento da CVM em regulamentar essa lei aproxima o tema da realidade de empresas potencialmente emissoras de títulos de dívida com este perfil e de gestores de fundos que veem oportunidades no setor.

Considerando apenas o setor de transformados plásticos, que já atrai atenção de alguns fundos de impacto, o faturamento superou R$ 100 bilhões em 2022, com 6,7 milhões de toneladas de produção física. Juntas, as indústrias de transformação e reciclagem fomentaram quase 360 mil empregos em mais de 12 mil empresas, sendo o 4º maior empregador da indústria de transformação brasileira (Abiplast, 2022).

Ao mesmo tempo, a ineficiência na gestão de resíduos e, mais do que isso, o modelo linear da economia (extrair – produzir – descartar), geram perdas à biodiversidade, custos na gestão urbana e dificultam o combate às mudanças climáticas. Dados do Fórum Econômico Mundial indicam que mais de 90% da perda de biodiversidade se deve à extração e processamento de recursos naturais. Já as emissões gases de efeito estufa provenientes da forma que fabricamos e consumimos produtos e alimentos representam quase metade do total no mundo.

Empresas que já percebem lacunas em modelos de negócio tradicionais passam a demandar capital para avançar à economia circular. É uma oportunidade a ser explorada, dado que a maior parte da lógica tradicional de negócios ainda desconsidera a possibilidade de circularidade no desenho de produtos ou serviços, não viabiliza cadeias de logística reversa e perde possíveis ganhos no retorno de materiais.

A implementação de modelos circulares de produção pode contribuir em diversas esferas para o desenvolvimento sustentável. Esses modelos estão diretamente conectados ao ODS 12 (Consumo e produção responsáveis), mas também a outros objetivos, como combate à mudança do clima (ODS 3), redução das desigualdades (ODS 10) e Cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11).

Investigando por lentes financeiras, já é possível encontrarmos análises que sugerem que quanto mais aderente à circularidade uma empresa é, menores são os riscos frente a interrupções da cadeia de fornecedores e os custos de produção.

Cooperativas e start-ups com soluções para esses modelos, assim como grandes empresas de setores intensivos em matéria-prima e geração de resíduos podem se beneficiar desses avanços regulatórios. Apesar do nome, as cotas Prorecicle podem ser direcionadas a outras práticas mais eficientes que a reciclagem na redução de resíduos e melhor aproveitamento de recursos, já que a norma fala também em “reutilização de materiais” e “responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos”. Análogo ao que já acontece para outros instrumentos financeiros específicos, seus investidores poderão ter dedução de imposto de renda, com base na Lei nº 14.260/2021.

Resta saber a efetividade, especialmente no lado da capacidade de geração de demanda de capital, para que de fato ela se transforme em cotas de títulos de dívida e fundos. Cooperativas, associações, micro e pequenas empresas do segmento enfrentam dificuldades, como na formalização, gestão financeira e engajamento com grandes geradores de resíduos – o que nos lembra, principalmente, que o país não obteve o avanço esperado a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

Inclusive, as dificuldades da PNRS, instituída há 14 anos, trazem um alerta para a Estratégia Nacional de Economia Circular. Será necessário desdobrar a estratégia em mudanças regulatórias que levem à ação de empresas e dos governos subnacionais.

Independente dos desafios, as novidades são bem-vindas para dar sinais à sociedade civil, setor empresarial e setor financeiro sobre possíveis caminhos para mobilizar capital à gestão de resíduos e economia circular. Abre-se espaço para observar oportunidades de carteiras de projetos e investimentos que estejam além de modelos de negócios tradicionais e que contribuam para gerar valor no longo prazo enquanto garantam nossa adaptação aos desafios socioambientais e climáticos.

Guilherme Teixeira e Débora Maia
são, respectivamente, Sócio e Consultora de Finanças Sustentáveis na ERM
guilherme.teixeira@erm.com e debora.maia@erm.com


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