O tributo é uma obrigação reflexa dos contratos firmados pelas companhias. Sendo assim, há reflexos tributários nos contratos de venda e prestação de serviços com clientes, nos contratos de aquisição de bens, serviços e direitos com fornecedores, nos contratos de trabalho, nos contratos de financiamento e assim por diante. Esses contratos relacionados ao negócio da companhia são divulgados aos interessados nas suas demonstrações contábeis. Portanto, os respectivos reflexos tributários também constam dos relatórios contábeis: e com a reforma tributária não seria diferente.
A reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional – EC nº 132, em 2023, altera substancialmente a estrutura da tributação sobre o consumo no Brasil, substituindo 5 tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e COFINS) por 2 (CBS/IBS e imposto seletivo); essa é exatamente a tributação intrinsecamente relacionada aos contratos relacionados ao negócio da companhia. A EC 132 impacta diretamente as vendas de bens e de serviços das companhias, além das suas aquisições; no entanto, indiretamente, pode afetar outras relações contratuais, como financiamento e com empregados e colaboradores. Em razão de tais impactos, caberá aos órgãos de governança das companhias reavaliar o modelo de negócio. Por isso, entender os reflexos da reforma tributária nas informações contábeis das companhias é indispensável para a adequada análise das demonstrações financeiras, seja por usuários internos (gestão) seja por usuários externos (analistas).
O primeiro ponto a ser destacado com relação à EC 132 é a adoção do “princípio da neutralidade”, nos sentidos do estabelecimento da não cumulatividade plena e da vedação da tributação dita em cascata, ou seja, imposto sobre imposto. A não cumulatividade plena significa que o tributo (CBS/IBS) devido pelo fornecedor em todas as aquisições de bens, serviços ou direitos poderá ser aproveitado para compensar o mesmo tributo (CBS/IBS) devido pelo desenvolvimento da atividade da companhia. Diferentemente do que ocorre hoje, não haverá reservas ou condições para a utilização dos tributos incidentes nas etapas anteriores da cadeia de produção e consumo. Mesmo a contratação de empresas terceirizadas para a prestação de serviços administrativos (“backoffice”), por exemplo, permitirá a tomada do crédito do tributo (CBS/IBS). Considerando que o tributo cobrado juntamente com a aquisição de bens, serviços e direitos são escriturados contabilmente como redutor dos respectivos gastos, com a EC 132, o valor dos estoques, do ativo fixo e das despesas tenderá ser reduzido, em contrapartida ao aumento de tributo (CBS/IBS) a recuperar: a redução de despesa e de ativo fixo contribuirá para o aumento do ativo circulante.
Ainda sobre a neutralidade, o novo tributo CBS/IBS será cobrado de maneira destacada, ou seja, “por fora”, o que evitará a cobrança de imposto em cascata, portanto, não haverá tributo “embutido” no preço, como ocorre atualmente. Essa característica tem impacto significativo na contabilidade gerencial, que se refletirá na gestão e na divulgação das informações contábeis: as companhias precisarão rever sua formação de preço. Para os fornecedores de bens de capital, que normalmente realizam relativamente “poucas” transações durante o ano e, por essa razão, negociam diretamente seus contratos, a nova tributação facilitará a formação de preço, já que incidirá depois de fechado o preço. Por outro lado, companhias atacadistas e varejistas e aquelas que realizam inúmeras transações e para consumidores “anônimos”, sem uma negociação direta das vendas, a atenção na formação de preço deverá ser redobrada: preço baixo poderá afetar a lucratividade; preço alto poderá afastar os consumidores. Outro fator a ser levado em conta na formação de preço é a elasticidade do produto ou do serviço.
Comentamos a regra geral; porém, há previsão expressa de regimes específicos. A venda de combustíveis e lubrificantes seguirá sendo tributada em caráter monofásico, isto é, incidirá uma única vez na cadeia de produção e consumo, no caso, os tributos (CBS/IBS) serão recolhidos pela refinaria ou pela importadora. Os serviços financeiros e de seguro saúde seguem tributados pela receita, não as operações em si. O mesmo acontece com a atividade imobiliária, que passa a incluir os contratos de locação – atualmente, a locação não sofre incidência de imposto sobre a operação (ISS), o que impactará os setores de shopping center e de locação de máquinas, equipamentos e veículos. Também gozarão de um regime específico de tributação os serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, agências de viagens e de turismo, bares e restaurantes, atividade esportiva desenvolvida por Sociedade Anônima do Futebol – SAF e aviação regional.
Uma boa notícia é que esses impactos não serão sentidos de maneira imediata; haverá um período de transição satisfatoriamente longo para cumprir duas finalidades: calibragem da alíquota dos tributos (CBS/IBS) – já que é impossível determinar essa alíquota com as informações econômicas e financeiras disponíveis hoje – e adaptação das companhias, especialmente com relação aos sistemas de gestão e controle fiscal, além da estratégia de negócios, como mencionado.
Com relação aos tributos federais, cuja regulamentação é centralizada no governo federal, portanto, com pouca negociação, a transição será, basicamente, no ano de 2026: a partir de 2027, espera-se que a CBS já tenha substituído completamente o IPI, a Contribuição para o PIS e a COFINS.
No caso dos entes subnacionais (Estados, Distrito Federal e Municípios), dada a sua complexidade, a transição será mais longa. A substituição de ICMS e ISS pelo IBS inicia-se, de certa forma, também em 2026 e estende-se até 2032. Na transição do ICMS é relevante atentar para a redução e finalmente extinção dos benefícios fiscais atualmente concedidos pelos estados no âmbito da chamada “guerra fiscal”. Os incentivos regionais serão financiados por um fundo especialmente criado para isso.
Embora a transição da tributação sobre o consumo comece apenas em 2026, seria bastante conveniente que as companhias já iniciassem as simulações de impacto e divulgassem aos interessados (“stakeholders”) o mais cedo possível.
Os analistas também devem acompanhar atentamente a evolução prática dessa reforma tributária, por conta dos reflexos nos negócios das companhias e dos efeitos macroeconômicos para o país.
Nota: Acesse o vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=PAO39Ieyuqo) do Web Encontro APIMEC Brasil sobre a Reforma Tributária, com Edison Fernandes, realizado em 13/3/2024. Acesse também a apresentação: https://lnkd.in/dxi4nw9Z.
Edison Fernandes
é doutor em Direito pela PUC/SP, professor da FGV, coordenador da Comissão de Reforma Tributária da APIMEC Brasil e sócio do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.
edison.fernandes@fgv.br