Não por acaso, em processos de capitalização via IPO, por exemplo, o órgão regulador e a B3 exigem um conjunto mínimo de procedimentos de governança e informações para a tomada de decisão dos alocadores de capital. Isso visa proteger os investidores e evitar a assimetria de informações entre os diversos agentes de mercado.
As informações disponibilizadas devem conter atributos como tempestividade, comparabilidade, clareza e confiabilidade, características essas da informação contábil segundo o CPC 00 – Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro.
Segundo Beaver (2002), existem cinco áreas que trouxeram maior contribuição ao conhecimento nos últimos dez anos nos EUA, sendo os estudos ligados à eficiência do mercado, à modelagem Feltham-Ohlson sobre o comportamento das ações, value relevance, comportamento dos analistas de mercado e gerenciamento de resultados.
Este último ocorre quando os administradores usam do julgamento na divulgação de relatórios financeiros e na estruturação de transações para alterar os relatórios financeiros, a fim de enganar alguns agentes sobre o desempenho econômico latente da companhia ou para influenciar os resultados contratuais que dependem dos números contábeis (HEALY e WAHLEN, 1999). Os incentivos relacionados ao gerenciamento de resultados podem estar relacionados ao mercado de capitais, aos aspectos contratuais e/ou regulatórios.
Em relação ao mercado de capitais, vários estudos ao redor do mundo dão conta de que os administradores procuram melhorar os termos em lançamentos no IPO, atender às expectativas dos analistas, pagar regularmente dividendos e estabilizar os resultados. Há uma linha bastante tênue no uso discricionário dos métodos contábeis pela própria subjetividade do processo. Segundo Iudicibus há que haver, por parte dos administradores, uma espécie de subjetivismo responsável.
No Brasil, um estudo realizado em 2007 sugere que há gerenciamento de resultados em períodos anteriores e posteriores à oferta pública de ações. Na década de 90, importantes estudos foram realizados no mundo apresentando ferramentas para identificar o valor das acumulações discricionárias. Por acumulações discricionárias destacam-se assuntos como remuneração, partes relacionadas, provisão para contingências, depreciação, reconhecimento de receitas, política de dividendos etc.
Se olharmos para as crises corporativas um ou mais desses componentes explicam boa parte da destruição de valor. Segundo Brealey, a assimetria de informação entre emissores e investidores no momento de uma oferta inicial é particularmente alta.
No âmbito do programa de contabilidade e atuária da PUC-SP será lançado um conjunto de pesquisas contemporâneas em contabilidade a partir de uma visão globalizada e sistêmica. Um dos estudos avaliou as companhias que fizeram IPO no ano de 2017 com o objetivo de verificar a qualidade das informações prestadas na conta específica de provisões para contingências. Foram selecionados os dados constantes das demonstrações contábeis de 2015 a 2017, tendo como base as notas explicativas. O objetivo seria identificar se houveram mudanças na prestação de contas no item específico de provisões para contingências no período da abertura de capital das empresas.
Adicionalmente, foram analisados o prospecto das ofertas e os formulários de referência com o objetivo de verificar as possíveis razões para as eventuais variações na conta de provisões, com suporte no gerenciamento de riscos, fatores de risco e descritivo dos processos relatados pelas companhias.
Uma primeira constatação do estudo é que não havia uma padronização dos dados apresentados que permitisse comparações entre o conjunto de empresas e o histórico de cada uma. É perceptível o fato de que cada entidade adotou a forma que melhor lhe convém, visando os interesses dos seus usuários em específico ou dos seus próprios interesses. No agregado das empresas pesquisadas os montantes provisionados para os processos trabalhistas são os de maior relevância. Apenas em um conjunto menor verificou-se que as contingências cíveis são maiores em duas empresas e as tributárias são maiores em uma das empresas analisadas. As contingências ambientais apareceram nas demonstrações contábeis de duas empresas.
Os avanços ou reduções nos valores contabilizados não obedeceram uma linearidade. O prospecto das ofertas e os formulários de referência trazem, de forma mais detalhada em relação às demonstrações contábeis, o conjunto dos processos e a natureza de alguns eventos. Por não serem auditados por auditoria externa independente esses devem ser avaliados com a consideração de que o nível de transparência e veracidade das informações são apresentados de forma discricionária por parte dos administradores. Em relação ao gerenciamento e fatores de risco não foram encontradas informações que justifiquem os dados encontrados.
A maior variação foi de mais de 15.000% de avanço nas provisões trabalhistas. Outras variações de 2.266%, 76%, 113% e 453% foram encontradas ao se comparar o período de 2015 e 2017.
As notas explicativas não apresentaram as razões para os aumentos ou reduções, tampouco foi observado os mecanismos de governança e gestão adotados para mitigação de riscos. Não foi possível identificar ainda de que forma as companhias pesquisadas fazem a gestão dessa linha de resultado. Em relação aos relatórios das auditorias apenas três dos dez pareceres mencionam como Principais Assuntos de Auditoria (PAA) o tema provisões, considerando-se aceitável os níveis de provisionamento.
As demonstrações contábeis são um instrumento para a tomada de decisão e os administradores necessitam de um elevado nível de criticidade sobre temas relevantes na óptica de investidores e analistas. Uma maior diligência na atuação pode fazer com que o projeto de captação tenha o sucesso esperado. O contrário pode ajudar a explicar uma demanda baixa pelo papel ou um preço abaixo ou no limite do proposto pela postulante ao capital do investidor.
Rafael S. Mingone
é sócio-diretor da RMG Capital, empresa que desenvolve soluções de governança corporativa com foco em alternativas de capitalização. É autor do livro “Capitalização de pequenas e médias empresas: como crescer com o mercado de capitais” (Editora Trevisan). Também é professor convidado da Trevisan Escola de Negócios, FIA, BI International, Unisa e B3 Educação.
rafael@rmgcapital.com.br