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A crescente popularidade do mercado de criptoativos no cenário global, aliada à criação vertiginosa de diferentes opções de investimento, à facilitação de operações transnacionais e a consequente movimentação intensa de valores, que, inclusive, já alcança a casa dos bilhões, têm despertado o interesse de muitos investidores nesses ativos. A título de exemplificação, de acordo com um estudo elaborado pelo Parlamento Europeu, datado de junho de 2018, o total do valor de mercado capitalizado pelas 100 criptomoedas mais conhecidas excedeu o equivalente a 330 bilhões de euros, no início de 2018.
Ao mesmo tempo, muitos países têm enfrentado diversos desafios de regulação, fiscalização e supervisão dessas operações, face aos riscos que ensejam, sobretudo os atrelados à lavagem de dinheiro. A raiz desta questão se concentra na tecnologia utilizada por eles, a qual, ao mesmo tempo que traz potenciais benefícios, também cria dificuldades de identificação dos beneficiários finais envolvidos.
A princípio, conforme já esclarecido pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), deve-se ter em mente que os ativos virtuais são denominados em sua própria unidade de conta, distinta das soberanas locais. Por outro lado, como unidade de valor, eles são similares às moedas soberanas contemporâneas: nenhum deles é garantido por ativos reais. O valor de ambos decorre da confiança dos indivíduos na sobrevivência da aceitação de tais instrumentos como meios de pagamento no longo prazo. Cabe ressaltar também que, no que diz respeito à sua capacidade de troca, os criptoativos, geralmente, não têm garantia de conversão para nenhuma moeda oficial.
Ainda, faz-se oportuno explicitar que, quando usados como meios de troca, os criptoativos teriam capacidade para viabilizar transações mais eficientes e menos custosas do que outros meios tradicionais de pagamento, em virtude do menor envolvimento de intermediários que propiciam, pelo emprego da Distributed Ledger Technology (DLT). De acordo com estudo elaborado pelo Banco Mundial, publicado em 2017 e intitulado de “Distributed Ledger Technology (DLT) and blockchain”, a DLT diz respeito a uma nova abordagem para registro e compartilhamento de dados em múltiplas plataformas de armazenamento (“ledgers”), em que cada uma tem exatamente os mesmos registros. Elas são coletivamente mantidas e controladas por uma rede, a qual é distribuída em diferentes servidores, detidos pelos seus participantes, os quais são denominados de nós, reforçando a ideia de conexão.
Consequentemente, por meio dessa tecnologia, os criptoativos também teriam capacidade de melhorar a transparência das transações, o seu rastreamento e os sistemas de segurança das plataformas utilizadas, já que não haveria mais a necessidade de dependência em relação a uma entidade centralizadora, sujeita a interrupções. Assim, eles se apresentam como uma opção de redução de barreiras eventualmente existentes e encorajam a competição, ao passo que fornecem uma alternativa aos serviços tradicionais de pagamentos.
Todavia, há uma linha tênue entre o tipo de transparência que os criptoativos oferecem e a possibilidade de manutenção no anonimato que permitem. Isso porque, ao mesmo tempo que todos os integrantes da rede podem visualizar o histórico completo das transações já realizadas, muitas vezes, não é possível identificar as pessoas físicas ou jurídicas que as efetuaram, dado que a maior parte dos sistemas de criptoativos não requer informações cadastrais para ser utilizado. Logo, a possibilidade de realização de transferências diretamenteentre os participantes da rede, sem a interveniência de terceiros (“peer-to-peer”) que poderiam estar sujeitos à obrigação legal de manutenção desses cadastros, proporciona um campo fértil de incentivo à lavagem de dinheiro, à corrupção, à evasão de divisas, ao financiamento do terrorismo e a demais ilegalidades.
Nesse contexto, insere-se o Grupo de Ação Financeira (GAFI), organismo intergovernamental, criado em 1989, responsável por desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais para dissipar os fluxos de capitais ilícitos, visando à proteção do sistema financeiro internacional. O GAFI, conforme relatório publicado em janeiro de 2018, intitulado de Financing of Recruitment for Terrorist Purposes, identificou que um website de propaganda do Estado Islâmico (EI), usado para solicitar doações via Bitcoin, recebeu cinco contribuições. Em função da tecnologia utilizada pelo Bitcoin, conseguiu-se verificar que os beneficiários das operações teriam realizado doze pagamentos relativos a serviços técnicos ou de hospedagem de sites, inclusive para a empresa que hospedou o site de propaganda do EI. Todavia, pelo fato de a própria tecnologia não requerer nem permitir a identificação e a verificação da identidade de seus participantes, não foi possível descobrir quem eram as pessoas físicas envolvidas.
Dessa maneira, a tecnologia inovadora utilizada por esses criptoativos, ao mesmo tempo que oferece oportunidades de aprimoramento para o sistema financeiro internacional, também tem ensejado certa preocupação dos países, no que diz respeito, especialmente, ao uso desses ativos para fins ilícitos e aos demais riscos que eles podem oferecer, como os associados à liquidez, à volatilidade e à manipulação de mercado. Isso se verifica, ao se analisar o caso da China, por exemplo. Lá, apesar de haver a proibição de funcionamento para as corretoras de criptoativos (“exchanges”), a autoridade fiscal da cidade de Shenzhen e a empresa Tecent estão elaborando uma espécie de fatura digital cuja plataforma é baseada no arranjo mais conhecido da DLT, a blockchain. O mecanismo visa a combater a falsificação de recibos e a aperfeiçoar o sistema de supervisão fiscal.
Em relação aos riscos de volatilidade e de manipulação de mercado, em especial, faz-se pertinente destacar o recente caso de liquidação antecipada de contratos de criptoativos, motivada por suposta volatilidade excessiva dos ativos em questão. A decisão teria afetado diretamente os investidores envolvidos: um deles reportou que chegou a perder US$ 700 mil dólares, em decorrência da medida. Sobre o assunto, a Financial Conduct Authority (FCA) destacou, ainda, que, em razão da dinâmica dos mercados de criptoativos, em que o volume de negócios e de capitalização é consideravelmente menor que o de mercados financeiros já estabelecidos, há um maior potencial de que participantes mal-intencionados coordenem manipulação de preços, por meio de esquemas como o de “pump and dump”. Isso representa um risco para qualquer potencial investidor, que pode interpretar a valorização súbita do preço como um sinal de alta qualidade de um criptoativo, apenas para perder dinheiro, ao passo que esses aumentos de preços são revertidos.
Nesse quadro, o GAFI já se pronunciou diversas vezes, alertando os países sobre a necessidade de identificação e mitigação dos riscos associados aos criptoativos, por meio de medidas preventivas e legais efetivas. Em sintonia, a Enccla, desde 2017, tem dedicado esforços nesse sentido, por meio das diferentes Ações de nº 8.
Em manifestação mais recente, intitulada de Regulation of virtual assets, o GAFI comunicou a atualização de suas Recomendações, a fim incorporar disposições relativas a esses ativos. Para tanto, o documento previu que se pode entender um ativo virtual como uma representação digital de valor que pode ser transacionada ou transferida digitalmente e que pode ser utilizada para a realização de pagamentos ou de investimentos. Faz-se pertinente destacar que o GAFI fez a ressalva de que este conceito não inclui representações digitais de moedas soberanas e valores mobiliários. Além disso, o documento também previu a definição de prestador de serviço de ativo virtual, a qual inclui pessoa natural ou jurídica que realize uma ou mais atividades empresariais ou operações, para ou em nome de outra pessoa natural ou jurídica, que envolvam o rol disposto a seguir:
Como exemplos desses prestadores de serviços de criptoativos, podem-se apontar: as exchanges, alguns tipos de plataformas que fornecem serviços de wallet de criptoativos e prestadores de serviços financeiros para Initial Coin Offerings.
Faz-se pertinente frisar que o GAFI o fez, a fim de reforçar que as jurisdições devem assegurar que prestadores de serviços de criptoativos estejam sujeitos às regulações de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo (PLDFT), tais como as referentes à manutenção dos registros de dados dos clientes.
Não obstante os potenciais benefícios trazidos pelos criptoativos, fato é que essas preocupações não são desarrazoadas. Um relatório preparado pelo HM Treasury, em conjunto com a FCA e o Bank of England, datado de outubro de 2018, destacou que a Europol estima que entre 3 e 4 bilhões de euros com origem ilícita sejam lavados anualmente na Europa, por meio de criptoativos. Como agravantes, a possibilidade de alcance global e de armazenamento dos registros de transações em diferentes jurisdições que não possuem controles adequados de PLDFT e o acelerado desenvolvimento dessas tecnologias também dificultam a fiscalização.
Desse modo, em que pesem todas as transformações que estão por vir, as incertezas naturais de um processo de adaptação e os riscos atrelados aos criptoativos, entende-se que, idealmente, as propostas de regulação não devem ser formuladas buscando a restrição da realização de negócios, como foram os casos da China, Índia e Indonésia. Isso porque, considerando a capacidade de alcance global dos criptoativos, compreende-se que, na verdade, essas propostas deveriam buscar fomentar a concretização de um sistema financeiro internacional íntegro, seguro e dinâmico.
Na atual conjuntura, há mais perguntas do que respostas e as questões mais relevantes dizem respeito à tecnologia utilizada por esses criptoativos, a qual enseja diversos riscos de LDFT, sobre os quais os investidores devem estar cientes e os reguladores devem buscar meios de identificação dos beneficiários finais. Os paradigmas dos sistemas financeiros podem estar mudando, por isso, se questiona se as diretrizes vigentes são suficientes para enfrentar tais transformações.
Júlia Dantas Saavedra
é bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), integrante da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UNIRIO e coautora do livro "Direitos Humanos e Terrorismo no Brasil" (CRV Editora).
juliad.saavedra@gmail.com