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A Lei nº 6.404/1976, por meio dos artigos 153 a 157, estabelece um cuidadoso sistema de deveres dos administradores de companhias. Tais deveres são chamados fiduciários em referência à fidúcia (confiança), que deve presidir as relações entre acionistas e administradores. A relação mantida entre os administradores e a companhia tem natureza fiduciária, na medida em que se confia que o administrador administrará o patrimônio social, não em benefício próprio, mas em proveito da companhia e indiretamente dos acionistas.
Na sequência da legislação societária, por meio do artigo 158, estabelecem-se os parâmetros para a responsabilização dos administradores de companhias. A divisão entre deveres e responsabilidades é pertinente, pois indica que os deveres surgem antes da responsabilidade e independente desta.
A preocupação do legislador pátrio foi estabelecer modelos de conduta, a fim de guiar a atuação dos administradores da companhia. Dentre estes modelos de conduta, a legislação societária traz o Dever de Informar e o Dever de Sigilo, que estão intimamente relacionados aos desafios e às situações práticas aplicáveis às atividades de Relação com Investidores (RI) em companhias abertas.
O Dever de Informar é a regra geral e tem relação direta com o regime de transparência e prestação de informações, que constitui um dos pilares fundamentais da Regulação do Mercado de Capitais.
Por meio do regime informacional, busca-se garantir a higidez do Mercado de Capitais e a prevenção de eventuais falhas estruturais que podem prejudicar o seu funcionamento eficiente.
A adoção de um sistema adequado de divulgação de informações desempenha diversas funções, ao: (i) subsidiar as decisões de investidores e, assim, auxiliar na adequada precificação dos valores mobiliários; (ii) tutelar a confiança e credibilidade do mercado; (iii) administrar a seleção adversa de emissores; e (iv) viabilizar um sistema eficaz de prestação de contas e responsabilização de participantes de mercado.
Em linha com o modelo regulatório consagrado nos Estados Unidos, desde o Securities Act of 1933, a legislação societária brasileira adotou o princípio da ampla e adequada divulgação (full and fair disclosure) como parâmetro de funcionamento do regime informacional.
Tal princípio estabelece o dever de emissores de valores mobiliários divulgarem, de forma abrangente e equitativa, amplo conjunto de informações sobre o emissor e as suas atividades. Algumas destas divulgações relacionam-se às informações periódicas (ex: Demonstrações Financeiras, Formulário Cadastral e Formulário de Referência) enquanto outras são as informações eventuais (ex: Fato Relevante, Comunicados ao Mercado e Avisos aos Acionistas).
As informações divulgadas devem ser suficientes e adequadas à compreensão dos investidores e do mercado em geral, exigindo-se que tais informações sejam claras, íntegras, completas, precisas e tempestivas.
A obrigação de divulgar incide sobre informações relativas a atos e/ou fatos relevantes, ocorridos ou relacionados aos seus negócios, que possam influir, de modo ponderável, (i) na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; (ii) na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; ou (iii) na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados.
O dever de informar dos administradores de companhia aberta está previsto no art. 157 da Lei nº 6.404/76, com atenção especial ao §4º, que prevê que “os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembleia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia”.
A CVM, por meio da Resolução CVM nº 44/2021, regulamentou a obrigação constante do artigo 157 da Lei nº 6.404/76, estabelecendo regras para cumprimento de tal obrigação, com previsão de: (i) responsável pelo cumprimento de tal obrigação; (ii) meios a serem adotados; e (iii) a forma para divulgação de atos ou fatos relevantes.
Em relação ao momento temporal da divulgação, o artigo 5º da referida Resolução prevê que “a divulgação de ato ou fato relevante deve ocorrer, sempre que possível, antes do início ou após o encerramento dos negócios nas bolsas de valores e entidades do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação.”.
Importante ressaltar que o §2º do citado artigo 5º da Resolução CVM nº 44/2021 sinaliza que “caso seja imperativo que a divulgação de ato ou fato relevante ocorra durante o horário de negociação, o Diretor de Relações com Investidores pode solicitar, sempre simultaneamente às entidades administradoras dos mercados, nacionais e estrangeiras, em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação, a suspensão da negociação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta, ou a eles referenciados, pelo tempo necessário à adequada disseminação da informação relevante, observados os procedimentos previstos nos regulamentos editados pelas bolsas de valores e entidades do mercado de balcão organizado sobre o assunto.”.
Os dispositivos legais e normativos transmitem, claramente, a máxima de que a divulgação de informação relevante não é mero formalismo regulatório. Trata-se de premissa fundamental para assegurar a isonomia entre os investidores em relação às informações disponíveis ao mercado, especialmente quando tais informações tenham potencial de afetar suas decisões de investimento e/ou desinvestimento. Afinal, o postulado básico da Regulação do Mercado de Capitais é o de que o investidor estará protegido na medida em que lhe sejam prestadas pelo emissor todas as informações relevantes a respeito dos valores mobiliários publicamente negociados.
Em relação ao Dever de Informar, a regra geral é a da imediata divulgação dos fatos relevantes. Ressaltam-se, contudo, o §5º do artigo 157 da Lei nº 6.404/1976 e o artigo 6º da Resolução CVM nº 44/2021, que preveem a exceção de que os atos ou fatos relevantes podem deixar de ser divulgados se os acionistas controladores ou os administradores entenderem que sua revelação porá em risco interesse legítimo da companhia.
Todavia, a prerrogativa de não divulgar a informação relevante na tutela de interesse legítimo da companhia, deixa de existir sempre que se verifique: (i) escape ou perda de controle da informação; ou (ii) oscilação atípica na cotação, preço ou quantidade negociada. Nestes dois casos, impõe-se a divulgação imediata da informação relevante de modo a restaurar o nivelamento informacional e a confiança dos investidores.
O Dever de Informar também convive com desafios nas hipóteses em que ele é relativizado e excepcionado por outras situações em que se impõe o Dever de Sigilo (também conhecido como “dever de reserva”).
O Dever de Sigilo está previsto no § 1º do artigo 155 da Lei nº 6.404/1976 e impõe aos administradores de companhias abertas a obrigação de “guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários”.
O Dever de Sigilo não é um fim em si mesmo. A obrigação de manter a reserva sobre as informações não públicas, que envolvam a companhia e que tenham sido obtidas durante o exercício do cargo, constitui um desdobramento lógico do dever de lealdade, conforme previsto no caput do mesmo artigo 155 da Lei nº 6.404/1976: “O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios [...]”.
A companhia, no desenvolvimento de seus negócios, gera e adquire diversas informações que merecem tratamento confidencial. São informações que pertencem à companhia e que merecem proteção legal, especialmente quando se pondera que tais informações tornaram-se do conhecimento de tais administradores da companhia por conta da posição por eles ocupada na sociedade.
Tais informações sujeitas à confidencialidade não seriam do conhecimento dos administradores da companhia se estes não ocupassem os seus respectivos cargos. Portanto, o administrador leal não tornará públicas informações confidenciais a que teve acesso, se a manutenção da informação sob reserva estiver alinhada ao interesse social, ou a divulgação vier a produzir assimetrias informacionais no mercado.
Adicionalmente, a análise do texto legal permite que se extraiam algumas lições.
Em primeiro lugar, para que se configure a violação ao dever de sigilo, é imprescindível que a informação seja sigilosa e relevante. É sigilosa a informação “que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado”. A sua relevância, em linha com o disposto no artigo 2º da Resolução CVM nº 44/2021, por sua vez, decorre da capacidade “de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários” e na tomada de decisão dos investidores do Mercado de Capitais.
Em segundo lugar, nota-se a necessidade de que a informação seja obtida: (i) por indivíduo que ocupe cargo administrativo de companhia aberta e (ii) “em razão [da ocupação] do [referido] cargo”. Em outras palavras, o texto afasta a violação do dever de sigilo por agente que: (i) à época da obtenção da informação não compuser a administração de uma companhia aberta; ou (ii) a compuser, mas não tiver obtido a informação em razão do cargo ocupado.
Em terceiro e último lugar, tendo em vista o dever de sigilo não é um fim em si mesmo, mas um desdobramento do dever de lealdade dos administradores de companhias abertas, a sua violação também pressupõe que a conduta possua potencial lesivo.
Sendo assim, é possível a manutenção do sigilo da informação relevante quando se entender que a sua divulgação prejudicará interesse legítimo da companhia a que se refere ou, ainda, que criará um cenário de assimetria informacional no Mercado de Capitais. Veja-se, a este respeito, o já citado §5º do artigo 157 da Lei nº 6.404/1976 e o artigo 6º da Resolução CVM nº 44/2021.
Nesse sentido, a fim de se avaliar a violação do dever de sigilo, é necessário analisar, em cada caso concreto, o efetivo risco de que a conduta: (i) prejudique interesse legítimo da companhia; ou (ii) cause assimetria informacional relevante entre os investidores e demais participantes do mercado e, assim, fomente negociações com o uso indevido de informação privilegiada (“insider trading”) e crie distorções no processo de formação de preços dos ativos.
A revelação assimétrica de informação privilegiada, ainda não divulgada ao mercado e que seja capaz de propiciar vantagem indevida em negociação de valores mobiliários, tem o risco de fomentar negociações com uso indevido de informação privilegiada, além do risco de criar vícios no processo de formação de preço dos valores mobiliários da referida companhia aberta.
Em conclusão, deve-se refletir sempre que o Mercado de Capitais é permeado por regras e princípios que se orientam a um fim comum: organizar a dinâmica entre os emissores de valores mobiliários e os investidores que integram a poupança popular.
Quando uma informação vier a ser divulgada, tal divulgação deverá ser realizada de forma ampla e equitativa, seguindo o Dever de Informar e as regras de transparência e o regime informacional do “full and fair disclosure”, sendo que - enquanto não divulgada – tais informações estão sujeitas ao Dever de Sigilo.
Analisados de forma técnica, o Dever de Informar e o Dever de Sigilo convivem harmoniosamente, estando o primeiro atrelado à obrigação de divulgação de informações periódicas e eventuais das companhias abertas e o segundo, paralelamente, associado à proteção das informações sigilosas e relevantes, que inclusive podem ser aquelas informações ainda não divulgadas ao público em geral.
Examinar o Dever de Informar e o Dever de Sigilo pode ser uma tarefa mais complexa, que demandaria uma abordagem textual mais detalhada. Aqui, busquei trazer algumas provocações básicas, que podem suscitar interesse por maior aprofundamento sobre estes temas, cujo estudo está disponível tanto na doutrina quanto em inúmeros julgados da CVM.
A provocação final é no sentido de que o regime informacional deve promover a formação eficiente de preços e a higidez do Mercado de Capitais e, assim, viabilizar o crescimento saudável do segmento regulado pela CVM.
Portanto, o atendimento ao Dever de Informar e ao Dever de Sigilo tem grande importância nas atividades de relações com investidores e na dinâmica do sistema dos deveres dos administradores de companhias abertas.
João Pedro Nascimento
é presidente da Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
joao.pedro@cvm.gov.br