Enfoque

DOIS CONCEITOS RELEVANTES EM NOSSO SÉCULO: SUSTENTABILIDADE & LONGEVIDADE

Vamos trabalhar com duas premissas: a Natureza criou a vida; e o Homem criou a civilização.

A Natureza criou a vida
É muito importante destacar que ao criar a vida a Natureza lhe impôs uma missão muito clara e que abrange toda e qualquer espécie: preservar a vida. Assim, tanto a ameba como a girafa, o coral como a baleia, a grama como a sequóia, todos se irmanaram na sublime tarefa de conservar a vida. Mas a Natureza não é tão simplista assim. Junto com a vida, criou as cores, os sons, as paisagens naturais, a grandeza dos lagos, mares e oceanos, os vales, as florestas, o nascer e o pôr do sol, ou seja, com a vida surgiu também a Arte, e quando a atividade de reprodução chegou a um nível bem evoluído, desponta também a figura do Amor em seu sentido mais puro (e poético, por que não?).

O Homem criou a civilização
Este quadro é bem diferente do anterior. Começando pela própria ideia de missão: existe alguma? Aqui, a inversão de valores assusta, embora seja inegável que no campo da ciência e, em particular, da inovação, a humanidade só tem feito progredir. O que não faz sentido é o poder de destruição gerado pelas mesmas capacidades que, no extremo oposto, formam discípulos da ética, mestres da arte, senhores da palavra...

Em nenhuma outra espécie viva encontramos conflitos tão exacerbados como os binômios amor/ódio, bondade/crueldade, altruísmo/egoísmo, indiferença/solidariedade e tantos outros. Até virtudes se degradam neste segundo cenário! Enquanto a Economia, em sua concepção, deveria administrar recursos escassos de forma a reduzir desigualdades e desequilíbrios, o que temos visto é o pretexto da “motivação econômica” justificar as grandes guerras, ou um processo que parece interminável de concentração de riquezas - consequência da transferência (não criação!) de valor entre classes. Conseguimos produzir o absurdo: as maiorias (em números) são as minorias (em poder) ! Felizmente, no mundo da comunicação global, isso vai se inverter por força da lógica: a maioria (número) será a maioria (poder) – e não vai demorar muito!

Sustentabilidade
É hora, portanto, de falar em Sustentabilidade. Ela está solidamente enraizada na dupla Vida/Natureza, podendo ser considerada parte integrante da missão de defender a vida. Quando o cenário muda para a relação Homem/Civilização, tudo se complica bastante, pela falta de um propósito bem definido, embora algumas ideias bem genéricas, como “progresso da humanidade”, possam tentar suprir essa lacuna.

Ora, se a sustentabilidade tem tudo a ver com a missão de preservar a vida, por que não promovê-la também para missão central da civilização, complementando-a com “alegria de viver”? Segundo Francis Fukuyama, autor de “O fim da história e o último homem”, as mudanças que ocorrem continuamente na sociedade humana são impulsionadas por duas forças: a primeira, nossa necessidade de reconhecimento como pessoas e, a segunda, os progressos da ciência. Essa necessidade de reconhecimento é tão forte que não poucas pessoas, não conseguindo alcançá-lo pelas boas ações, procuram conquistá-lo por meio de atos bárbaros, como é o caso dos “serial killers”, que se tornam matéria prima para aquela parte sombria da comunicação moderna para a qual “o bem não é notícia”.

No terreno das conquistas da ciência, a medicina é, talvez, o melhor exemplo em seu empenho – amplamente bem sucedido – de alongar a vida humana e elevar sua qualidade, não só pela cura como pela prevenção de doenças, muitas das quais já estão fora do mapa. No Brasil, nos primeiros anos do sec. XX, a expectativa de vida média estava por volta de 40 anos. Hoje, já estamos falando no dobro! É interessante lembrar que, séculos atrás, a medicina era assunto de bruxas e curandeiros. No sec. XVII, o poeta Gregório de Matos, notável também pelos seus versos satíricos, escreveu:

O Doutor Saracura
A curar começara
Mas enquanto ele cura
O doente não sara..

Outro notório gozador daquela época, Bocage, não deixou de dar sua contribuição:

Arrimado às duas portas
Pingue boticário estava,
E brandamente acenou
A um doutor que passava;

Mal que chega o bom Galeno,
Diz o outro com ar jucundo:
“Unamo-nos meu doutor
E demos cabo do Mundo.”

No quadro geral da atividade humana, a Sustentabilidade tem vários inimigos declarados e bem conhecidos:                                                                                                

  1. a matriz energética ainda dominante, formada pelos combustíveis fósseis – uma clara demonstração de estupidez de uma raça que troca ar puro por dinheiro; para não falar dos inúmeros problemas políticos suscitados pelas nações produtoras;
  1. a falta de prioridades nos investimentos púbicos ou privados, nos quais os resultados de curto prazo subjugam as metas de longo prazo – estas, sem sombra de dúvida, as mais importantes por envolver educação, saúde, segurança e outras necessidades básicas. Basta lembrar o ensinamento de Pitágoras, há quase 2.500 anos atrás: “Educa bem a criança para não precisar castigar o adulto”;
  1. o desperdício, sob formas as mais variadas, entre as quais:

a) um terço (500 milhões de toneladas) de todos os alimentos produzidos no mundo são jogados no lixo, condenados pelo prazo de validade nos supermercados, ou de utilização nos restaurantes, ou como “sobras” de nossas refeições. Em dolorosa comparação, o número de pessoas famintas no mundo (ainda segundo a FAO) está na casa dos 800 milhões!

b) em vários produtos, o custo da embalagem supera o do conteúdo, o mesmo acontecendo com a verba de publicidade de certos refrigerantes (xaropinhos disfarçados), produtos de beleza etc., muito superior ao custo de fabricação;

c) o caso da água chega às raias do absurdo e pode ganhar o troféu de campeão mundial do desperdício. Os EUA chegaram à autossuficiência em combustíveis fósseis graças ao “fracking”, o processo de perfuração horizontal que, mediante jatos poderosos de água, desagregam as rochas betuminosas no subsolo e liberam o petróleo ou o gás natural. Estamos falando em algo em torno de 10 milhões de barris (ou equivalentes) por dia! Só que o processo demanda de 5 a 10 barris de água por barril de óleo ou equivalente de gás natural, ou seja, mais de 50 milhões de barris de água se tornam inaproveitáveis a cada dia. Ainda nos EUA (um “gastão” incorrigível) se estima que quase 10 bilhões de galões diários (quase 30 bilhões de litros) de água são consumidos só nos banheiros do país. Felizmente, algumas startups estão à procura de banheiros secos, isto é, que não precisam mais de água ... A sugestão mais simples é que eles considerem a volta à “idade do penico” que prevalecia quando se construiu o Palácio de Versailles, inaugurado no sec. XVII : não havia um único banheiro em toda aquela estupenda estrutura.

d) é fácil compreende por que obras paralisadas representam um enorme prejuízo, já que não produzem nenhum retorno para o capital investido. E pensar que ainda existem mais de 1.500 em nosso querido Brasil!

e) desperdícios vinculados a “estilo de vida”, como um certo vestido de casamento de US$ 180.000,00 que foi utilizado pela noiva de um de nossos mais destacados empresários matriculados na Lava-Jato, Como pode um peça de roupa de uso tão fugaz (e não raro indevido) equivaler, em preço, a um apartamento de classe média, que pode ser utilizado por uma família por décadas?

Felizmente, uma grande movimentação no campo das redes sociais, especialmente entre as novas gerações, está desnudando esses absurdos e condenando-os à “maldição da minhoca”, ou seja, só consegue viver enquanto estiver escondida; há que acrescentar outro aspecto também muito positivo: a consciência geral de que somente pelo esforço conjunto de todos os países, alguns problemas gravíssimos podem ser resolvidos. Poluição da água, do ar, dos oceanos, migração desordenada entre países pobres e ricos e outros estão nessa lista.

Longevidade
Voltando ao cenário alvissareiro das conquistas viabilizadas pela comunicação global em tempo real, não seria fantasioso admitirmos que, após tantos milênios transcorridos, a ideia da preservação da vida como “missão” ganhasse espaço em nossa cultura. Sintomas dessa tendência são fáceis de identificar, como os maiores cuidados com a saúde, mais companheirismo, maior atração pelo turismo e, em especial, maior atividade física e mental. Sem dúvida, a longevidade é agora considerada um grande valor. Os centenários formam o grupo etário de maior ritmo de crescimento em nossos dias. A lei das compensações está funcionando a pleno valor: as famílias são muito menores agora, mas as vidas são muito mais longas.

Li na revista Bloomberg Businnes Week, que apenas em 2018 foram investidos nos EUA cerca de US$ 9 bilhões em “longevity startups”, ou seja, novas empresas dedicadas à inovação no campo da vida longa, cujo principal objetivo é ajudar as pessoas a viver mais tempo e com melhor qualidade... E investidores abundam ... Sem dúvida, é um grande mas benéfico salto para trás, porque voltamos ao momento zero da criação da vida. Recebi de um amigo um vídeo em que uma senhora simpática e bem conservadinha dava uma aula de balé – aos 103 anos! Não esquecer nosso incomparável Oscar Niemayer que fazia piadas sobre seus 104 anos. Nem Dona Cleo, ou seja, a escritora e acadêmica Cleonice Berardinelli que, aos 102 anos, além de uma riquíssima produção literária, ocupa a cadeira nº 8 da Academia Brasileira de Letras, onde 6 de seus pares são seus ex-alunos.

Costumo, em minhas aulas, alertar os ouvintes sobre o fato de que vão viver mais de 100 anos e que não devem gastar a primeira metade da vida estragando a segunda, mesmo porque, nesta hipótese, o quadro pode ser melancólico: velho, pobre, doente e sozinho. Ao contrário, devem aproveitá-la para garantir a qualidade de vida na segunda metade. Atrevo-me a oferecer uma receita: bom sono (menos de 8 horas por noite vai para o “cheque especial da saúde”, cujo custo é bem alto); boa alimentação, fugindo da “faixa de Gasa” (Gorduras, Açúcar, Sal e Álcool - com exceção de um bom vinho, é claro!), e muita atividade física e mental. Stephen Hawking era o exemplo mais eloquente de que a atividade cerebral pode ser conservada por muito tempo, apesar da falência de quase todas as demais funções.

Concluindo
Este texto registra a palestra que, pelo vigésimo ano consecutivo, faço no evento de entrega do Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual; nesse período pudemos observar reais melhorias na qualidade da informação que empresas e outras organizações oferecem aos seus públicos estratégicos. As empresas estão submetidas a normas legais e regulatórias que impõem a apresentação de um “Relatório da Administração” a cada exercício, e esse documento deve ser publicado em diário oficial e submetido à aprovação de uma Assembleia Geral de sócios. Talvez em decorrência dos altos custos envolvidos nessas obrigações, as titulares procuram resumir esses relatórios ao mínimo exigido pela regulação e não sobra muito espaço para outras informações que, em face do interesse social, são inegavelmente mais relevantes. Basta dizer que, em minhas pesquisas nos últimos exercícios, constatei que em torno de 75% do espaço do relatório de administração são ocupados pelas “Notas Explicativas”, cuja relevância não é proporcional ao espaço que exige.

Prefiro sugerir que as empresas e também as organizações não-empresariais cumpram fielmente as obrigações de informar no exato limite de atendimento das normas impositivas, mas divulguem também um “Relatório Anual” bem mais enxuto mas substancioso, no qual discorram com riqueza de detalhes sobre temas como Estratégia, Governança, Mercados e – naturalmente – Sustentabilidade e Longevidade, tanto sob o aspecto organizacional como, principalmente, pelo lado humano.

As empresas, particularmente, não devem perder de vista que os maiores mercados do mundo continuam com sua característica de “potenciais”, ou seja, esperando a vez. Num mundo em que 800 milhões de pessoas passam fome não é preciso falar muito do mercado de alimentos. É uma questão de tempo. Da mesma forma, não é preciso exaltar o mercado de saúde, de segurança, de educação e assim por diante. Dias virão em que os produtores de alimentos, como o Brasil, serão “primeiro mundo”, não tenho a menor dúvida. Há estudos sérios que prevêem que, em 2030, os três maiores países do mundo econômico serão a China, os Estados Unidos e a Índia, nessa ordem. Seguindo a mesma trilha, em 2050 serão os mesmos três, só que a Índia deverá estar em primeiro lugar, já que sua taxa de crescimento anual (mais de 7%) supera a dos outros dois. Nesse terreno, a longevidade como potencial de mercado difere de todos os demais, porque viver mais e melhor será sempre uma aspiração de qualquer povo. Não é por outra razão que, nossos pontos turísticos, restaurantes, hotéis, cinemas, teatros, shows, clubes etc. já têm nos idosos um público fiel e pródigo em gastos.

Não esquecer: não são as empresas que criam os mercados. São estes que criam as empresas. E o “mercado da longevidade” vai por esse mesmo caminho, com o sólido aprendizado do que aconteceu com o “mercado infantil”, apenas com uma razoável inversão de tendências.

NOTA: Texto da palestra proferida por Lélio Lauretti, em 06/12/2018, no evento de entrega do 20º Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual, no auditório da B3 em São Paulo.

Lélio Lauretti
é consultor e expert em Relatórios Anuais - foi o criador e o 1º presidente da Comissão Julgadora do Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual.
lauretti@osite.com.br


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