A criação de condições para ampliar a captação de recursos para investimentos sociais através de Fundos Patrimoniais no modelo “Endowment” vem ganhando mais atenção no Brasil. Esses fundos são constituídos por organizações sem fins lucrativos a partir da captação de doações, que possibilitam a criação de patrimônio perpétuo, cujos recursos são aplicados no mercado de capitais e seus rendimentos são investidos na promoção de determinada atividade de interesse social.
Ao contrário de outros países, no Brasil a atuação desses fundos, aqui conhecidos como fundos patrimoniais, ainda é tímida e mais restrita as áreas de educação e cultura, embora sejam um instrumento capaz de proporcionar investimentos de longo prazo para uma ampla gama de atividades de interesse social, como segurança pública, meio ambiente, assistência social.
De acordo com o IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), estão atuantes no país cerca de 18 fundos patrimoniais. Para estimular a criação de fundos endowment, várias iniciativas estão curso. Dois projetos de lei, nesse sentido, estão tramitando no Congresso Nacional: o Projeto de Lei 8.694/2017 da Senadora Ana Amélia Alves (PP/RS), que está na câmara dos deputados e o Projeto de Lei 158/2017 da Deputada Bruna Furlan (PSDB/SP), que está no senado.
Além disso, o BNDES estuda o desenvolvimento de fundos de investimento no modelo endowment sob amparo da regulação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Segundo Eliane Lustosa, diretora da área de mercado de capitais do BNDES, trata-se de proposta complementar aos projetos de lei. Conforme afirmou: “Acreditamos que o selo CVM na regulação desses fundos traria legitimidade para essa estrutura e proporcionaria segurança aos investidores sociais”.
Recentemente, o BNDES patrocinou o primeiro Fórum de Endowments Culturais, em parceria com o IDIS. O trabalho resultou na publicação de três guias de disseminação que abordam: diretrizes para o aprimoramento da legislação; melhores práticas de gestão e governança; e passo-a-passo para criação de endowments.
De acordo com pesquisadores e profissionais dedicados ao assunto, duas condições são fundamentais para criar um ambiente frutífero para a disseminação de endowments no Brasil. A regulamentação de personalidade jurídica especifica para esse tipo de fundo e incentivos à doações. Na avaliação da diretora do BNDES, sem personalidade jurídica própria, não há uma definição precisa sobre quais são as obrigações dos doadores e os limites no relacionamento com as organizações sem fins lucrativos às quais estão vinculados.
Essa situação causa diversas dúvidas sobre em que medida os fundos patrimoniais responderiam por passivos das organizações, como garantir ao investidor a utilização dos recursos para a finalidade previamente estabelecida e sobre a estrutura de governança a ser estabelecida, acrescenta.
A essência para o desenvolvimento de um endowment, conforme observa a diretora do BNDES, está na segregação patrimonial das doações e respectivos rendimentos da entidade beneficiada, de modo que ambos sejam geridos de forma profissional e independente. “Caso contrário, o risco de confusão patrimonial possibilitando que a instituição utilize recursos do endowment para atividades correntes sem observar uma política de investimentos adequada poderia comprometer a sua sustentabilidade de longo prazo”.
Para Paula Jancso Fabiani, diretora presidente do IDIS - Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, a inexistência de uma regulamentação especifica gera incertezas para os doares. Na avaliação dela, entre os aspectos fundamentais para a regulação bem sucedida para a atuação de endowments estão: benefício a uma ampla gama de organizações e causas como educação, saúde, cultura, assistência social, dentre outras; existência de regras genéricas de governança (Conselho e Comitê de Investimentos) e transparência (publicação da política de investimentos, resgate e relatório de atividades); isenção do ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Morte e Doação) sobre doações.
Facilitar doações
Para Aline Gonçalves de Souza, pesquisadora na Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP e coordenadora-executiva do Projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, o debate sobre a regulamentação é positivo, mas não se pode esquecer que já é possível fazer fundos patrimoniais e as liberdades que existem hoje não devem ser restringidas.
“A ponderação da FGV é que qualquer que seja a legislação a ser aprovada, ela não reduza direitos que hoje já existem para atuar nesse tipo de fundo.” Para a pesquisadora da FGV, um outro ponto fundamental para ampliar a captação de recursos de fundos patrimoniais é facilitar as doações, que hoje são inibidas pelo imposto ITCMD.
“Somos o único país onde a legislação de doação é igual a de herança, prejudicando a filantropia. É preciso mudar isso para incentivar as doações”. O objetivo do imposto é taxar as heranças, mas porque taxar as doações filantrópicas que vão beneficiar a sociedade como um todo?, pergunta ela.
Amigos da Poli
Diego Martins, que participou da criação do fundo patrimonial da Associação Amigos da Poli, do qual foi diretor financeiro de 2012 a 2016, aponta a insegurança jurídica como um grande desestímulo para a captação recursos para esse tipo de fundo. Segundo ele, na França onde os endowments foram regulamentados em 2008, foram criados 230 fundos apenas no primeiro ano após sua aprovação.
Conforme aponta, sem uma figura jurídica própria, as organizações sem fins lucrativos estruturam seus fundos da maneira que acham melhor, além de poderem ser arroladas como devedoras em processos judiciais. Por exemplo, se uma associação sofre um processo jurídico e tem um fundo patrimonial, a justiça pode determinar que os recursos do fundo sejam usados para a quitação de dívidas, desvirtuando seus objetivos.
“No Brasil esses fundos trazem benefícios imensos. São uma fonte de investimento de longo prazo, da qual o país é carente. Além disso contribuem para a ampliação do mercado de capitais com investimentos em títulos de longo prazo e com a ampliação de recursos na área de gestão. Nos EUA existem grandes Assets management criadas especificamente para gerir patrimoniais de endowments, acrescenta Martins.
No ano passado, o Fundo Patrimonial Amigos da Poli alcançou a marca de 450 doadores, registrando R$ 10,2 milhões em patrimônio, ante R$ 5,3 milhões em dezembro de 2015. A meta é atingir R$ 20 milhões. “Os projetos apoiados pelos Amigos da Poli tem grande impacto no ensino e na formação dos alunos, além de gerar externalidades importantes para a Poli e para o Brasil.”
Impacto socioambiental
A criação de condições favoráveis para a constituição de fundos patrimoniais seria extremamente frutífera para o Rio de Janeiro, por exemplo, onde o estado, falido, não tem verba para realizar investimentos socioambientais que são da maior urgência, observa a economista e professora Eduarda La Rocque, que tem em seu currículo uma expressiva atuação em defesa de projetos na área socioambiental.
Segunda ela, faz todo sentido doar recursos para serem investidos em projetos sociais e ter como retorno um ambiente mais seguro e mais agradável. Mas para isso é preciso ter regulamentação especifica para garantir o investimento resulte no retorno esperado. “Para ser efetivo, esse tipo de investimento precisa de regras de avaliação de impacto para que se possa medir o benefício, que é o retorno não financeiro, mas socioambiental”.
Na Inglaterra, por exemplo, esse tipo de fundo está sendo utilizado inclusive para reduzir a reincidência no sistema prisional. Para Eduarda, é preciso trazer instrumentos de mercado de capitais para o setor público. “Faz todo o sentido levar a governança privada, que é sofisticada, para o setor público, onde a governança é um lixo”.
Projetos de lei na berlinda
Estudo realizado pelo IDIs aponta aspectos positivos e negativos dos projetos de lei em tramitação no Congresso. Segundo Paula, entre os pontos positivos do projeto de lei da senadora Ana Amélia estão: a partir de 2021 haverá Incentivo Fiscal para pessoas físicas e jurídicas que doem à fundações gestoras de doações que apoiam instituições públicas ou entidades civis sem fins lucrativos com objetivo de interesse público (Lei 9.790).
Já entre os pontos críticos, de acordo com o estudo do IDIS, estão: os fundos patrimoniais precisam ser constituídos legalmente como Fundações; os fundos patrimoniais não poderão receber recursos públicos; a fundação gestora só pode apoiar quatro instituições, restrição ao uso dos recursos; incentivo fiscal vedado a instituições vinculadas ao doador.
Para a pesquisadora da FGV, outro ponto crítico do projeto da senadora está na estrutura de governança. Segundo Aline, o projeto tem aspectos de governança que podem não ser adequados. Por exemplo, o projeto diz que o Conselho de Administração de um fundo patrimonial tem que ter no mínimo cinco membros. Porque ser tão especifico?
Em relação ao projeto da deputada Bruna Furlan, o IDIs ressalta os seguintes pontos positivos: as associações gestoras podem apoiar universidades públicas, IFES, ICTs, que têm ingerência na associação gestora; incentivo fiscal para pessoas físicas e jurídicas que doem a associações gestoras de doações que apoiam instituições públicas ou entidades civis sem fins lucrativos com objetivo de interesse público (Lei 9.790), a partir de 2021.
Entre os pontos críticos destaca: os fundos patrimoniais precisam ser constituídos legalmente como Associações: os fundos só podem apoiar instituições públicas ou de ensino superior, institutos federais de educação, instituições de ensino superior comunitárias, e instituições científicas, tecnológicas e de inovação públicas; os fundos não poderão receber recursos públicos, o fundo só pode aceitar doação se puder pagar o imposto (ITCMD).
O andamento dos Projetos de Lei também vem sendo acompanhados pelo BNDES. Na avaliação de Eliane Lustosa, a instituição de fundos endowment deve abarcar instituições públicas e privadas sem fins lucrativos de todo o terceiro setor. No que se refere a governança, ela observa que é muito importante que os fundos possuam uma estrutura mínima que permita a correta fiscalização da aplicação dos recursos pelos doadores.
Nesse sentido, a legislação deverá exigir um conteúdo mínimo relacionado às seguintes matérias: política de investimento, resgate e alienação de bens; composição, funcionamento e competência dos órgãos do fundo; comitê de investimentos, auditoria. De acordo com a diretora do BNDES, é muito importante que os fundos patrimoniais tenham flexibilidade e autonomia em relação à entidade apoiada no que se refere à contratação de bens e serviços, a fim de garantir que contará com um corpo de profissionais qualificado e experiente.