Ainda não encontramos paradigmas para tornar a governança corporativa efetiva no atual contexto.
Em 1958, os economistas Franco Modigliani e Merton Miller apresentaram a ideia da governança corporativa como parte de sua famosa formulação sobre a estrutura de capital. Naquele contexto, a governança corporativa era vista como o meio para que credores e acionistas obtivessem os fluxos de caixa gerados pelos investimentos das empresas. Essa concepção passou por uma única e relevante revisão em 1976, realizada por Michael Jensen e William Meckling que reconheceram que as estruturas normativas internas e externas das empresas eram fundamentais para limitar práticas prejudiciais à eficiência na alocação dos fluxos de caixa entre credores e acionistas, incluindo práticas ilícitas.
A abordagem financeira moldou a governança corporativa moderna, especialmente em relação ao pagamento de dividendos, recompra de ações e a criação de instrumentos financeiros que alteraram o retorno sobre os ativos. Com o aumento da complexidade nas relações internas e externas das empresas, a governança corporativa passou gradualmente a se preocupar com a remuneração dos gestores (que afeta diretamente os padrões de risco na administração das empresas) e com normas de concorrência, fusões e aquisições, negociação de valores mobiliários, bem como outros temas que requeriam normas obrigatórias, legais e administrativas.
Nesse contexto, em 1976, foi formulada e introduzida no Brasil a Lei das Sociedades Anônimas. A governança corporativa, antes centrada em aspectos microeconômicos, caminhou em direção ao âmbito jurídico, onde a perspectiva envolvendo o direito e a economia começou a prevalecer na regulação das companhias.
A complexidade dos contratos empresariais, revelou que os tribunais judiciais não possuíam as condições e competências necessárias para resolver rapidamente as divergências entre acionistas e credores, prejudicando os direitos das partes e aumentando os custos de transação – isso já tinha sido estudado por Ronald Coase em 1961.
No final da década de 1980, tornou-se evidente a necessidade de maior intervenção do Estado, por meio de normas gerais, para garantir a efetividade dos contratos e reduzir os custos de sua execução. A fixação de parâmetros legais e institucionais para o mercado de capitais e a proteção aos investidores, incluindo acionistas minoritários, também se tornaram cruciais. Como resultado, foram estabelecidos uma série de direitos e regras, como votações por procuração, bloqueio de ações em certas situações, valorização da representatividade proporcional, entre outros, para proteger os interesses dos envolvidos.
A partir dos anos 1990, grandes escândalos financeiros nos mercados norte-americanos mostraram que a governança corporativa se tornara ineficaz para os novos tempos a despeito de toda evolução normativa. O caso da Enron (2001) foi emblemático, pois a empresa da chamada "nova economia" utilizou pervasivas fraudes contábeis, uma das maiores catástrofes corporativas da história. Isso revelou a vulnerabilidade dos mecanismos de governança corporativa em um ambiente de negócios cada vez mais complexo e permeado por conflitos de interesses aguçados, especialmente por parte dos gestores.
As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por uma série de escândalos, todos demonstrando o fracasso da governança corporativa em diversos contextos: Worldcom, Tyco, Parmalat, Styan Computer Services, Lehman Brothers, Madoff, Petrobras, Volkswagen, Vivendi, Société Générale, Danske Bank, Wirecard, Olympus, Toshiba, Suruga Bank, Nissan, Kobe Steel, e assim por diante.
Além da complexidade dos negócios e da dificuldade na gestão e supervisão das empresas pela governança corporativa, especialmente diante do crescente uso de tecnologia e sofisticação gerencial, as externalidades provocadas pelas empresas tornaram-se relevantes para as sociedades, independentemente de estarem no centro dinâmico do capitalismo ou na periferia do sistema. Os fracassos empresariais, parciais ou totais, causam distorções significativas nas economias dos países e influenciam as decisões dos agentes econômicos e dos cidadãos menos familiarizados com o mundo dos negócios. A antiga alocação ineficiente de recursos descrita na literatura clássica da ciência econômica agora resulta em desconforto social considerável e redução do bem-estar geral. Além disso, certos fracassos na governança corporativa geram externalidades ambientais e climáticas. Empresas como Vale, Samarco, Volkswagen ("Dieselgate"), ExxonMobil e outras mais que fornecem informações inadequadas ou fraudulentas sobre suas práticas de sustentabilidade exemplificam essa modalidade de crise corporativa.
O cenário acima mostra que ainda não encontramos paradigmas na literatura ou práticas suficientes para novamente tornar a governança corporativa efetiva. A antiga abordagem financeira e racional de Modigliani e Miller, embora ainda útil em algumas decisões, não é capaz de superar as modernas incertezas e a sensação de que a governança corporativa se tornou uma forma de controle superficial e aparente das empresas.
O que se pode afirmar é que o conceito de governança corporativa expandiu e incorporou novos limites e conteúdo, embora ainda não tenhamos os instrumentos, práticas e poderes necessários para torná-la efetiva. Neste sentido, a definição da OCDE sobre governança corporativa, que a descreve como:
“Sistema de regras, práticas e processos pelos quais uma empresa é dirigida e controlada, envolvendo o equilíbrio dos interesses de diversas partes interessadas, como acionistas, gerentes, fornecedores, clientes, financiadores, governos e a comunidade, ressalta a natureza holística que se espera dessa prática no contexto atual.”
Chamo a atenção para duas palavras-chave do conceito. A primeira é "sistema", que substituiu "conjunto", palavra comum em definições anteriores na literatura sobre o tema. Essa mudança ressalta a importância da interconectividade e interdependência dos elementos teóricos e práticos que a governança corporativa atualmente deve considerar. A empresa é um organismo vivo e, portanto, deve ser observada por meio de diversos ângulos.
A segunda palavra-chave é "muitas". A ideia de que o número de stakeholders e seus interesses devem ser equilibrados por uma governança corporativa adequada não pode ser estabelecida de forma prévia e fixa. As "muitas partes" envolvidas podem variar e projetar uma amplitude social que vai além das deliberações rotineiras da vida empresarial – decorre daí a palavra “holística”: para que a governança corporativa funcione é essencial a análise mais minuciosa dos atos e fatos corporativos, além das fronteiras da empresa. Questões como ética e integridade corporativa, sustentabilidade e responsabilidade social, diversidade e inclusão, remuneração executiva, gestão de riscos, direitos dos acionistas, tecnologia e cibersegurança devem ser fiscalizadas e avaliadas de forma concreta e eficaz, o que reflete a crescente conscientização social.
Enquanto o enforcement é parte crucial para garantir a estabilidade e integridade dos mercados de capitais, o foco e o excesso de regulamentação pode trazer consequências indesejáveis para a economia como um todo. É fundamental encontrar equilíbrio entre a proteção dos investidores e a promoção do ambiente de negócios, bem como as necessidades de todas as partes interessadas envolvidas no processo. Com efeito: a busca contínua por melhorias nos sistemas regulatórios e a atenção às mudanças no ambiente econômico são essenciais para que a supervisão seja eficaz e apropriada.
Há uma tendência mundial de que os reguladores do mercado de capitais, inclusive do ponto de vista da governança corporativa, aumentem o seu próprio enforcement no que tange ao sancionamento de companhias, inclusive por meio da jurisdição privada. O Brasil não é exceção a esta tendência, inclusive em vista o Projeto de Lei 2025/23 em tramitação no Congresso Nacional. Todavia, muito mais importante é que este enforcement seja utilizado para verificação do cumprimento das normas legais e administrativas, inclusive do ponto de vista preventivo. É dever das autoridades públicas evitar crises e colapsos empresariais, inclusive face às externalidades sobre as quais escrevemos acima. O objetivo primeiro das fiscalizações e controles tem de ser “orientativo” e “de alinhamento de objetivos” entre o jurisdicionado e a autoridade.
No Brasil temos de evoluir muito no tratamento de temas pelas autoridades em relação à conformidade legal e de melhores práticas, à sustentabilidade e responsabilidade social e diversidade, à remuneração dos administradores, à gestão de riscos, aos problemas de tecnologia, cibersegurança, controle de macroprocessos e aos direitos dos acionistas, especialmente dos que não fazem parte do controle acionário ou que não sejam acionistas “de referência”. No momento, há pouca atividade legislativa neste sentido, mais relevante que o reforço de um enforcement sancionador.
Francisco Petros
é advogado, especializado em direito societário, compliance e arbitragem. Participa da governança corporativa de empresas brasileiras e estrangeiras. Foi presidente da ABAMEC-SP - Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais.
francisco.petros@fflaw.com.br